O Congresso Nacional tem como principal atividade oficial a tarefa de fazer leis (law-making), embora não tenha o seu monopólio e nem se limite a legislar1. Também é um locus privilegiado de fiscalização da ação governamental, agência para recrutamento de líderes políticos, fórum de debates nacionais guiado pelo interesse público, espaço legitimador do sistema político e mecanismo de integração nacional.
Mas tudo isso apenas no papel. Na prática, o Congresso não legisla, apenas chancela iniciativas exógenas. Um percentual altíssimo de iniciativa legislativa parte do Executivo, sem falar na infinidade de medidas provisórias. E a maioria dos projetos partejados no Executivo converte-se em lei, substancialmente, da mesma forma que foi apresentada para discussão. O verdadeiro órgão legislador, hoje em dia, é o Executivo2.
Mesmo diante da fragmentação partidária que caracteriza a vida política brasileira e o fato do presidente da República, eventualmente, não contar com o apoio de uma maioria sólida não impedem que as iniciativas do executivo sejam aprovadas. Claro que o executivo dispõe de recursos que elevam a possibilidade de seus projetos serem aprovados no Legislativo, como a mobilização (ou fabricação) da opinião pública, mas isso apenas revela o controle do Legislativo por um “presidencialismo imperial”.
Quando o Parlamento toma a iniciativa de um projeto de lei é quase sempre sobre questões que o governo ou setores poderosos têm interesse mas não a suficiente coragem para enfrentar o desgaste público. Nesses casos, busca-se um parlamentar sem expressão vindo do “baixo clero” ou da “arraia-miúda” (um famoso “quem”) para dar o pontapé inicial. Se o projeto obtém êxito, ótimo; caso contrário, o desgaste segue com o bode expiatório (o parlamentar inexpressivo).
Na fiscalização da ação governamental, o Congresso não passa de um instrumento, de um acessório nas mãos do governo de plantão, numa posição de subalternidade inaceitável do ponto de vista da harmonia e independência entre os poderes. O Congresso com sua atuação fisiológica e sob o peso de favores governamentais, em vez de ser um fórum nacional de debates com visos a dirimir conflitos, converte-se no principal criador de crises políticas.
Tudo isso faz do Congresso Nacional uma “Casa de Representação”, não de representação política, mas de representação teatral, em que as deliberações e votações em plenário não passam de mise-en-scène; em que os parlamentares são reduzidos a marionetes sem valor, emprestando charme democrático a decisões previamente adotadas por minorias em gabinetes fechados sob um fundo autoritário e caudilhesco.
De outro lado, se a função própria do Congresso não é governar, e sim vigiar e controlar o governo, quem controla e vigia o Congresso? O controle popular, via eleições, a posteriori e esporádico, é pouco eficiente. A opinião pública, às vezes confundida com a opinião publicada por agentes dúbios da grande mídia, é mecanismo frágil e facilmente cooptável entre nós. Eis o grande ponto de interrogação que a sociedade brasileira se coloca: quem fiscaliza o fiscal?
Como diz o publicista alemão Martin Kriele (1980, p. 338), o Parlamento é o órgão de representação do povo por excelência porque tem as competências mais importantes, a saber: a legislação, que o converte em superior a todos os demais órgãos, porque tem uma ampla liberdade de decisão política, obrigado juridicamente apenas pela Constituição, e também pelas leis e regras de procedimento que o próprio Parlamento pode modificar. Diante de tanto poder, quem efetivamente controla essa imensa e dispendiosa “Corte Teatral”?
Se não há participação política (praticamente resumida no ato eleitoral) e se a opinião pública é manipulável, o povo só pode premiar ou punir seu representante de quatro em quatro anos. Durante esse período, a presumível vontade do eleitorado converte-se em moeda de troca dos baixos interesses dos parlamentares. Esse estado de coisas evidencia que para a consolidação da democracia, ela deve ser aceita como um fenômeno de face dupla, com duas preocupações básicas: reforma do Estado (e, no caso, especificamente do Legislativo com um choque de responsabilidade e moralidade institucional) e reengenharia da sociedade civil.
É fato reconhecido nos mais avançados sistemas representativos que os melhores indivíduos do corpo social (em termos morais e intelectuais) raramente se candidatam ao Congresso ou às Assembleias estaduais, tão reduzida é a possibilidade de serem eleitos (Mill, 1964, p. 98), com exceção dos que se prestam a sacrificar as próprias opiniões e maneira de julgar para se tornarem os porta-vozes servis de interesses escusos. Tampouco, como diz Bobbio (2011, p. 39), na luta política, mesmo na democrática (em que não há o recurso à violência), os homens serenos ou suaves não tem como participar. A tendência natural do governo representativo, ainda segundo J. S. Mill, é inclinar-se para a mediocridade coletiva.
Essa mediocridade massiva, típica dos parlamentos, assembleias e congressos, é destacada pelo filósofo espanhol George Santayana (1998, p. 146), para quem uma assembleia só tem as luzes comuns à maioria dos seus membros, ou seja, muito menos que possuem todos esses somados e menos ainda que a parte mais inteligente dos mesmos.
Por conta dessas e outras variáveis, o Congresso Nacional segue em crise e desacreditado, caindo aos pedaços como um organismo em decomposição, incapaz de se reajustar às exigências modernas e, vez ou outra, colocando o país em perigosa rota de crise e de instabilidade política. E ainda apresenta a fisionomia chocante de uma multidão de parlamentares que deve obediência a um número relativamente restrito de homens, os líderes partidários (representantes de uma partidocracia irresponsável). As grandes decisões parlamentares, as que realmente interessam ao país e ao povo, não são tomadas na publicidade do plenário, mas a portas fechadas entre meia dúzia de líderes sobre razões que nem de longe lembram o interesse público.
Na verdade, o Legislativo brasileiro coloca-se perante a sociedade como o principal sabotador da agenda política democratizadora e com os piores índices de credibilidade. Restaurar o comprometimento com os interesses representados é um componente vital da representação e, no caso específico da instituição legislativa brasileira, requisito indispensável para reconquistar a confiança que o povo deposita em seus parlamentares. O corpo representativo brasileiro deve ser para a nação, numa feliz imagem de Mirabeau (apud Lima Júnior, 1997, p. 49), aquilo que um mapa é para a configuração física de seu solo: em todas as suas partes, e no conjunto, o Congresso Nacional deve sempre apresentar um quadro reduzido do povo – de suas opiniões, aspirações e desejos, e esta representação deve significar uma proporção relativa do original, precisamente como um mapa apresenta montanhas e vales, rios e lagos, florestas e planícies, cidades e vilas.
Referências:
BOBBIO, Norberto. Elogio da Serenidade. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Unesp, 2011.
KRIELE, Martin. Introducción a la teoría del Estado – fundamentos históricos de la legitimidad del Estado constitucional democrático. Tradução de Eugenio Bulygin. Buenos Aires:Depalma, 1980.
LEIBHOLZ, Gerhard. Problemas Fundamentales de la Democracia Moderna. Tradução de Eloy Fuente. Madrid:Instituto de Estudios Políticos, 1971.
LIMA JÚNIOR, Olavo Brasil de. Instituições políticas democráticas. O segredo da legitimidade. Rio de Janeiro:Jorge Zahar Editor, 1997.
LIPSON, Leslie. A Civilização democrática. Vol. II. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro:Zahar, 1964.
MILL, John Stuart. Governo representativo. Tradução de E. Jacy Monteiro. São Paulo:Ibrasa, 1964.
SANTAYANA, George. The life of reason. New York:Prometheus Books, 1998.
Notas
1 Na verdade, a feitura de leis não foi uma função original dos órgãos a que hoje chamamos Legislativos, mas um acréscimo posterior na instituição que se reunia para outros fins diversos - como autorizar a coleta de fundos para o erário real e estabelecer um fórum nacional para apresentar reclamações (Lipson,1964, p.588-589).
2 Alguns autores, diante do fantasma de uma sociedade dominada por tecnocratas chegam a aventar a hipótese do Parlamento ser uma instituição prestes a desaparecer (G. Leibholz, 1971, p. 82).