4. A dignidade humana na Constituição Federal de 1988
Diante de uma simples análise, já se denota claramente que a Constituição Cidadã erigiu a dignidade humana a verdadeiro fundamento da República, senão, vejamos:
Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
III – a dignidade da pessoa humana
Por fundamento, entenda-se o alicerce, base de um edifício, principal apoio, base, causa e motivo.
Destarte, segundo esta redação, este valor ou atributo humano seria um dos alicerces principais da República Federativa do Brasil. A despeito de o texto constitucional não definir precisamente esta locução normativa, decerto, possui uma densidade mínima de significado. Nesse sentido, assevera Celso Antônio Bandeira de Mello:
“[…] tem-se que aceitar logicamente, por uma irrefreável imposição racional, que mesmo que os conceitos versados na hipótese da norma ou em sua finalidade sejam vagos, fluidos ou imprecisos, ainda assim têm algum conteúdo determinável, isto é, certa densidade mínima, pois, se não o tivessem não seriam conceitos e as vozes que os designam sequer seriam palavras. (1992, p.28-29).”
De fato, a Carta da República não incluiu a dignidade da pessoa humana como sendo um direito a ser reconhecido, protegido e assegurado no rol do artigo 5º, o qual se refere aos direitos fundamentais. Ao revés, optou a Assembleia Nacional Constituinte por prever a dignidade humana de forma esparsa no texto da lei Maior, implicitamente em diversos dispositivos ou, ainda, de forma expressa nos artigos 1º, inciso III, 170, caput e 226, parágrafo 7º.
Nesse momento, faz-se pertinente a seguinte indagação: qual a razão ou motivo que levou o legislador constituinte a inserir a dignidade humana entre os fundamentos da República e não entre o rol dos direitos fundamentais?
Segundo o posicionamento do eminente Prof. José Afonso da SiIva: .
“[…] a eminência da dignidade da pessoa humana é tal que é dotada ao mesmo tempo da natureza de valor supremo, princípio constitucional fundamental e geral que inspira a ordem jurídica. Mas a verdade é que a Constituição lhe dá mais do que isso, quando a põe como fundamento da República federativa do Brasil constituída em Estado Democrático de Direito. Se é fundamento é porque se constitui num valor supremo, num valor fundante da República, da Federação, do País, da Democracia e do Direito. Portanto, não é apenas um princípio da ordem jurídica, mas o é também da ordem política, social, econômica e cultural. Daí sua natureza de valor supremo, porque está na base de toda a vida nacional.”
Não é demais afirmar que a dignidade da pessoa humana se tornou a fonte legitimadora da atuação pública, devendo permear, igualmente, o comportamento em âmbito particular. As palavras precisas do renomado jurista alemão Peter Häberle mostram-se precisas, na medida em que aduz:
“Também o Estado constitucional há de fazer sua parte respeitando e protegendo; disso resulta a legitimidade do seu poder estatal. Dignidade humana, como fundamento do Estado constitucional e de seus “poderes”, necessita simultaneamente do – seu protetor – o poder estatal. […] Do art. 1º da LF [Constituição da Alemanha] podem resultar deveres, diretos de legislar. O dever de proteção possibilita a “defesa móvel e prospectiva” da dignidade humana e levanta questões a respeito dos limites da dignidade humana e a respeito dos instrumentos protetivos adequados.”
Desta maneira, a dignidade humana é considerada por diversos doutrinadores como fonte legitimadora do poder estatal num Estado Democrático de Direito, verdadeiro valor maior e fundante para todo o ordenamento jurídico, servindo de esteio principalmente para todo e qualquer ato do poder público, cujos mandamentos e atos apenas serão devidos se buscarem sua efetivação.
A despeito do caráter relativo da dignidade humana retromencionado, certo é que a Constituição Federal entende ser necessário que se dê concretude a um mínimo de dignidade, o qual se denomina mínimo existencial. No ordenamento jurídico pátrio, este mínimo existencial estaria ligado aos direitos assegurados nos artigos 5º e 6º da atual Constituição.
Tema de grande importância é o que se refere ao mínimo existencial, expressão que surgiu no Tribunal Federal Administrativo da Alemanha, em 1953, o qual foi incorporado pela Corte Suprema Alemã em momento posterior. Tal instituto foi trazido ao Brasil pelo tributarista Ricardo Torres.
Em apertada síntese, denomina-se mínimo existencial o conjunto de bens e utilidades indispensáveis a uma vida digna. Corresponde, certamente, ao mínimo que deve ser alcançado para que uma pessoa tenha uma vida digna, sendo, por conseguinte, um subgrupo menor dentro dos direitos sociais. Sua criação tem por escopo atribuir efetividade a esses direitos. A Lei Maior não é apenas uma Constituição semântica, mas, sim, uma Constituição normativa, cujas normas são obrigatórias, vinculantes e superiores a todas as outras.
Ainda no que se refere ao mínimo existencial, nota-se queo antigo Tribunal Alemão retirava a essência do mínmo existencial de três normas constitucionais, quais sejam, liberdade material, dignidade da pessoa humana é o principio do estado social. [5]
Alguns doutrinadores como, por exemplo, Ricardo Torres,afirmam que não haveria um conteúdo certo e preciso do que venha a ser mínmo existencial, sendo necessário, pois, a análise da necessidade de cada época e de cada sociedade. No entanto não nos parece que seja o entendimento que atribua maior efetividade ao mínimo existencial. Mesmo que não haja menção sobre um conteúdo determinado e universal, cada sociedade deve prever um mínimo de direitos, isto é, um núcleo de direitos que devem ser assegurados e inviolados, seja por ação estatal ou em âmbito privado. Proceder dessa forma é garantir não apenas a dignidade humana, mas, também, a existência de todos.
A Prof. da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Ana Paula de Barcellos, leciona que o mínimo existencial abrangeria no mínmo quatro direitos, dentre os quais, a educação, a saúde, a assistência aos desamparados e o acesso à justiça. Em contrapartida, outros doutrinadores não se restringem a estes quatro direitos, mas elencam, também, o direito moradia, não no que consubstancia um direito a ter uma casa dada pelo Estado, mas, sim, o direito a um abrigo onde as pessoas possam se proteger.
Tese digna de menção neste trabalho que vai de encontro à teoria do mínmo existencial é a reserva do possível. Tal expressão, também oriunda da Alemanha do ano de 1972, precisamente da Suprema Corte Alemã. Fato é que, nesta época, a Constituição Alemã não consagrava um rol de direitos sociais. Algumas pessoas se dirigiam ao Poder Judiciário a fim de que este assegurasse o acesso ao ensino superior. No entanto, a Suprema Corte consignava que não haveria possibilidade de o Estado fornecer vaga para todos, cabendo ao legislativo dar prioridade ou não de investimento necessário ao ensino superior consagrando, dessa forma, a teoria da reserva do possível do Estado.
Segundo Andreas Krell[6],o tema da reserva do possível não poderia ser trazido à realidade brasileira, pois prejudicaria sobremaneira a concretização dos direitos sociais. Já o jurista Daniel Sarmento entende que, exatamente em decorrência da limitação de recursos disponíveis pelo Estado (escassez de recursos frente à infinita demanda) será possível, sim, a utilização da teoria da reserva do possível.
Finalmente, na concepção do renomado doutrinador Ingo Sarlet, a reserva do possível pode ser visualizada em três dimensões:
a) 1ª dimensão: Possibilidade fática – relaciona-se com a existência de recursos necessários para a satisfação dos direitos prestacionais. Deve-se analisar se o Estado possui recursos necessários para o atendimento dos direitos sociais e se dispõe de recursos para tratamento de determinado indivíduo ou de todos que necessitem.
b) 2ª dimensão: Possibilidade jurídica – envolve a limitação do orçamento (princípio da legalidade do orçamento), bem como a análise das competências federativas. Caso os recursos orçamentários fossem destinados desrespeitando a proporcionalidade e razoabilidade, seria, plausível a intervenção do Judiciário sendo, pois, uma exceção a não intervenção do Judiciário.
c) 3ª dimensão: Proporcionalidade da prestação e razoabilidade da exigência – a reserva do possível só deve ser admitida quando da existência de justo motivo, objetivamente aferível.
5. A dignidade humana no ordenamento jurídico e seu entendimento jurisprudencial
Como ressaltado neste trabalho, a dignidade humana não é tema meramente teórico ou abstrato circunscrito apenas ao âmbito doutrinário, mas, volta-se, igualmente, para diversas discussões jurisprudenciais, estando presente em diversas legislações esparsas.
A propósito, confira-se o artigo 5º, incisos XLVII e XLIX, da Constituição Federal de 88, respectivamente:
XLVII - não haverá penas:
a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX;
b) de caráter perpétuo;
c) de trabalhos forçados;
d) de banimento;
e) cruéis;
XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral;
Destes preceitos normativos, percebemos de forma nítida que o legislador constituinte de 88 teve por escopo, senão, proscrever, isto é, banir, abolir ou proibir determinados tipos de pena, considerados, inegavelmente, como atentatórios à dignidade da pessoa humana, o que, evidentemente, não se coadunaria com os valores propagados pelo texto constitucional.
Sendo assim, mesmo o criminoso condenado não pode ser destituído de sua personalidade ou de respeito. No mais, aquelas penas que impõem sofrimento extremado ao condenado também estão extintas. Como bem dispõem os incisos acima verificados, o respeito deve cingir-se à sua incolumidade física e mental, tencionando o Estado a trazer de volta à sociedade o condenado devidamente tratado e em melhores condições que as existentes quando entrou na prisão.
Nessa linha de raciocínio, confira-se a lei 8.009/90, a qual se refere à impenhorabilidade do bem de família. Nesse contexto, necessário mencionar sobre a teoria do patrimônio mínimo, cuja autoria se atribui ao cultuado doutrinador Luiz Edson Fachin. [7] Em termos objetivos, esta teoria preceitua que o homem passa a ser o epicentro de todo o direito privado, em franco detrimento ao patrimônio. Portanto, para que o ser humano viva com dignidade deve a ele ser assegurado um mínmo de patrimônio para que viva com dignidade. Nítida, portanto, é a relação entre a proteção do bem de família, isto é, sua impenhorabilidade e a teoria do patrimônio mínimo, tendo em vista que aquela constitui uma das vertentes desta.
Ademais, cumpre fazer alusão ao julgamento de recurso especial, oriundo da 3ª Turma do Superior Tribunal, cuja relatoria se atribui à Ministra Nancy Andrighi, in verbis: [8]
“[...] Ocorre que, como visto acima, o sistema de proteção legal conferido às verbas de natureza alimentar impõe que, para manterem essa natureza, sejam aplicadas em caderneta de poupança, até o limite de 40 salários mínimos, o que permite ao titular e sua família uma subsistência digna por um prazo razoável de tempo. Valores mais expressivos, superiores aos 40 salários mínimos, não foram contemplados pela impenhorabilidade fixada pelo legislador, até para que possam, efetivamente, vir a ser objeto de constrição, impedindo que o devedor abuse do benefício legal, escudando-se na proteção conferida às verbas de natureza alimentar para se esquivar do cumprimento de suas obrigações, a despeito de possuir condição financeira para tanto. O que se quis assegurar com a impenhorabilidade de verbas alimentares foi a sobrevivência digna do devedor e não a manutenção de um padrão de vida acima das suas condições, às custas do devedor. Sendo assim, não se vislumbra na espécie a violação dos artigos. 620, 649, IV e X, do CPC e 3º da Lei nº 9.467/97.”
Neste caso, a relatora do recurso entendeu que o fim maior da impenhorabilidade das quantias de depósito em poupança é, simplesmente, propiciar um mínimo existencial ao devedor, tendo em vista o valor e atributo maior da dignidade da pessoa humana.
Por derradeiro, resta-nos trazer exemplos de casos concretos, a fim de analisar o entendimento jurisprudencial, no que concerne a aplicação do atributo da dignidade humana.
Em primeiro plano, insta esclarecer a questão da transfusão de sangue e da testemunha de Jeová. Sem dúvida, trata-se de tormentoso tema, haja vista que a própria Constituição Federal assegura amplamente tanto a liberdade de religião [9], como, também, o direito à vida. Fato é que os membros dessa religião não se subordinam a tal procedimento, com base em um trecho da bíblia. Sendo assim há um conflito entre a liberdade religiosa e o direito à vida. O primeiro entendimento cinge-se à ideia de que as testemunhas de Jeová podem recusar a transfusão diante da liberdade de crença e a dignidade da pessoa humana. De forma diametralmente oposta, a segunda corrente afirma que é possível e necessária a intervenção judicial para salvar a vida do paciente, mesmo que seja contra a sua vontade, haja vista que o direito maior do ordenamento pátrio é a vida e sem ela não é possível postular nenhum direito. Esta segunda corrente vem sendo mais aceitae, ainda reputada mais coerente, pois baseada nos termos da resolução 1021/80 do conselho federal de medicina (CFM) e nos termos do Código de Ética Médica.
Outro exemplo bastante significativo foi o apresentado pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na área da saúde, resultando no ajuizamento da ADPF 54 [10]. No julgamento desta ação, prevaleceu o entendimento de que a antecipação terapêutica do parto do feto anencefálico não é aborto, não havendo em se falar em tipicidade de qualquer conduta criminosa. Fez-se necessária uma ponderação entre a dignidade da pessoal humana, a liberdade sexual e o direito à vida do feto. Restou como majoritário o entendimento de que deveria haver uma interpretação histórico evolutiva do código penal, de sorte a acrescentar a hipótese de aborto em casos de acrania, ao lado, evidentemente, do aborto terapêutico ou necessário e do aborto sentimental.
A esse respeito colacionamos o entendimento do eminente Ministro Marco Aurélio de Mello:
“[...] Aborto é crime contra a vida. Tutela-se a vida em potencial. No caso do anencéfalo, não existe vida possível. O feto anencéfalo é biologicamente vivo, por ser formado por células vivas, e juridicamente morto, não gozando de proteção estatal.”
Digno de nota é o exemplo bastante citado na doutrina do “arremesso de anões”. Trata-se de uma prática, da qual se valiam algumas pessoas que iam a determinado local e se divertiam arremessando os anões, que consentiam com tal prática e auferiam remuneração com esta. Neste diapasão, vem a lume a seguinte indagação: é possível a intervenção estatal de modo a proibir este fato? Não é melhor permitir estes eventos, em vez de deixar o anão em casa desempregado? Certo é que, no final deste episódio marcante, as autoridades proibiram-no com fundamento no princípio da dignidade humana, haja vista que o desrespeito a um anão quando arremessado não se restringe unicamente a sua pessoa, mas a todos os anões.
Inúmeras são as decisões que mencionam o valor da dignidade humana:
“[...]a dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos do Estado democrático de direito, ilumina a interpretação da lei ordinária” (STJ, HC 9.892-RJ, DJ 26.3.01, Rel. orig. Min. Hamilton Carvalhido, Rel. para ac. Min. Fontes de Alencar). “[...] fornecimento compulsório de medicamentos por parte do Poder Público (STJ, ROMS 11.183-PR, DJ 4.9.00, Rel. Min. José Delgado), a nulidade de cláusula contratual limitadora do tempo de internação hospitalar (TJSP, AC 110.772-4/4-00, ADV 40-01/636, nº 98859, Rel. Des. O. Breviglieri), a rejeição da prisão por dívida motivada pelo não pagamento de juros absurdos (STJ, HC 12547/DF, DJ 12.2.01, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar), o levantamento do FGTS para tratamento de familiar portador do vírus HIV (STJ, REsp. 249026-PR, DJ 26.06.00, Rel. Min. José Delgado) [...].”