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Uma revisão do princípio da legalidade tributária

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02/07/2013 às 11:03
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4. Dos conceitos jurídicos indeterminados e das cláusulas gerais

Apesar da crítica da doutrina tradicional, parte dos estudiosos do direito tributário, tais como Ricardo Lobo Torres, Ricardo Lodi Ribeiro, Luis Eduardo Schoueri, Ana Paula Dourado, José Casalta Nabais, dentre outros, defende o uso essas técnicas legislativas.

Os conceitos jurídicos são em regra indeterminados, conforme assevera Ricardo Lodi Ribeiro (2002, p. 324) citando Karl Engish, “sendo os absolutamente determinados muito raros no Direito”. Os conceitos determinados são aqueles que possuem significado inequívoco, tais como os conceitos numéricos. Também Ana Paula Dourado (2007, p. 365) reconhece a indeterminação dos conceitos jurídicos afirmando que “a indeterminação legal não pode ser eliminada, não só porque por vezes a opção por uma maior determinação conduz a respostas e resultados mais imprecisos e não manejáveis [...], como também porque a linguagem jurídica é indeterminada”.

Com a adoção de técnicas taxativas corre-se o risco de deixar de fora fatos que possuem o mesmo conteúdo econômico, dando origem a injustiças fiscais e elisão não almejada pelo legislador. Neste sentido, é positiva a lista de serviços do ISS, como dito, por apresentar termos ampliativos e extensivos, dando margem à inclusão de fatos geradores não expressamente mencionados no texto da lei.

É neste ponto que as lições de Ricardo Lodi Riberio e Ricardo Lobo Torres se mostram muito pertinentes ao afirmarem que a legalidade tributária como defendida pela doutrina tradicional se apega à segurança jurídica somente, deixando de fora a isonomia e a capacidade contributiva. Com a utilização dos conceitos jurídicos indeterminados e cláusulas gerais, bem como de listas exemplificativas, consegue-se eliminar a injustiça fiscal ao abarcar na hipótese de incidências os fatos que demonstram o mesmo valor econômico e capacidade contributiva.

Os conceitos jurídicos indeterminados são aqueles que não possuem significado imediato, necessitando do caso concreto para determinação do conceito. “Neles estão presentes conceitos de experiência e valor” (RIBEIRO, 2002, p. 325). No conceito indeterminado o legislador confere à Administração uma certa margem de apreciação, “onde esta, a partir de uma valoração objetiva, vai interpretar a norma de acordo com as concepções morais dominantes na sociedade, que não se confunde com a moral pessoal do juiz.” (RIBEIRO, 2002, p. 326). Para Ana Paula Dourado (2007) cabe aos órgãos da Administração, sob a revisão do Judiciário, preencher com valorações próprias os conceitos jurídicos indeterminados.

Eduardo García de Enterría e Tomáz-Ramón Fernández (2011) entendem o conceito jurídico indeterminado como uma técnica jurídica na qual a lei abarca uma esfera da realidade cujos limites não se mostram bem precisos no seu enunciado, ou seja, no texto da lei, mas se mostram claros no caso concreto. Para eles, existem conceitos que não admitem uma quantificação ou determinação rigorosa e por isso devem ser descritos de forma indeterminada na lei. Mas, a realidade indeterminada no dispositivo legal será determinada no momento da aplicação da lei.

Para entender a importância e, mesmo, a segurança que o uso dos conceitos jurídicos indeterminados se reveste, é necessário analisar a diferença entre esses conceitos e a discricionariedade. O uso dessa última no direito tributário poderia comprometer a segurança jurídica, mas não os conceitos jurídicos indeterminados.

Para os autores espanhóis mencionados, a diferença central entre os conceitos jurídicos indeterminados e a discricionariedade é que, nos primeiros, existe apenas uma solução justa no caso concreto, passível de revisão pelo judiciário. Além disso, nesses conceitos, não existe nenhuma margem para que o aplicador da lei atue com liberdade de decisão. Cabe a ele executar a única solução correta/justa. Porém, na discricionariedade, existem várias soluções legalmente justas e a escolha das mesmas não pode ser revisada pelo judiciário. Nas palavras de Enterría e Fernandez (2011, p. 483-484):

La discrecionariedade es esencialmente uma libertad de elección entre alternativas igualmente justas, o, si se prefiere, entre indiferentes jurídicos, porque la decisión se fundamenta normalmente em criterios extrajurídicos (de oportunidad, econômicos, etc.), no incluídos em la Ley y remitidos al juicio subjetivo de la administración. Por el contrario, la aplicación de conceptos jurídicos indeterminados es um caso de aplicación de la Ley, puesto que se trata de subsumir em uma categoria legal (configurada, no obstante su imprecisión de limites, com la intención de acotar um supuesto concreto) unas circunstancias reales determinadas; justamente por ello es um processo reglado, que se agota em el proceso intelectivo de comprensión de uma realidad em el sentido de que el concepto legal indeterminado há pretendido, proceso em el que no interfiere ninguna decisión de voluntad del aplicador, como es ló próprio de quien ejercita uma potestad discrecional.

Las concecuencias de esse son capitales. Siendo la aplicación de conceptos jurídicos indeterminados um caso de aplicación e enterpretación de la Ley que há creado el concepto, eu juez puede fiscalizar tal aplicación, valorando si la solución a que com Ella se há llegado es la única solución justa que la Ley permite. Esta valoración parte de uma situación de hecho determinada, la que la prueba le ofrece, pero su estimación jurídica la hace desde el concepto lagal y es, por tanto, uma aplicación de la Ley. Em cambio, el juez no puede fiscalizar la entraña de la decisión discrecional, puesto que sea, ésta del sentido que sea, si se há producido dentro de lós limites de la remisión lagal a la apreciación administrativa (y com respeto de lós demás limites generales que veremos), es necesariamente justa (como ló sería igualmente la solución contraria).

Portanto, o uso de conceitos jurídicos indeterminados não causa insegurança jurídica, nem confronta o princípio da legalidade tributária. Ao contrário, esses conceitos, possuindo apenas uma interpretação justa no caso concreto, se revelam um excelente instrumento para a tributação, na medida em que, além de dar segurança através da interpretação do Poder Judiciário, possibilita o uso de termos amplos, evitando os inconvenientes da taxatividade.

É preciso apenas advertir que a indeterminação dos conceitos não pode ser muito elevada, ou seja, não é recomendável que o grau de indeterminação seja muito alto, sob pena de que a Administração Pública atue com uma margem de livre apreciação na aplicação dos conceitos jurídicos indeterminados. É necessário que o “indivíduo possa ter a oportunidade de confrontar o seu comportamento à lei.” (DOURADO, 2007, p. 304).

A cláusula geral é uma hipótese legal dotada de grande generalidade destinada a abarcar um domínio de casos subordinados a seu tratamento jurídico. Em importante lição, Ricardo Lodi Ribeiro (2002) assim define as cláusulas gerais:

Ao lado dos conceitos indeterminados, a lei utiliza-se ainda, como técnica desvinculadora, as chamadas cláusulas gerais, que se traduzem na formulação da hipótese legal que, dada sua grande generalidade, abrange todo um domínio de casos subordinados a seu tratamento jurídico. São conceitos multisignificativos, que se contrapõem a uma elaboração casuística das espécies legais. A sua utilização pelo legislador não significa uma opção por conceitos abstratos, discricionários ou indeterminados, uma vez que não possuem qualquer estrutura própria, embora quase sempre resultem em um conceito indeterminado. (2002, p. 329).

As cláusulas gerais não prescrevem uma conduta, mas definem valores e parâmetros hermenêuticos. Por isso colocam em relevo o papel do intérprete, em especial do juiz para definição do caso concreto. No direito tributário, não se trata de definir uma cláusula geral tributária apta a abrigar todas as manifestações de capacidade contributiva (RIBEIRO, 2002). Trata-se do uso de uma técnica legislativa que permita, em certos casos, que o intérprete chegue à decisão correta a partir de uma abstração. Essa técnica também se opõe à casuística e oferece vantagens relativas à isonomia e capacidade contributiva.

Do mesmo modo que os conceitos jurídicos indeterminados, o grau de abstração das cláusulas gerais não deve ser muito amplo, de forma a conferir à Administração várias opções. Aqui também existe apenas uma solução justa para o caso concreto. Apesar de defender neste trabalho o uso das cláusulas gerais no direito tributário, adverte-se que seu uso deve ser restrito, a fim de que não seja substituída a vontade do legislador pela vontade da Administração ou, em última análise, pela vontade do juiz.


5. Do princípio da praticabilidade

Para José Casalta Nabais é necessário mitigar o princípio da determinação, no Brasil chamado de princípio da tipicidade ou legalidade estrita, tendo em vista o princípio da praticabilidade. Esse autor entende ser o princípio da legalidade de extrema importância no direito tributário, sendo necessário para a definição dos elementos essenciais do tributo. Entretanto, o autor lusitano permite uma maior margem de atuação da Administração por entender impossível uma determinação absoluta em lei, sendo que essa determinação acabaria por gerar novas indeterminações e lacunas não almejadas pelo legislador. Além disso, é preciso reconhecer que a complexidade da economia atual não permite uma taxatividade fiscal, sob pena de ofensa à isonomia e à capacidade contributiva. Para Nabais:

Mas esta pretensão do apuramento do real – mormente tratando-se da realidade econômica em permanente e acelerada evolução - , para além de conduzir a uma excessiva analítica da lei do imposto, capaz de pôr em causa a segurança jurídica que essa consideração do real visava salvaguardar, é, em larga medida, impossível de realizar ao nível das normas fiscais, não restando ao legislador outro remédio senão deixar essa função à administração fiscal a exercer aquando da aplicação das mesmas. Por isso, uma tributação ancorada na capacidade contributiva efectiva dos contribuintes singulares ou colectivos, ao invés da visão clássica (liberal), que reclamava uma legalidade fiscal e a consequente atribuição de uma dada “margem de livre decisão” à administração fiscal. Uma margem que, nomeadamente, lhe permita actuar eficazmente contra a fraude e a evasão fiscais, permitidas por um sistema que arvore a reserva de lei em valor absoluto, e deixe, por impossibilidade prática, de prever ou de prever adequadamente a tributação de factos que eminentes razões de justiça exigem. (2009, p.335).

Encontrando aqui pontos de contato da crise da lei com o direito tributário, Casalta Nabais (2009) assevera que o princípio da legalidade não carrega mais a carga garantística de outrora, tendo em vista os jogos de pressão que influenciam no processo legislativo. Além disso, também o Executivo não é mais entendido como um mal necessário ou um inimigo a ser combatido, tendo em vista a legitimidade dos governos no Estado Democrático de Direito. Por isso, o princípio da legalidade tributária deve ser mitigado para permitir a tributação em massa (praticabilidade) e uma atuação técnica do Executivo mais contundente. Nas palavras do autor lusitano:

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Pois bem, tendo em conta todas as transformações que vimos de enumerar, fácil é concluir que o princípio da legalidade fiscal deixou de constituir a garantia de produção de um direito fiscal justo decorrente do consentimento dos contribuintes. De um lado, a lei já não está acima de qualquer suspeita, violando com alguma frequência os direitos dos cidadãos, mormente os da(s) minoria(s) vencida(s) no parlamento. De outro lado, o executivo já não se apresenta com o carimbo de inimigo número um das liberdades, uma vez que, para além da indiscutível legitimidade democrática de que actualmente goza, está frequentemente em melhores condições, mormente de ordem técnica, do que o parlamento para ser suporte da realização da ideia de direito e tutelar as exigências tradicionalmente imputadas à ideia de autoconsentimento dos impostos subjacente a legalidade fiscal. (2009, p. 340).

No Brasil, o princípio da praticabilidade poder ser apontado como consequência do princípio da eficiência, erigido a princípio constitucional pela Emenda Constitucional nº 19/1998. Esse princípio constitucional exige que a Administração Pública preste serviços públicos à população de forma eficiente, com vistas ao resultado. E não apenas nos serviços públicos se insere a eficiência, mas também aos serviços administrativos internos. Exige-se com esse princípio que a Administração paute sua atuação voltada para os resultados, simplificação, desburocratização, economia e efetividade. Nas palavras de José dos Santos Carvalho Filho (2007):

Vale a pena observar, entretanto, que o princípio da eficiência não alcança apenas os serviços públicos prestados diretamente à coletividade. Ao contrário, deve ser observado também em relação aos serviços administrativos internos das pessoas federativas e das pessoas a elas vinculadas. Significa que a Administração deve recorrer à moderna tecnologia e aos métodos hoje adotados para obter a qualidade total da execução das atividades a seu cargo, criando, inclusive, novo organograma em que se destaquem as funções gerenciais e a competência dos agentes que devem exercê-las. Tais objetivos e que ensejaram as recentes ideias a respeito da administração gerencial nos Estados modernos (public management), segundo a qual se faz necessário identificar uma gerência pública compatível com as necessidades comuns da Administração, sem prejuízo para o interesse público que impele toda a atividade administrativa. (2007, p. 24).

Na Administração Tributária, o princípio da eficiência vai exigir que os tributos sejam lançados de forma simples e menos onerosas, com utilização de tecnologia da informação e de métodos de tributação em massa. Nesse contexto, verifica-se a importância do princípio da praticabilidade consistente na adoção de técnicas que evitem a investigação exaustiva do caso isolado e a dispensa da colheita de provas difíceis (DERZI, 2007). Em obra de vulto sobre o assunto, Mizabel de Abreu Machado Derzi (2007) assim conceitua a praticabilidade:

Praticabilidade é o nome que se dá a todos os meios e técnicas utilizáveis com o objetivo de tornar simples e viável a execução das leis. Como princípio de economicidade e exequibilidade inspira o direito de forma global. Toda lei nasce para ser paliçada e imposta, por isso não falta quem erija a praticabilidade a imperativo constitucional implícito.

Não se deve reduzir a extensão do princípio às atribuições de regulamentar as leis, inerentes às funções do Poder Executivo, constitucionalmente conferidas. A praticabilidade tem conotação mais ampla e é codeterminante de todas as formas de atividade estatal. Nesse sentido tem sido compreendida como um tipo de interpretação ou um desdobramento da tradicional regra teleológica, inspirada da fixação de inteligência e limites da compreensão das normas jurídicas. Segundo essa regra, deve-se coler o sentido da norma que acarrete aplicação mais cômoda, simples, econômica e funcional. (2007, p. 138-139).

O princípio da praticabilidade é imperativo para o lançamento de tributos em massa, tendo em vista o grande número de contribuintes e as complexidades da legislação tributária e dos fatos geradores definidos pelo legislador. Até mesmo nas situações favoráveis ao contribuinte, como as deduções, é inevitável o uso do princípio da praticabilidade.

Entretanto, deve-se atentar para o fato de que a praticabilidade entra em conflito com a taxatividade exigida pelo princípio da tipicidade fechada ou legalidade estrita. Mesmo se analisada a legalidade com a flexibilidade já apontada, constitui a praticabilidade, muitas vezes, uma afronta à legalidade tributária. Isso porque, na praticabilidade, utiliza-se de tipos médios e frequentes para aplicação em massa da legislação tributária, em substituição à realidade do caso concreto. Tal expediente pode, não raro, ser um instrumento de injustiça e afronta à capacidade contributiva.

Assim, é necessário que seja conferido ao contribuinte o direito ao contraditório e ampla defesa nos lançamento em massa, a fim de que o mesmo possa comprovar que seu caso não se coaduna com o padrão médio definido pela legislação tributária. Além disso, verifica-se que o regulamento é o instrumento utilizado pela administração para baixar normas de execução em massa da lei tributária, complementando conceitos, definindo critérios técnicos, instituindo procedimentos e prazos.

Fica por isso bem colocado o conceito do princípio da legalidade de José Casalta Nabais, consistente em colocá-lo como resultado de uma mediação entre o princípio da determinação (tipicidade) e o princípio da praticabilidade, de forma a conferir segurança jurídica ao lançamento de tributos em massa.

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Sobre o autor
Huaman Xavier Pinto Coelho

Graduado em Direito pela UFOP. Pós graduado em Gestão Pública pela UFOP. Mestre em Direito pela FUMEC. Procurador do Município de Ouro Preto (MG). Professor de Direito Tributário na UFOP. Advogado e consultor.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COELHO, Huaman Xavier Pinto. Uma revisão do princípio da legalidade tributária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3653, 2 jul. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24786. Acesso em: 26 abr. 2024.

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