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A quem cabe a “última palavra” em matéria de interpretação constitucional?

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A interpretação realizada por uma corte suprema é monopólio da verdade constitucional? Não é possível ao cidadão e ao Legislativo modificar as decisões do Judiciário que contradigam a Constituição? Caberia a “desobediência civil” em face de decisões judiciais iníquas?

A aprovação da PEC 33/2011(Proposta de Emenda à Constituição) pela CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da Câmara dos Deputados, que, em tese, limita os poderes do Supremo Tribunal Federalno controle de constitucionalidades das leis, tem recebido uma leitura vinculada preponderantemente ao clima político, especialmente como uma forma de retaliação política ao julgamento do denominado “Mensalão” (Ação Penal 470) pela nossa Suprema Corte. Essa contextualização é válida, mas representa apenas uma das leituras possíveis do problema apresentado.

Há uma compreensão, nitidamente compartilhada entre setores políticos e da própria doutrina constitucional, no sentido, de que, a mencionada PEC, mexeria com a essência da estrutura de fiscalização dos atos normativos advindos do Poder Público, desvirtuando, assim, uma tradição nascida com a República brasileira a partir de 1891. Nesse diapasão, seria natural e indiscutível a competência do STF (órgão máximo do judiciário brasileiro), até porque prevista na Constituição de 1988, para a averiguação da correção dos atos normativos dos demais poderes da República, máxime no controle da correção procedimental e substancial das manifestações do parlamento. Todavia, essa primeira leitura da suposta “crise” aberta entre o legislativo e o judiciário é deveras parcial, visto existirem outras compreensões e análises da mencionada matéria. Não fosse a situação política de fundo aonde surgiu a questão, qual seja, o embate entre legislativo e o judiciário, derivado de um julgamento sem precedentes na história política brasileira, mais difícil seria o destaque da aprovação da PEC n. 33 na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados.

Uma dessas outras compreensões refere-se à acentuada judicialização da política promovida pelo Supremo Tribunal Federal Pós Constituição de 05 de outubro de 1988, máxime por conta de uma listagem longa e detalhada de direitos fundamentais no interior deste documento máximo. Ou seja, nos últimos anos, a judicialização da política pela Suprema Corte brasileira levou-a a uma postura ativista na tutela daqueles direitos fundamentais, fazendo mesmo com que a sua conduta seja muita próxima da atividade legiferante desenvolvida pelo parlamento. Nesse sentido, o ativismo do STF tem concorrido, de forma destacada com o legislativo, especialmente em função da inércia deste último, na condução e resolução de matérias muito caras ao desenvolvimento dos direitos fundamentais. Ora, esta postura pró ativa do STF pós Constituição de 1988, somada ao desconforto com o julgamento do “Mensalão”, terminou por lançar ao debate público a importante questão acerca dos limites do “ativismo” atualmente praticado pelo Supremo Tribunal Federal. Se as intenções do deputado Nazareno Fonteles (PT-PI), autor da PEC n. 33, podem parecer extremamente ambíguas, haja vista que sua agremiação teria interesse na limitação dos poderes e da autonomia do STF, de outro lado, a proposta não é completamente despropositada, porquanto existem discussões em outros países sobre os limites dos poderes de cortes constitucionais. Por exemplo, em terras norte-americanas vários autores têm colocado sob crítica aguda o monopólio da “última palavra” pelo judiciário na condução da interpretação da Constituição americana, como é caso de Larry Kramer, Akhil Amar, Jack Balkin, Sandford Levingson, Richard Parker e Mark Tushnet.A reflexão desses autores desafia a supremacia judicial na determinação dos significados e valores constantes da constituição, particularmente sobre a capacidade dos juízes de revisarem o produto normativo advindo da criação e interpretação do legislativo. Essa crítica, chamada de “constitucionalismo popular”, põe em evidência o caráter dos magistrados como últimos intérpretes da constituição frente aos desacordos caracterizadores das sociedades modernas. Se o legislativo é imbuído nas suas pautas de deliberação de altas dificuldades no alcance de consenso sobre diversos temas, como, por exemplo, aborto, casamentohomoafetivo, cotas raciais em universidades, dentre outros temas igualmente complexos do ponto de vista da concordância unânime da sociedade, o judiciário não seria alheio a tais discordâncias, mesmo porque seus membros também decidem segundo a regra da maioria. Isto é, não haveria prova de que a resposta judicial seria melhor do que a resposta legislativa na definição dos direitos da cidadania. Aqui, a referida crítica leva em consideração – enfatiza - que o legislativo é a autêntica representação da cidadania e, como tal, naturalmente interpreta e reconstrói as normas legais. Ou seja, a interpretação levada a efeito pelo legislativo estaria vinculada à soberania do povo, daí seria a melhor interpretação possível da constituição e do sistema legal. Instrumentos como o controle de constitucionalidade das leis (via judicialreview ou via sistema concentrado) só poderia ser manejado em situações limites e, dessa forma, nunca como meio de substituir a política do dia a dia legislativo na resolução, definição dos direitos fundamentais indicados na constituição. A deferência ao produto normativo do legislativo seria a regra e a interferência do judiciário apenas se daria em circunstâncias especiais, quando existisse um desvirtuamento da regra da maioria, máxime quando em jogo os direitos da minoria. Em tal compreensão, a “última palavra” na interpretação da constituição seria do legislativo, não sendo dado a um poder cujos membros não sejam eleitos pela soberania popular interferir na política ordinária do parlamento. Verifica-se nesse entendimento – de um“constitucionalismo popular” – uma concepção renovada de direito constitucional, aonde sua legitimidade vincula-se aos autores não-judiciais na interpretação constitucional (cidadão e poder legislativo), o que aponta caber a “última palavra” ao povo sobre o significado da constituição.

A crítica elaborada pelo intitulado “Constitucionalismo Popular”, em especial pela pena de Larry Kramer, lança luzes sobre o monopólio da “última palavra” na interpretação da constituição pelo judiciário. Ela provoca questionamentos que desestabilizam “verdades” tidas como indiscutíveis na doutrina constitucional tais como: a interpretação realizada por uma Suprema Corte produz um “monopólio” da verdade constitucional?;não é possível ao cidadão e ao poder legislativo modificar – via Emendas Constitucionais - as decisões do judiciário que entrem em contradição com a constituição?; caberia a questão da “desobediência civil” em face de decisões de uma Suprema Corte claramente iníquas?

A aprovação da PEC 33 traz, seja para o bem seja para o mal, à discussão essas questões. É claro que o debate no sistema constitucional brasileiro deve levar em consideração a crise de representatividade pela qual passa o poder legislativo há décadas no Brasil. Certamente o ativismo do STF não se dá motivado por uma arbitrariedade sua mas antes pelo espaço político negligenciado pelo próprio legislativo. Ocorre que essa inércia do pode legislativo não pode se traduzir numa ação ilimitada do Supremo Tribunal Federal, até porque sua ação contínua na condução de um ativismo exacerbado terminará por produzir os mesmos males que hoje permeiam as críticas ao omisso poder legislativo brasileiro.

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Sobre o autor
Francisco da Cunha e Silva Neto

advogado nas cidades de Curitiba e do Rio de Janeiro, mestre em Direito Público pela UGF-RJ, especialista em Direito Processual Civil pela PUC-PR, professor universitário

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA NETO, Francisco Cunha. A quem cabe a “última palavra” em matéria de interpretação constitucional?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3647, 26 jun. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24780. Acesso em: 28 mar. 2024.

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