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Democracia, direito e populismo: reflexões latino-americanas na pós-modernidade

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POPULISMO: CAMINHOS DEMOCRÁTICOS PARA A AMÉRICA LATINA NA PÓS-MODERNIDADE?

A categoria Populismo será estuda nesse item a partir do pensamento de Dussel, conforme sua Tese n. 3[35].  A terceira Tese do referido autor demonstra que é necessário ressemantizar a categoria Povo. O “popular”, na concepção de Dussel (2007, p. 5), não é o “populista”, nem ontem, nem hoje. Essa diferença é necessária para se compor uma Filosofia Política latino-americana, ou seja, ser “popular” é diferente de “populista”. Sob semelhante argumento, Povo é distinto de Populismo.

Desde a década de 1960, o citado autor evidencia suas tentativas em diferenciar as categorias Povo e Populismo por serem ambíguas e possuírem um duplo sentido. A primeira expressão mencionada na linha anterior – Povo – não se exaure pelos limites territoriais desenhados pelo Estado-nação.

Povo não se confunde com a comunidade política nacional porque essa, geralmente, é dirigida por classes dominantes as quais, muitas vezes, escolhem os destinos políticos da primeira categoria citada nesse parágrafo[36]. Quando o consenso se torna ausente, a classe social, inicialmente dirigente, se torna dominante. Nesse momento, surgem as repressões, as proibições, as ameaças e desestabilizações contra todos e o Direito no qual assegura proteção mínima existencial. Inicia-se a crise de legitimidade decorrente dessa hegemonia proposta pela dominação do Poder.

Dussel (2007, p. 7) destaca que a categoria política Povo não pode ser confundida com o aspecto econômico de classe:

[...] La clase obrera es el conjunto de los sujetos del “campo económico” que son subsumidos por el capital transformándolos en trabajadores asalariados que producen realmente (formal y materialmente) el plusvalor de las mercancías. El “campo político” debe distinguírselo formalmente del “campo económico” –la confusión de ambos campos es una de las falencias de una cierta extrema izquierda economicista-. Las categorías de un “campo” no deben atribuirse ni usarse ligera ni superficialmente en el otro, aunque siempre determinan (a su manera, material económicamente o formal políticamente) a las del otro campo. La “clase obrera” es una categoría económica esencial del capital, que cuando entra en el campo político puede o no jugar una función con mayor o menor importancia, según sea el desarrollo económico o político del caso coyunturalmente analizado.

Confundiu-se na América Latina, segundo o pensamento de Dussel (2007, p. 7), o Populismo periférico incitado pelo Capitalismo[37] ao fascismo europeu do século XX. Esse foi um erro teórico que ocorreu pela falta de definição da categoria Populismo[38] compreendida no período do Capitalismo periférico pós-colonial na América Latina.

A ausência de um ambiente democrático, constituído pelo Direito a fim de se preservar condições mínimas para que haja a integração desejada no continente latino-americano, reforça a insistência histórica das classes dirigentes tornarem-se dominantes. A categoria política Povo, segundo o pensamento de Dussel, aparece como novo objeto teórico da Filosofia Política da América Latina já que representa vetor de participação e Responsabilidade, de modo semelhante à proposição da classe obreira.

Historicamente, pode-se observar que o Povo pode se sujeitar aos interesses de uma comunidade política, inserida num Estado de Direito[39], cuja legitimidade de suas decisões caracteriza-se pela ausência de consenso. Trata-se de uma obediência passiva. A leitura da obra de Dussel (2007, p. 8) evidencia que quando esse Povo abandona essa passividade, ou seja, torna-se “Povo para-si”, inicia-se a rebelião contra essa hegemonia (im)posta.  Surgem os movimentos sociais nos quais buscam alternativas de promover a Dignidade para todos, inclusive sob a forma de Direitos Fundamentais[40].

A partir desses argumentos, Dussel rememora essa necessidade de se reivindicar a participação de todos, o resgate de sua Responsabilidade, por meio dos diversos movimentos sociais para abandonar o significado de Povo como “bloco de oprimidos”. Para o autor (2007, p. 9):

Todos los movimientos sociales, la Di-ferencia, no suman toda la población que constituye el “pueblo”. El pueblo es mucho más, pero esos movimientos son el “pueblo para-sí”, son la “conciencia del pueblo” en acción política transformadora (en ciertos casos excepciones, revolucionaria). De todas maneras son el tejido activo intersticial que une y permite hacerse presente como actor colectivo en el campo político al “bloque social de los oprimidos y excluidos”, que siempre son la mayoría de la población.

Aos poucos, a comunidade política – ou a Nação – cede espaço ao Povo. A participação cada vez mais solidária e responsável começa a modificar a geografia política, jurídica, econômica, educacional, ambiental da América Latina. Essa postura se intensifica na medida em que o poder hegemônico[41] estabelecido pelas comunidades políticas nacionais promove condições de vida insuportáveis para todos, conforme esclarece Dussel (2007, p. 10).

O pensamento do autor anteriormente citado (2007, p. 10) mostra como o abandono da postura hegemônica criada pela comunidade política estimula à participação democrática para se conquistar as utopias carregadas de esperança do conviver:

“Pueblo” sería así el acto colectivo que se manifiesta en la historia en los procesos de crisis de hegemonía (y por ello de legitimidad), donde las condiciones materiales de la población llegan a límites insoportables, lo que exige la emergencia de movimientos sociales que sirven de catalizador a la unidad de toda la población oprimida, la plebs, cuya unidad se va construyendo en torno a un proyecto analógico-hegemónico, que incluye progresivamente todas las reivindicaciones política, articuladas desde necesidades materiales económicas.

A concepção de Povo, segundo o citado autor, precisa ser compreendida como projeto que assume as semelhanças – históricas, culturais, ambientais, axiológica – antropológicas entre os seres humanos, mas não crie uma identidade universal unívoca. A leitura da obra de Dussel denota que a participação democrática própria do Povo não exaure seus significados numa postura etnocêntrica solipsista.

Sob semelhante argumento, a mencionada definição reconhece, também, as distinções analógicas, as particularidades de cada movimento social no qual contribuem para a práxis democrática habitual do Povo contra poderes hegemônicos os quais não foram legitimados para exercer o Poder para todos. Existe, nessa definição, um ir e vir dialogal entre universalismo e particularismo. 

Por esse motivo, a expressão “populista” é incompatível com a categoria política Povo. Aquela se refere ao Populismo histórico, cuja disseminação é proveniente do sentimento cultural forjado pelas comunidades políticas nacionais. Tratam-se dos interesses de pequenos grupos os quais não representam a vontade daqueles que são “dominados” pela sua atuação[42].     

Se a expressão “Populista” é compatível com o “Populismo” histórico após a década de 1930, de modo contrário, pode-se observar que a expressão “Popular” é compatível com “Povo”. Essas duas últimas categorias não representam, segundo Dussel (2007, p. 11/12), a totalidade da comunidade política, mas são denominados como “o resto”. Percebe-se que os “marginais” desse cenário antidemocrático, por meio da participação e Responsabilidade, reivindicam – e irão redimir – toda a comunidade na qual os seres humanos estão inseridos.

A América Latina possui, por meio de se desenvolvimento histórico, fortes tendências ao Populismo incentivado pela comunidade política nacional. Entretanto, as exigências culturais da Pós-Modernidade exigem que os diferentes povos desse continente ampliem seus horizontes democráticos por meio de seus projetos populares, orientados pelo consenso do Povo. A unidade humana continental desejada constitui-se, insiste-se, pela diferença – cultural, educacional, econômica, política, jurídica – a qual habita cara território.

Quando o Direito é produzido pela Consciência Jurídica desses povos, proveniente da Responsabilidade de suas decisões, do aperfeiçoamento social de sua participação em cada local (incremento dos atores sociais), a legitimidade do Poder passa a ser compartilhada para se constituir o momento presente e futuro desejados. A Utopia democrática recompõe o Populismo como espaço dialogal da unidade latino-americana presente na diferença humana e o Direito regenera, indefinidamente no tempo, as condições de exercício e exigência de um mínimo existencial razoável capaz de assegurar Dignidade para todos.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Populismo surge como vertente que, teoricamente, pode assegurar novos cenários de amplitude democrática, desde que saiba promover os diálogos de resgate à solidariedade, Responsabilidade e proximidade entre as diferentes culturas que habitam todo o continente latino-americano. Trata-se de uma sinfonia inacabada. A Alteridade reivindica, por meio da Democracia, os espaços de re-encontro com o Outro no silêncio das galerias subterrâneas do cotidiano.

Direito e Democracia podem ser caracterizadas como, respectivamente, momentos de recomposição e regeneração na América Latina. Trata-se de promover a Paz entre os povos na medida em que suas diferenças se tornam o vetor de integração para compreender as ameaças comuns as quais dificultam a superação de obstáculos históricos ao desenvolvimento entre todos.

A Pós-Modernidade sugere às duas categorias anteriormente citadas que reivindiquem possibilidades de vida para todos, desde que haja o aperfeiçoamento das relações intersubjetivas em todo o território continental. Percebe-se que não é suficiente a busca de uma Democracia e Direito as quais preservem significados etnocêntricos incapazes de reconhecer o Outro pelo vínculo antropológico comum. Esse “Rosto” alheio não é um inimigo, tampouco aparece para desestabilizar a ordem proposta nos limites territoriais nacionais. A sua presença torna-se indispensável à Educação democrática.

Por esse motivo, a categoria Povo, segundo a proposição de Dussel, é incompatível com o “Populismo” que se funda a partir dos sentimentos nacionais fechados e hegemônicos da comunidade política. Como se torna possível ampliar o horizonte democrático protegido pelo Direito quando os interesses não são comuns? A Razão Instrumental, novamente, triunfaria para tornar desmedido o diálogo axiológico entre meios e fins para se buscar uma resposta razoável aos seres humanos? Existiria Dignidade fora desses interesses os quais gravitam em torno de poucos, de pequenos grupos sociais? Que espécie de ordem criada pelo Direito pode mitigar os conflitos quando se indispõe a vivenciar, democraticamente, as dificuldades humanas históricas?

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A resposta para todas essas indagações somente se des-velam quando se compreender que a busca pela Democracia e Direito - por meio de um Populismo aberto, plural e dialogal – ocorre pela transfiguração histórica de pertença ao sentimento de Humanidade. Essa é a Utopia na qual renova, recompõe e regenera a aplicação da Democracia Hologramática inscrita na frase “um em todos, todos em um”.   


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Sobre o autor
Sérgio Ricardo Fernandes de Aquino

Doutor e Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu - Mestrado - em Direito (PPGD) no Complexo de Ensino Superior Meridional - IMED. Pesquisador do CNPq

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AQUINO, Sérgio Ricardo Fernandes. Democracia, direito e populismo: reflexões latino-americanas na pós-modernidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3637, 16 jun. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24719. Acesso em: 20 abr. 2024.

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