Resumo: O exercício de qualquer é livre desde que sejam atendidas as qualificações profissionais, assim entendida como as condições de capacidade técnica, que a lei estabelecer. Isso não impede, por outro lado, que a lei ou o contrato, regulamentem o direito de liberdade, expandindo-lhe a eficácia. Mas a regulamentação não pode aniquilar a liberdade, sob pena de tornar a essência do direito ilusória.
Palavras-chave: Liberdade profissão. Qualificações profissionais. Capacidade técnica. Restrições ao direito fundamental. Reserva legal qualificada.
O exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão é um direito de liberdade. Trata-se de direito que guarda “forte relação com o direito ao desenvolvimento da personalidade, pelo fato de que se trata tanto de uma finalidade quanto de um fundamento da vida pessoal, ao mesmo tempo viabilizando que o indivíduo possa contribuir para a vida social como um todo”[1]. Desde que preenchidos os requisitos de “qualificações profissionais”, brasileiros podem exercer um ofício de sua escolha livremente, independente de outras variáveis. E é justamente nesse ponto em que há, muitas vezes, excessos nos contratos ou nas leis, que tolhem a liberdade do exercício, cujo espaço de atuação da autonomia da vontade ou do poder de conformação do legislador precisa ser investigado.
Com efeito, direito fundamental de liberdade de profissão está previsto no art. 5º, XIII da Constituição Federal, in verbis:
“Art. 5º (in omissis)
(...)
XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;”
Trata-se de uma reserva legal qualificada ao direito fundamental, que tolhe do legislador ordinário a discricionariedade para restringir o direito de forma diferente do que dispõe a fórmula “atendida as qualificações profissionais que a lei estabelecer”.
Segundo Gilmar Ferreira Mendes[2], "[t]em-se uma reserva legal ou restrição legal qualificada quando a Constituição não se limita a exigir que eventual restrição ao âmbito de proteção de determinado direito seja prevista em lei, estabelecendo também, as condições especiais, os fins a serem perseguidos ou os meios a serem utilizados."
Portanto, a questão deve ser vista sob duas premissas: (1) o legislador pode criar restrições à atividade privada do advogado público; (2) mas deve se ater ao limite do âmbito temático “qualificações profissionais”.
Mas o que são qualificações profissionais? Segundo a jurisprudência constitucional, “qualificações profissionais” são qualificações de capacidade técnica. Nada mais que isso. Decidiu o Ministro Eros Grau que “há paralelismo entre ‘qualificações profissionais’ e ‘condições de capacidade’; note-se bem que a própria Constituição de 1.988 atribui à União competência para legislar sobre ‘organização do sistema nacional de emprego e condições para o exercício de profissões’ (...). Comentando o § 14 do artigo 141 da Constituição de 1.946, CARLOS MAXIMILIANO observa inicialmente que em face do § 14 'não se admitem limitações senão em caráter amplo, sem distinguir entre indivíduos nem entre as classes; ressalve-se, apenas, o interesse coletivo, isto é, a segurança individual, a ordem, a moral e a higiene. Daí se não deduz a dispensa de provas de habilitação para o exercício de certas profissões como a de médico, cirurgião, farmacêutico, dentista, condutor de veículos urbanos, piloto. Trata-se, nesse caso, da saúde e da vida dos cidadãos, pelos quais deve o Estado velar paternalmente'. E diz ainda ele, mais adiante: 'Quanto às profissões liberais só é lícita a exigência da prova de capacidade. Qualquer outra restrição ou regulamentação seria incompatível com a liberdade assegurada pelo estatuto supremo”.
Na Representação de Inconstitucionalidade nº 930/DF, ainda sob o regime constitucional anterior, o Ministro Rodrigues Alckmin decidiu no mesmo sentido. Segundo ele a Constituição assegura “a liberdade do exercício de profissão. Essa liberdade, dentro do regime constitucional vigente, não é absoluta, excludente de qualquer limitação por via de lei ordinária. Tanto assim é que a cláusula final (‘observadas as condições de capacidade que a lei estabelecer’) já revela, de maneira insofismável, a possibilidade de restrições ao exercício de certas atividades. Mas também não ficou ao livre critério do legislador ordinário estabelecer as restrições que entenda ao exercício de qualquer gênero de atividade lícita. Se assim fosse, a garantia constitucional seria ilusória e despida de qualquer sentido. Que adiantaria afirmar ‘livre’ o exercício de qualquer profissão, se a lei ordinária tivesse o poder de restringir tal exercício, a seu critério e alvitre, por meio de requisitos e condições que estipulasse, aos casos e pessoas que entendesse? (...) E ainda que, por força do poder de polícia, se possa cuidar, sem ofensa aos direitos e garantias individuais, da regulamentação de certas atividades ou profissões, vale frisar, ainda, que essa regulamentação não pode ser arbitrária ou desarrazoada, cabendo ao Judiciário a apreciação de sua legitimidade. (...) Quais os limites que se justificam, nas restrições ao exercício de profissão? Primeiro, os limites decorrentes da exigência de capacidade técnica. (...) São legítimas , conseqüentemente, as restrições que imponham demonstração de capacidade técnica , para o exercício de determinadas profissões”.
Na doutrina, o entendimento não é diferente. Sampaio Dória[3] ensina que “[a] lei, para fixar as condições de capacidade, terá de inspirar-se em critério de defesa social, e não em puro arbítrio. Nem tôdas as profissões exigem condições legais de exercício. Outras, ao contrário, o exigem. A defesa social decide. Profissões há que, mesmo exercidas por ineptos, jamais prejudicam diretamente direito de terceiro, como a de lavrador. Se carece de técnica, só a si mesmo se prejudica. Outras profissões há, porém, cujo exercício por quem não tenha capacidade técnica, como a de condutor de automóveis, pilotos de navios ou aviões, prejudica diretamente direito alheio. Se mero carroceiro se arvora em médico-operador, enganando o público, sua falta de assepsia matará o paciente. Se um pedreiro se mete a construir arranha-céus, sua ignorância em resistência de materiais pode preparar desabamento do prédio e morte dos inquilinos. Daí, em defesa social, exigir a lei condições de capacidade técnica para as profissões cujo exercício possa prejudicar diretamente direitos alheios, sem culpa das vítimas”.
Foi nesse sentido que se manifestou o Presidente da República, na Mensagem de Veto nº 680/2010, ao projeto de lei que regulamentava profissões de DJ ou Profissional de Cabine de Som DJ (disc jockey) e de Produtor DJ (disc jockey). Segundo ele, “a Constituição Federal, em seu art. 5º, inciso XIII, assegura o livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, cabendo a imposição de restrições apenas quando houver a possibilidade de ocorrer algum dano à sociedade.”
Está aí a linha divisória que separa as restrições lícitas das restrições ilícitas. Em todo o caso que não houver ameaça de risco à coletividade, a exemplo do exercício da profissão de jornalista, músico ou de “Disc jockey”, não haverá de se falar em restrições ao seu exercício.
A respeito do tema, no julgamento do RE nº 603.583/RS, o Ministro Marco Aurélio concluiu que as exigências de qualificação profissional são a “salvaguarda de que as profissões que representam serão limitadas, serão exercidas somente por aqueles indivíduos conhecedores da técnica.”
No mesmo sentido, a Ministra Ellen Gracie decidiu, no RE nº 414.426/SC, que “o exercício profissional só está sujeito a limitações estabelecidas por lei e que tenham por finalidade preservar a sociedade contra danos provocados pelo mau exercício de atividades para as quais sejam indispensáveis conhecimentos técnicos ou científicos avançados.”
Não se descuida, outrossim, que o exercício de uma profissão pode ser regulamentado para otimizar sua eficácia. Regulamentar também é uma forma de restrição ao direito, mas que encontra uma fundamentação constitucional adequada[4]. Admite-se, para o bom desempenho do cargo ou empregado, o contrato de trabalho ou a lei possam fixar horário do início do trabalho, a jornada semanal ou o caráter exclusivo da dedicação. O que não pode fazer é tolher a liberdade, quando houver essa possibilidade.
Explico.
A questão da dedicação exclusiva é um bom exemplo. É perfeitamente possível que, no regime estatutário ou contratual, exija-se do trabalhador dedicação exclusiva ao serviço sem que isso se configure uma restrição. No entanto, a dedicação exclusiva decorre da jornada prevista na lei ou no contrato de trabalho, período durante o qual não pode haver dedicação a nenhum outro ofício, mas não impede que o trabalhador, fora desse espaço, exerça sua profissão com liberdade em favor de outros tomadores de serviço.
A propósito, sobre o advogado-empregado, o Tribunal Superior do Trabalho já decidiu o seguinte:
TST: “HORAS EXTRAORDINÁRIAS. ADVOGADO BANCÁRIO. DEDICAÇÃO EXCLUSIVA. CONFIGURAÇÃO. JORNADA CONTRATUAL DE 8 HORAS DIÁRIAS e CONTRATAÇÃO ANTERIOR À LEI 8.906/94. ORIENTAÇÃO JURISPRUDENCIAL 403 DA SBDI-1/TST. Esta c. Corte estabeleceu o entendimento de que o regime de dedicação exclusiva não deriva do fato de o advogado empregado não poder prestar serviços a outros empregadores; a dedicação exclusiva decorre, em verdade, da jornada prevista no contrato de trabalho. Assim, se o advogado empregado tiver sido admitido para cumprir jornada de 8 horas diárias ou 40 horas semanais, trabalhará em regime de dedicação exclusiva, enquadrando-se na exceção contida no art. 20 da Lei 8.906/94, pelo que não fará jus à jornada reduzida de 4 horas diárias e 20 semanais. Conforme delimitação regional, a reclamante ingressou no banco reclamado, em 1977, como escriturária, e, em 1984, assumiu o cargo de advogada. Destacou ainda o eg. TRT ser incontroverso que a jornada de trabalho diária praticada pela reclamante sempre foi de 8 horas. Nesses termos, verifica-se que de fato a reclamante estava submetida ao regime de dedicação exclusiva, com jornada de 8 horas diárias por dois motivos: 1) em razão da contratação para jornada de 8 horas diárias e 40 horas semanais antes do advento da Lei 8.906/94 (incidência da Orientação Jurisprudencial 403 da SBDI-1/TST); e 2) ante o próprio cumprimento da jornada contratual de 8 horas diárias, independentemente da possibilidade de prestação de serviços a outros empregadores. Assim, aplica-se à autora a jornada de 8 horas diárias e 40 horas semanais, não se cogitando do pagamento de horas extraordinárias excedentes à 4ª diária, nos termos do art. 20 da Lei 8.906/94. Recurso de revista conhecido e provido. (...)” (Recurso de Revista nº 1209-53.2011.5.08.0007 , Rel. Min. Aloysio Corrêa da Veiga, Data de Julgamento: 21/11/2012, 6ª Turma, Data de Publicação: 01/03/2013)
É a mesma hipótese, por exemplo, de um Município que institui, mediante lei, a proibição de exercício da advocacia, em desfavor de advogados públicos, cuja jornada de trabalho, embora sob dedicação exclusiva, não atinja as 44h semanais. Em havendo a possibilidade de exercício, a liberdade não pode ser aniquilada, sendo lícito ao procurador municipal exercer a advocacia fora das atribuições funcionais, respeitados os impedimentos e incompatibilidades do Estatuto da OAB.
Nesse sentido, o Ministro Thompson Flores, no julgamento do RE nº 70.563/SP, conduziu o STF a decidir que "a liberdade do exercício profissional se condiciona às condições de capacidade que a lei estabelecer. Mas, para que a liberdade não seja ilusória, impõe-se que a limitação, as condições de capacidade, não seja de natureza a desnaturar ou suprimir a própria liberdade”.
A questão do risco à coletividade, portanto, é o critério que norteia a interpretação das restrições do direito fundamental à liberdade de profissão e esteve presente nos julgamentos do RE nº 511.961/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 16.06.2009, que aboliu a exigência legal de diploma para exercício da profissão de jornalista (4º, inciso V, do Decreto-Lei n.° 972/69), e no RE nº 414.426/SC, Relª. Minª Ellen Gracie, j. 01.08.2011, que entendeu ser inconstitucional a exigência legal do registro prévio dos músicos no conselho profissional (arts. 16 à 18 da Lei nº 3857/60) como condição de exercício da profissão ou no julgamento da Representação de Inconstitucionalidade nº 930/DF, Rel. Min. Rodrigues Alckmin, que rejeitou a exigência legal de inscrição (art. 1º da Lei nº 4.116/62), como etapa indispensável para o exercício da profissional, o registro dos corretores nos conselhos regionais.
Em todos aqueles precedentes, o STF afastou restrições impostas pela lei que não tinham a ver com a proteção da sociedade contra os riscos do exercício de atividades por pessoas com conhecimento técnico insuficiente. O Supremo, em nenhum momento, se absteve com alegações genéricas, aceitando que as limitações ao exercício profissional nos casos acima fruto “da escolha legislativa”.
É precisamente esse, portanto, o limite da discricionariedade do legislador ou do empregador para tratar do exercício de qualquer trabalho. Qualquer forma de restrição a esse direito diferente daquilo que foi autorizado pelo constituinte receberá a pecha da inconstitucionalidade. E, em matéria de direitos fundamentais, não há espaço para discricionariedade do legislador de forma diferente daquela autorizada pelo constituinte, sob pena de transformar os direitos fundamentais em meros “direitos na medida da lei”, ao sabor de maiorias legislativas ocasionais.
Notas
[1] SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2012, p. 487.
[2] MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 3ª ed., São Paulo: Saraiva, 2008, p. 309.
[3] SAMPAIO, Dória. Comentários à Constituição de 1946, v. 4, p. 637.
[4] SILVA, Virgílio Afonso. “O conteúdo jurídico dos direitos fundamentais e a eficácia das normas constitucionais”. Revista de Direito do Estado 4 (2006): 31