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A controvérsia na lei das armas de fogo

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1. INTRODUÇÃO

O parágrafo segundo do artigo 10 da Lei das Armas de Fogo ("A pena é de reclusão de dois a quatro anos e multa,.. ., se a arma de fogo ou acessórios forem de uso proibido ou restrito") agrava em quantidade e qualidade a pena do artigo, ao prever expressamente circunstância que qualifica o tipo fundamental.

No parágrafo terceiro, após descrever tipos autônomos (incisos I a III) para os quais se aplicam as mesmas penas do parágrafo anterior (§2º), impropriamente é inserido o inciso IV ("possuir condenação anterior por crime contra a pessoa, contra o patrimônio e por tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins") que não tipifica qualquer conduta ilícita como consta nos incisos anteriores, nem qualifica o tipo básico, como parte da doutrina entende 1, aspecto relevante que pode passar despercebido aos olhos do julgador e comprometer a efetiva prestação jurisdicional à luz do Direito Penal na Constituição.


2. DOS CRIMES QUALIFICADOS

Para a correta compreensão do que suscitamos, passaremos a fazer uma rápida abordagem sobre os crimes qualificados.

O Código Penal em sua Parte Especial (arts. 121-359) descreve condutas proibidas em seus artigos, que são os tipos fundamentais ou básicos, inserindo eventualmente em seus parágrafos ou incisos circunstâncias que agravam ou atenuam a pena atribuída ao tipo básico, constituindo-se em verdadeiros tipos derivados porque qualificam ou privilegiam a conduta descrita no tipo fundamental.

Nos crimes qualificados o legislador prevê circunstâncias relevantes que acompanham o fato-crime descrito na norma penal, fixando abstratamente novos limites, mínimo e máximo, em face do tipo fundamental, vale dizer, as circunstâncias agravadoras constantes de parágrafos ou incisos estão necessariamente vinculadas à conduta descrita no artigo pertinente. No mesmo sentido os denominados crimes qualificados pelo resultado, em que este é mais grave que o previsto no tipo básico.


3. A CONTROVÉRSIA

Partindo dessa premissa, o §3º do artigo 10 da Lei 9.437/97 tratou em três dos seus quatro incisos de tipos penais autônomos (incisos I a III) sujeitos a pena "de reclusão de dois anos a quatro anos e multa"(§2º); contudo, equivocou-se ao inserir no mesmo parágrafo o fato do agente "possuir condenação anterior por crime contra a pessoa, contra o patrimônio e por tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins" (inciso IV), particularidade que acompanha o autor e não o fato-crime, porque diz respeito aos seus antecedentes ou ao seu passado.

O direito penal moderno é, basicamente, um direito penal do fato. Está construído sobre o fato-do-agente e não sobre o agente-do-fato 2, ou seja, pune-se o agente pelo que faz e não pelo que é decorrente de seu modo de ser ou seu passado voltado para a prática delituosa.

Não coadunamos com a posição adotada por Luiz Flávio Gomes e Willian Terra de Oliveira 3, que com esteio na vontade do legislador de "majorar" a pena do agente que já tenha antecedentes e pratica novo crime relacionado com arma de fogo, admite a condenação com base na culpabilidade da personalidade, sustentando-se na doutrina lusa de Anabela Miranda Rodrigues que aceita "a relevância da condenação anterior para o juízo de culpabilidade, porque o agente manifesta personalidade não consoante ao direito, apesar de já ter sido advertido antes de que deveria se conformar com as regras jurídicas".

Não nos cabe neste pequeno espaço dissertar sobre a culpabilidade de autor e as teorias que a fragmentaram, como, dentre outras, a culpabilidade do caráter, culpabilidade pela conduta de vida e, no caso, a culpabilidade da personalidade que também é defendida pelos professores de Coimbra, Eduardo Correia e Figueiredo Dias, como assinala Assis Toledo, dizendo que: "Não obstante o ardor e o engenho com que tais idéias são expostas e defendidas, o certo é que não podem elas, a nosso ver, ser adotadas, porque pressupõem a existência de um Estado ideal, utópico, ‘a-histórico’" 4.

Assim, embora se saiba que não existe nenhum sistema puro de culpabilidade, é forçoso reconhecer que tanto na culpabilidade pelo fato, como da personalidade, o fato e o agente são considerados conjuntamente e não isoladamente; todavia, na culpabilidade da personalidade em dado momento posterior, há uma desvinculação do fato, de forma a permitir que a personalidade do agente indique o rumo impreciso dos acontecimentos, enquanto na culpabilidade pelo fato o agente não é jamais desvinculado do fato-crime.

É de todo evidente que proibir uma personalidade implica a aberrante pretensão de um direito penal que ignora qualquer limite de privacidade e reserva. Qualquer tipo de autor seria inconstitucional em nosso direito positivo, porque a personalidade se vai formando com atos que são vivências (à parte do genótipo ou carga biológica herdada), mas que não podem estar proibidos enquanto eles próprios não constituam delitos 5.

Com base no direito penal moderno, pode-se afirmar que o nullum crimen nulla poena sine lege, o direito penal do fato e a culpabilidade do fato alinham-se imponentemente, numa perfeita seqüência e implicação lógicas, como colunas de sustentação de um sistema indissoluvelmente ligado ao direito penal de índole democrática 6.

Dessarte, não constituindo o inciso IV do §3º do art. 10 da Lei 9437/97 um tipo derivado do básico (art. 10), vale dizer, um crime qualificado ou circunstância qualificadora do tipo penal por total ausência de vinculação, é flagrantemente inconstitucional aplicar a pena "de reclusão de dois anos a quatro anos e multa"(§2º) sobre o agente-do-fato em virtude somente de seus antecedentes, em total desrespeito ao direito penal moderno que recai sobre o fato-do-agente para punir a sua ação típica, antijurídica e culpável. A eventual inobservância dessa garantia, ignora o princípio-garantia da legalidade ou da reserva legal ("não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia combinação legal") constante entre os direitos e garantias fundamentais da Constituição da República (art. 5º, XXXIX); princípio que se encontra vinculado a figura do tipo; daí a célebre afirmação de Beling, de que não há crime sem tipo penal: Kein Verbrechen ohne Tatbestand 6.

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4. CONCLUSÃO

Desse modo, é indevida a intervenção estatal para apenar o agente pelo seu passado, ou melhor, pelo seus antecedentes, cabendo às autoridades competentes a atenção e a reflexão devidas na busca da justiça que informa o direito penal moderno do Estado Democrático de Direito.


NOTAS:

[1]

GOMES, Luiz Flávio, OLIVEIRA, Willian Terra. Lei das Armas de Fogo. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 198, 1998.

[2]

TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5.ed., São Paulo: Saraiva, p. 235, 1994.

[3]

Lei das Armas de Fogo. Idem, ibidem.

[4]

TOLEDO, F. de A. Idem, cit., p. 242, 7ª tiragem, 2000.

[5]

ZAFFARONI, Eugenio Raúl, PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro - Parte Geral. 2. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 448-449, 1999.

[6]

TOLEDO, F. de A. Idem, cit., p. 253, 7ª tiragem, 2000.

[7]

MESTIERI, João. Manual de Direito Penal - Parte Geral. 4. ed., Rio de Janeiro: Forense, p. 60, 1999.
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Sobre o autor
Antonio José Franco de Souza Pêcego

Professor de Penal e Processo Penal. Pós-Graduado em Direito Público pela PUCMINAS. Pós-Graduando em Ciências Penais pela UNIDERP/REDE LFG em parceria com o IPAN. Membro do IBCCRIM, ICP e IBRASPP. Juiz de Direito de Entrância Final de Minas Gerais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PÊCEGO, Antonio José Franco Souza. A controvérsia na lei das armas de fogo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 53, 1 jan. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2498. Acesso em: 5 nov. 2024.

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