1. – BREVE HISTÓRICO:
Em homenagem ao princípio da legalidade, ao estabelecer o comportamento típico, terá o legislador que definir todos os seus elementos, no escopo de não restar dúvida quando da adequação do fato à norma penal, garantindo de outro modo a segurança jurídica.
Desde que a conduta logre alcançar todos os elementos da definição legal, tem-se o delito consumado. Todavia, para obsequiar, um a um, os elementos da conduta típica, o agente terá que vencer um percurso cujo início ocorre ainda no plano interno, individual, apenas na cogitação, seguindo, ao depois, já no plano externo, através dos atos preparatórios e executórios, até alcançar a consumação do modelo de comportamento previamente desenhado na lei penal e qualificado como crime.
Durante esse caminhar, tecnicamente chamado iter criminis, é possível que causas estranhas à vontade do agente interrompam o processo causal, de sorte a inviabiliza-lo. A essa situação de interrupção do iter criminis, através de circunstâncias alheias à vontade do agente, denomina-se tentativa de crime ou crime tentado.
A tentativa é, segundo definição inserta no art. 14, II, do Código Penal, a execução iniciada de um crime, que não se consuma, por circunstâncias alheias à vontade do agente.
No seu traço histórico tem-se que a investigação doutrinária da tentativa é relativamente recente na história do direito penal. Em momento mais afastado no tempo não havia preocupação com a tentativa, haja vista que a responsabilidade era estabelecida em relação ao resultado. Nessa fase, a tentativa ainda não era conhecida, tendo surgido como construção doutrinária com os práticos italianos da idade média. Até então, os romanos puniam os atos preparatórios, a tentativa (que eles ainda não distinguiam tecnicamente), e o delito consumado com a mesma pena.
A respeito, Aníbal Bruno ensina que “nos crimes privados, o dano é que dava a medida da pena. Na tentativa, não há dano efetivo, mas simples perigo de dano; não podia ter lugar a ação punitiva. Nos crimes públicos, porém, bastava muitas vezes o início da execução para configurar o fato criminoso, punindo-se então a tentativa como crime perfeito”[1].
Em momento posterior do desenvolvimento do direito romano, por influência grega, destacou-se o valor da vontade (voluntas) sobre o resultado (exitus), elaborando-se uma distinção entre o flagitium perfectum e o flagitio imperfectum, descortinando-se, assim, a tentativa como fato punível.
Não obstante tenham os romanos experimentado esta evolução, coube, porém, ao direito italiano da idade média a construção doutrinária da tentativa, que foi extraída do conceito de flagitium imperfectum. Nesse particular, ensina Aníbal Bruno “julgavam eles interpretar apenas os textos romanos, na realidade inovavam, começando a elaborar a nova doutrina[2]. Em verdade, somente no crepúsculo da idade média ganhou o debate entre os jurisconsultos italianos a doutrina da tentativa. Os glosadores reunindo disposições esparsas do direito romano relativas aos delitos não consumados (delicta publica), forneceram relevante contributo à formulação do conceito de tentativa.
Para os práticos italianos da idade média o conceito de tentativa girava em torno do iter criminis, daí a célebre definição de ALCIATO: “Aliud crimen, aliud conatus; hic in itinere, illud in meta est”[3]. Pode-se afirmar que, nesta fase, já havia a doutrina alcançado a distinção entre crime consumado e crime tentado.
A Constitutio Criminalis Carolina, no art. 178, forneceu o primeiro conceito legal de tentativa, servindo, daí por diante, de modelo para várias legislações que se propunham a fazer a necessária distinção entre os conceitos de crime consumado e tentado. Referida disposição legal, Juntamente com a Constitutio Criminalis Theresiana, publicada em 1768, que punia a tentativa quando se tratasse de crimina atrociora com pena igual ao crime consumado e distinguia três graus de tentativa, constituíam-se na base do direito italiano da idade média.
Nesse progresso, atribui-se ao Código Josefino a primazia de ter consignado em uma lei penal o requisito do começo da execução, em seguida inserido no art. 2º do Código Penal francês de 1810, que, por sua vez, serviu de espelho para o Código Penal da Prússia de 1851 e para o Código Penal Alemão de 1871.
Igual progresso, à época, não grassou a legislação portuguesa, haja vista que não se preocupou em fixar os princípios da tentativa, sendo esta apenas punida em um ou outro caso.
A Ordenação do Reino, no Livro 5, Título XXXV, § 2º, punia com a morte natural o venefício, muito embora e em seguida consignasse “ posto que tomar a peçonha se não conseguisse a morte”[4].
Na legislação brasileira, o Código Penal do Império de 1830, considerava crime, nos termos do art. 2º, item 2º, “a tentativa do crime, quando for manifestada por atos exteriores, e princípio de execução, que não teve efeito por circunstâncias independente da vontade do delinquente”. Seguindo a mesma orientação da doutrina francesa o Código Republicano de 1890, no art. 13 pontua: “Haverá tentativa de crime sempre que, com intenção de cometê-lo, executar alguém atos exteriores que, pela sua relação direta com o fato punível, constituam começo de execução, e esta não tiver lugar por circunstâncias independentes da vontade do criminoso”.
2. – TEORIAS SOBRE A PUNIBILIDADE DA TENTATIVA:
Várias teorias buscaram alcançar explicação convincente acerta da punibilidade da tentativa. Dentre elas se destacam as teorias subjetiva e objetiva, malgrado outras menos votadas tenham procurado, ora combinando elementos daquelas, ora com pequenas variações, focar com outras lentes o mesmo objeto de estudo. Dentre estas, faremos abordagem rápida acerca da teoria da impressão e da teoria sintomática.
2.1 – Teoria Subjetiva: (voluntarista)
Conforme anotam Zaffaroni e Pierangelli[5], “esta teoria possui grande número de adeptos na Alemanha, particularmente após a reforma penal de 1939 que tornou facultativa a atenuação da pena”. A teoria foi pensada primeiramente por TITTMANN, porém seu grande elaborador foi VON BURI que a introduziu e fez prevalecer na Jurisprudência do Tribunal Supremo da Alemanha.[6]
Para os adeptos da teoria subjetiva, a essência da tentativa repousa na vontade do agente. Desde que esta vontade seja externada através de atos concretos orientados a realização da conduta típica o agente merece ser punido.
Basicamente a teoria se sustenta em duplo fundamento: a) valorar igualmente todos as circunstâncias que integram o curso causal e b) considerar a vontade criminosa como um fenômeno contra o qual a lei penal é destinada. O que se deseja punir, através da punição da tentativa, segundo observa a teoria, é a vontade criminosa.
Por esta teoria incrimina-se a tentativa inidônea, vez que o importante é a vontade, o desejo criminoso do agente de produzir o resultado. Por outro lado, conduz a equiparação entre o crime tentado e o consumado, visto que a vontade que serviu de impulso à conduta é a mesma, embora a consumação não tenha ocorrido por circunstâncias alheias.
2.2 – Teoria Objetiva:
Atribui-se a Feuerbach, em 1804, a primazia de sustentar esta teoria. A seguir teria sido difundida por MITERMAIER e CARMIGNANI, tendo logrado efetivo desenvolvimento na doutrina italiana através da obra de Carrara, o grande expoente da Escola Clássica.
Exposta no escopo de refutar de forma decisiva a doutrina subjetiva, à época de grande aceitação na Alemanha, fundam-se seus postulados que a tentativa é uma fração do crime ou o começo de sua execução, de sorte que sua punição resta condicionada a que os atos praticados gerem perigo a um bem juridicamente tutelado.
Como o próprio nome denuncia, na concepção desta doutrina predomina o elemento objetivo para caracterização da tentativa, de maneira que a punibilidade tem como fundamento o perigo ao qual é exposto o bem jurídico, e sua repressão tem cabimento quando iniciada a execução do crime.
Nesse sentido, a razão de ser da punibilidade da tentativa reside em que, conforme Aníbal Bruno, “materialmente, com ela se põe em perigo um bem jurídico tutelado pela lei penal e, formalmente, nela se inicia a execução do tipo”.[7]
Assim sendo, como na tentativa a lesão ou perigo de dano não ocorreu ou, se ocorreu, é menor que na hipótese da consumação, consequentemente a reprovabilidade da conduta também deve ser proporcional ao ato efetivamente praticado, impondo-se a redução obrigatória da pena.
O Código Penal brasileiro adota a teoria objetiva, à medida que contempla pena reduzida para a tentativa e estabelece esta redução como de aplicabilidade obrigatória pelo magistrado, consoante plasmado no parágrafo único do art. 14 da Lei Penal.
Nesse passo, pode-se afirmar com Lúcia Helena Magalhães e Marcelo Gasque Furtado[8] que as características da teoria objetiva são: a atipicidade da tentativa inidônea, por não traduzir perigo ao bem jurídico tutelado e a aplicação obrigatória pelo magistrado de pena reduzida.
Afora essas duas teorias, outras menos difundidas procuraram combinar elementos de uma e outra visando fornecer fundamentos para punibilidade da tentativa. São elas: teoria da impressão e a teoria sintomática.
2.3 - Teoria da Impressão:
Tem esta teoria como base a impressão, o alarme que o fato injurídico provoca na comunidade, independente de fundamento objetivo. A tentativa gera uma ruptura na estabilidade social, produzindo uma sensação de insegurança. Como disse ROMAGNOSI “ A tentativa causa um dano injusto ao perturbar o gozo da segurança que dela tem direito de desfrutar a sociedade e seus membros. Portanto, será justo irrogar uma pena à tentativa, considerando-a tão-só como causadora do temor que infunde injustamente”[9].
2.4 - Teoria Sintomática:
Adotada por alguns seguidores da Escola Positiva, dentre eles Enrico Ferri, como variante da teoria subjetiva. Segundo seus seguidores, a conduta não terá qualquer relevância, desde que não produza um resultado injurídico, se a vontade que lhe anima não carrega em si um valor sintomático, ou seja, não demonstra uma personalidade perigosa ou temível.
Sustentam que a punibilidade da tentativa deve guardar certa proporção com o maior ou menor grau de periculosidade do agente, revelada através dos seus atos. Desse modo, a pena deve ser aplicada quando, no seu agir, demonstre o autor temibilidade.
3. – CONCEITO:
O Código Penal brasileiro não contempla o conceito de tentativa. Define, porém, o que se entende por crime tentado asseverando, no art. 14, inciso II:
“ Diz-se o crime:
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II – tentado, quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente”.
Igual técnica legislativa fora experimentada pelo Código Imperial de 1830 e pelo Código Penal de 1890. Todavia, pode-se afirmar que na legislação atual, como na pretérita, restou claro, conforme veremos oportunamente, a opção pela teoria objetiva no que pertine a punibilidade da tentativa, haja vista que nossa legislação sempre se preocupou, por influência do direito francês, em fazer consignar em seus textos a exigência de realização pelo agente de atos exteriores e princípio de execução para caracterização do crime tentado.
4. – NATUREZA JURÍDICA:
Indaga-se, em sede de doutrina, sobre a natureza jurídica da tentativa. Seria ela crime autônomo? Seria realização incompleta do modelo típico?
Não obstante respeite aqueles que enxergam-na como crime autônomo, penso que a tentativa se afigura como sendo a realização incompleta da figura típica. Isso porque não se vislumbra na tentativa existência autônoma. Ela resulta da conjugação de normas. Uma que define o crime tentado e outra(s) que contempla(m) o modelo de comportamento, levado a efeito pelo agente, que é definido na lei como típico. Por essa razão, diz-se que a norma positivada no art. 14, II, do Código Penal tem natureza extensiva.
5. – ELEMENTOS DA TENTATIVA:
Decompondo-se a figura desenhada no art. 14, II, do Código Penal, encontraremos os elementos da tentativa que são: a) início da execução; b) interrupção por circunstâncias alheias à vontade do agente; c) dolo.
6. – ESPÉCIES DE TENTATIVA:
Partindo-se do pressuposto que a vontade do agente pode ser interrompida no curso do processo causal ou mesmo não sofrer qualquer interrupção neste, de modo que o mesmo se complete, embora o resultado desejado não seja produzido, temos que há duas espécies de tentativa: a) tentativa imperfeita ou tentativa propriamente dita; b) tentativa perfeita ou crime falho.
Ocorre tentativa imperfeita ou tentativa propriamente dita, quando, iniciada a execução, há um fracionamento no processo causal por circunstâncias alheias à vontade do agente. Nessa hipótese, o agente é interrompido no seu atuar, de sorte que não exaure sua “potencialidade lesiva”, não conseguindo levar adiante seu projeto criminoso.
De outra banda, pode ocorrer que o agente realize todos os atos executórios, porém o resultado planejado não se concretiza. É a hipótese da tentativa perfeita ou crime falho. Aqui, o agente praticou todos os atos que estavam ao seu alcance, acreditando mesmo que o resultado estava concretizado, no entanto, o mesmo não se realizou por circunstâncias alheias à sua vontade. A execução se conclui, mas o resultado não se consuma.
A distinção é bastante relevante para efeito do estudo dos Institutos da desistência voluntária (só admitido na tentativa imperfeita) e do arrependimento eficaz (admitido na tentativa perfeita).
7. - CRIME IMPOSSÍVEL:
No exame da tentativa destaca-se o estudo do crime impossível. Por sinal, tema que tem sido objeto de intermináveis discussões entre os estudiosos do direito penal de hoje e de ontem.
O mais das vezes constata-se que, não obstante o seu propósito de alcançar o resultado típico, o agente jamais lograria êxito. Isso ocorre seja quanto os meios empregados para consecução do seu desiderato não se afiguram idôneos, eficazes, para alcança-lo, seja quanto o objeto jurídico no qual recairia a conduta proibida é impróprio.
Nesse quadrante, não se pune a tentativa quando, por ineficácia absoluta dos meio ou por absoluta impropriedade do objeto, é impossível consumar-se o crime, a teor da norma emblemática do art. 17, do Código Penal brasileiro. Constata-se, de logo, que há duas espécies de crime impossível: a) por ineficácia absoluta do meio empregado; b) por absoluta impropriedade do objeto.
Na hipótese primeira, temos que o meio empregado para alcançar o resultado desejado é inapto, inidôneo, absolutamente ineficaz. Importa consignar que é indispensável que o meio empregado seja absolutamente ineficaz. Sendo ele apenas relativamente ineficaz a tentativa é punível.
Na hipótese segunda, objeto no qual recairia a conduta criminosa se afigura absolutamente impróprio ao resultado colimado. Seja porque não existe, seja por não apresentar condições necessárias para que o resultado se revele. Igualmente, reclama-se que neste caso o objeto seja absolutamente impróprio.
BIBLIOGRAFIA:
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Notas
[1]- Bruno, Aníbal. Direito Penal . T. II. Rio de Janeiro, Forense, p.237, 1967.
[2] - Ob.cit. loc.cit.
[3] - Marques, José Frederico. Tratado de Direito Penal, V.II, 1ª ed., bookseller editora, p.367, 1997.
[4] - Vasconcelos, Vasco Smith de. Da Tentativa, 1932, pp.15/16, apud. Tratado de direito penal, V.II, 1ª ed. editora bookseller, 1997.
[5] - Zaffaroni, Eugênio Raúl e José Henrique Pierangelli – Da tentativa : doutrina e jurisprudência : 3ª ed. rev. e atual. – São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 1992.
[6] - Bruno, Aníbal. Direito Penal. T.II. Rio de Janeiro. 3ª ed. Forense , p.243. 1967.
[7] -Ob. Cit. P. 244.
[8] - In RT 705, Julho de 1994 – Da Tentativa.
[9] - Eugênio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangelli, ob. Cit., p.31.