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Louvando a “carta da laicidade” ou como se tornar, sem esforço, um intelectualóide bobo alegre

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07/10/2013 às 14:14
Leia nesta página:

Trata o texto de uma crítica à chamada "Carta da Laicidade" francesa recentemente divulgada.

1 - À GUISA DE INTRODUÇÃO: O ESTADO DA ARTE

Em meio ao mar de absurdidades que compõe o “Politicamente Correto” a dominar mentes e corações na contemporaneidade, eis que surge a tal “Carta da Laicidade” francesa.

Como já seria de esperar, no contexto imbecilizante e hipnótico em que se acha a sociedade civil e mesmo (ou até principalmente) os meios acadêmicos onde pululam supostos “intelectuais” (sic), essa “Carta” espúria vai sendo acatada com encômios e aplausos.

Noticia-se que nas escolas francesas foram proibidas vestimentas ligadas a uma confissão religiosa, tais como o véu e o kipah, bem como o uso do crucifixo. E tudo isso é alardeado como uma alvissareira notícia vinda de um país que optou pela secularidade, no qual não se permite a confusão entre Estado e Igreja, seja pelo primeiro, seja por qualquer indivíduo. Dessa forma, a religião é conduzida sob vara ao âmbito estritamente privado das casas e dos templos. [2]

Segundo o Ministro da Educação da França, Vicente Paillon, “a laicidade é uma batalha que não opõe uns aos outros, mas uma batalha contra aqueles que querem opor uns aos outros”. [3] A ilogicidade de mais essa “frase de efeito” oca que marca todos os discursos politicamente corretos será devidamente esmiuçada mais adiante.

Fala-se também, por estas terras mimético – hipnóticas, da chamada “Carta da Laicidade” como um marco de resistência “às investidas dos radicais da fé” (sic). [4] Também sobre isso, ver-se-á mais adiante como o senso de proporção é algo que já não cabe nas mentes dos supostos intelectuais e, consequentemente, no senso comum de um mundo tomado por ideologias que convergem para um pensamento único que não admite qualquer contestação, a qual é sempre rotulada como “reacionária”, “radical”, “fanática”, “fascista”, “ultradireitista” ou por outros adjetivos cujo significado já nem se sabe mais e não importa, porque a única coisa que importa é a repetição do mantra politicamente correto com suas “frases feitas” e suas “palavras de ordem”.

A “Carta da Laicidade “ se compõe de 15 mandamentos transcritos a seguir (os grifos são nossos): [5]

1) A França é uma república indivisível, laica, democrática e social que respeita todas as crenças;

2) A república laica organiza a separação entre religião e estado. Não há religião do Estado;

3) O laicismo garante a liberdade de consciência. Cada qual é livre para crer ou não crer.

4) O laicismo permite o exercício da cidadania, conciliando a liberdade de cada um com a igualdade e a fraternidade.

5) A república garante o respeito a seus princípios na escola;

6) O laicismo na escola oferece aos alunos as condições para forjar sua personalidade e os protege de todo proselitismo e toda pressão que os impeça de fazer sua livre escolha;

7) Todos os estudantes têm garantido o acesso a uma cultura comum e compartida;

8) A Carta do Laicismo assegura também a liberdade de expressão dos alunos;

9) Garante-se o repúdio às violências e discriminações e assegura-se a igualdade entre meninas e meninos;

10) O pessoal das escolas está obrigado a transmitir aos alunos o sentido e os valores do laicismo;

11) Os professores têm o dever  de ser estritamente neutros;

12) Os alunos não podem invocar uma convicção religiosa para contestar uma questão do programa;

13) Não se podem rechaçar as regras da escola invocando uma filiação religiosa;

14) Está proibido portar signos ou objetos com os quais os alunos manifestem ostensivamente suas filiações religiosas;

15) Com suas reflexões e atividades, os alunos contribuem para dar vida à laicidade no seio do estabelecimento escolar.

Para o bom entendedor, somente os grifos já podem dar indicação das inconsistências paroxísticas que compõem esse documento infame. Mas, no próximo tópico proceder-se-á a um aprofundamento acerca de cada ponto e da postura passiva e até ufanista com que se recebe no seio intelectual e midiático essa espécie de lesão tremenda à liberdade.


2-PARA QUE VOCÊ NÃO SE CONVERTA EM UM BOBO ALEGRE

O mínimo que se pode esperar de alguém que se meta a escrever alguma coisa sobre “laicismo” ou “laicidade”, seja uma “Carta” com pretensões reguladoras, embora sem caráter jurídico, seja um texto em “louvor” a essa “Carta” ou às ideologias ali expostas, é que procure primeiro saber do que está falando!

E não é tão difícil, desde que não se esteja fingindo não saber o que se sabe ou contente em simular saber o que não se sabe. Não é tão difícil porque a bibliografia e os relatos históricos sobre o surgimento do laicismo são praticamente inabarcáveis para a leitura durante a vida de um ser humano. Então, por falta de bibliografia é que a ignorância não será jamais justificada. Ou ela deriva de hipnotismo ideológico, de obtusidade mórbida ou de pura má fé.

Há um livro de todos conhecido cujo nome técnico é “Dicionário” e o apelido popular é “Pai dos Burros”. Pois é, consultando um simples dicionário filosófico até o mais analfabeto em história política, filosofia e religião poderá se informar e perceber claramente que essa “Carta da Laicidade” é um documento totalitário e que nada, absolutamente nada, tem a ver com o conceito de laicismo. Basta, portanto, abrir um dicionário e constatar o embuste totalitário de mais uma manobra insidiosa do “pensamento único”.

Indo diretamente à fonte:

LAICISMO (in Laicism; fr. Laïcisme, it. Laicismo). Com este termo entende-se o princípio  da autonomia das atividades humanas, ou seja, a exigência de que tais atividades se desenvolvam segundo regras próprias, que não lhes sejam impostas de fora,  com fins ou interesses diferentes dos que as inspiram. Esse princípio é universal e pode ser legitimamente invocado em nome de qualquer atividade humana legítima, entendendo-se por ‘legítima’ toda atividade que não obste, destrua ou impossibilite as outras”. [6]

Só por esse aperitivo já se percebe com clareza que a laicidade não comporta uma série de regramentos heterônomos a imporem ou proibirem condutas públicas ou particulares, desde que tais condutas não interfiram na liberdade alheia. O laicismo é um conceito libertário e liberal, que não se coaduna com uma “Carta” escrita em tom imperativo e que pretende impor um pensamento padronizado e reprimir a liberdade religiosa das pessoas.

Carvalho alerta para o fato de que

“Um princípio certo sempre pode ser usado de maneira errada. Se nos apegamos à letra do princípio, sem reparar nas ambiguidades estratégicas e geopolíticas envolvidas na sua aplicação, contribuímos para que a ideia criada para ser instrumento da liberdade se torne uma ferramenta para a construção da tirania”. [7]

O que se vai dizer agora talvez assuste tremendamente o Ministro da Educação francês e seus prosélitos brasileiros e mundiais porque seus pensamentos são aquele segundo o qual tudo aquilo de que não têm conhecimento não existe. Dessa forma se assustam facilmente e desacreditam informações verdadeiras ou fugindo do debate ou permanecendo inertes com um sorriso irônico abobado de pretensa superioridade estampado no rosto. E isso é terrível porque se fosse assim, dada a ignorância de cada um de nós e mais ainda daqueles que teimam em idiotizar-se alegremente, faria com que praticamente todo o universo não passasse de uma quimera ou conto de fadas. A única realidade palpável seriam seus umbigos e suas ideologias (portanto, somente seus umbigos). O que se vai afirmar e que pode assustar é que a própria ideia de laicismo advém de fonte religiosa. É isso mesmo. O precursor da laicidade ou da separação entre os poderes eclesiástico e temporal foi o Papa Gelásio I, isso já no final do século V, com sua conhecida “Teoria das Duas Espadas”. E essa tendência prossegue pelas mãos de canonistas como Estevão de Tournai (século XII) e filósofos da Igreja como o frade franciscano Guilherme de Ockham (século XIV). Além disso, os intelectualóides que se arvoram a defender essa “Carta” indecente deveriam, por simples coerência, abrir mão de seus títulos acadêmicos, que ostentam e afagam com tanto ardor. É, porque o próprio sistema universitário e os primórdios da ciência, com seus títulos (Doutor, Mestre etc.) são obra da Igreja Católica, à qual a civilização ocidental deve muito mais do que imagina e, principalmente, do que é levada a crer por meio de distorções históricas e desproporções comumente alardeadas como verdades incontestáveis nos meios acadêmicos. [8]  Na verdade

“os únicos adversários autênticos do laicismo são as correntes  políticas totalitárias, que pretendem apoderar-se do poder político e exercê-lo com o único objetivo de conservá-lo para sempre. Tais correntes pretendem de fato assenhorar-se do corpo e da alma do homem, para impedir qualquer crítica ou rebeldia”. [9]

É exatamente pela invasão mediante arrombamento das consciências das pessoas com a imposição de ideologias, sejam elas de que natureza forem (econômicas, religiosas, políticas etc.), que se conforma um totalitarismo que escraviza não somente o corpo, mas também a alma das pessoas. Sempre que o Estado toma as rédeas e tem a pretensão de determinar milimetricamente a conduta das pessoas, suas ideias, seus conceitos, suas crenças, limitando a liberdade de discussão e argumentação seu destino é totalitário porque simplesmente não admite o pluralismo, nem o homem enquanto homem com vícios e virtudes, mas passa a planejar um “mundo melhor”, um “homem melhor”, concebido ao seu molde. Todo aquele que se rejubila com isso só pode ser um bobo alegre ou um mau caráter. Isso porque ou está embarcando como um idiota útil na falácia arquitetada ou é então um dos arquitetos conscientes dela.  No primeiro caso entrega sua própria consciência como um cordeirinho acrítico e se transforma em uma espécie de autômato repetidos de “frases de efeito” e “palavras de ordem”, não restando sequer um mínimo de personalidade que se não tenha mesclado num coletivo opressor e redutor. Já no segundo, colabora de forma consciente para o domínio de toda a coletividade, visando transformá-la em mera massa de manobra para fins de concreção de uma ideologia qualquer. Utiliza então o homem como instrumento, o reifica para fins alheios, o que já era desde antanho denunciado como absolutamente imoral por Kant. Com correção aduzia o filósofo “o homem – e, de uma maneira geral, todo o ser racional – existe como fim em si mesmo, e não apenas como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade”. E mais adiante estabelece Kant seu imperativo prático nos seguintes termos: “age de tal maneira que possas usar a humanidade, tanto em tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio”. [10] Como bem destaca Johnson, ao tratar da história da revolução comunista russa e da personalidade de Lênin, o contexto é de perseguição de um poder total para o qual as pessoas não importam, não são mais que o solo em que pisa o governante. [11]

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A desconsideração da subjetividade e da centralidade do ser humano em prol de um sistema qualquer, de uma ideologia, o transmuda de centro e fim do Direito para uma condição de mero objeto de normas abstratas e instrumento de fins sociais duvidosos. O homem passa a ser considerado tão somente uma espécie de base de sustentação psicofísica para uma atuação simbólica, cujos fins lhes são estranhos, externos ou até destrutivos.

As correntes políticas totalitárias são facilmente reconhecíveis

“exatamente por sua atitude em relação ao princípio do laicismo: quer se apoie numa confissão religiosa, quer se apoie numa ideologia racista, classista ou de qualquer outra espécie (inclusive antirreligiosa ou ateísta), tendem, em primeiro lugar, a diminuir e em última instância a destruir a autonomia das esferas espirituais, assim como tendem a diminuir e a destruir os direitos de liberdade dos cidadãos. No plano das interrelações das atividades humanas, o laicismo desempenha o mesmo papel da liberdade no plano das interrelações humanas: é o limite ou a medida que garante a essas atividades a possibilidade de organizar-se e desenvolver-se, assim como a liberdade é o limite e a medida que garante às relações humanas a possibilidade de manter-se e desenvolver-se” (interpolação nossa).  [12]

Aliás, pode-se afirmar com segurança que o totalitarismo é facilmente identificável e discernível até mesmo de regimes que configuram meros autoritarismos ou ditaduras, porque nestes últimos o governo se satisfaz em regular as práticas políticas dos cidadãos, deixando suas convicções íntimas totalmente livres. Já nos regimes totalitários mais ou menos sutis (e hoje eles se apresentam de formas cada vez mais sutis e com rostos benevolentes e humanos), o intento é dominar o ser humano externa e até internamente, não somente ter controle sobre o que ele faz, mas sobre o que ele é.

Arendt já havia diagnosticado isso há tempos:

“É facilmente perceptível uma das diferenças mais berrantes entre o antigo governo pela burocracia e o moderno governo totalitário: os governantes russos e austríacos da antes da Primeira Guerra Mundial contentavam-se com a ociosa irradiação do poder e, satisfeitos em controlar seus destinos exteriores, deixavam intacta toda a vida espiritual interior. A burocracia totalitária, conhecendo melhor o significado do poder absoluto, interfere com igual brutalidade com o indivíduo e com sua vida interior. Como resultado dessa radical eficiência, extinguiu-se a espontaneidade dos povos sob o domínio totalitário juntamente com as atividades sociais e políticas, de sorte que a simples esterilidade política, que existia nas burocracias mais antigas, foi seguida de esterilidade total sob o regime totalitário”. [13]

A opressão exercida contra a manifestação da religiosidade, que é um dos atributos humanos mais profundos, constitui uma indevida e espúria invasão de um campo que diz respeito ao indivíduo e somente a ele na medida em que não implique também na opressão de outras pessoas pelo próprio indivíduo. A manifestação pública ou privada de religiosidade, consistente em vestimentas, ostentação de símbolos, orações etc., sem impor a quem quer que seja os mesmos costumes não ofende a liberdade de outrem. O que ofende a liberdade do religioso ou crente é o impedimento unilateral e arbitrário de sua manifestação. A violação de seu próprio “modo de ser no mundo”, que equivale, guardadas as devidas proporções (porque a religiosidade tem um caráter mais profundo), a impedir uma pessoa de usar determinadas roupas, um travesti de se vestir de mulher, um adepto de uma “tribo urbana” como, por exemplo, os “Punks” ou os “Emos” de usarem suas roupagens e praticarem seus trejeitos. Mas, o senso de proporção hoje parece ter simplesmente desaparecido num passe de mágica, pois que se alguém se atrever a defender qualquer espécie de inibição dessas manifestações será acusado de desumanidade no mais alto grau, de preconceito, racismo etc. No entanto, oprimir um sentimento importantíssimo do homem, componente da história da própria humanidade, que é o sentimento religioso, passa simplesmente despercebido ou até é motivo de aplausos!

Se é verdade que já houve e há fanatismos religiosos e opressões de imposição de determinada religião às pessoas, perseguindo credos distintos e ateus, também igualmente é verdadeiro que o que se deve buscar é a convivência pacífica entre as crenças e inclusive entre os não – crentes. O Estado Laico existe exatamente para garantir a liberdade religiosa, não para restringi-la! Existe também para garantir a liberdade de não ser religioso, de ser ateu, agnóstico, indiferente, o que quiser.

É um atestado de idiotismo ou má fé profunda pretender com o vislumbre de uma possível imposição de uma crença a outrem, remediar a situação com a opressão à religião, retornando aos tempos em que os cristãos, por exemplo, tinham de se ocultar em catacumbas para exercerem seus cultos. É injusto e imoral obrigar um ateu a se converter a dada religião ou um adepto de uma religião a praticar outra, mas é tão injusto e imoral, impedir as pessoas de exercerem seu direito fundamental reconhecido nacional e internacionalmente à liberdade de religião e culto, à liberdade de consciência e opinião e, finalmente à liberdade de expressão, tudo isso em seus sentidos mais amplos. Na melhor das hipóteses, ocorre neste caso uma obtusidade que consiste em, ao lobrigar uma possível injustiça, tentar evitá-la virando-a de cabeça para baixo. A Justiça não é a injustiça de ponta cabeça!

Cabe ao Estado Democrático de Direito equilibrar os pluralismos, inclusive religiosos, sem uso de opressão, sem discriminação de qualquer espécie e muito menos invasão das consciências e padronização de condutas. Muito ao reverso, o Estado Democrático de Direito, com o uso de seus instrumentos, deve exatamente garantir que isso jamais ocorra por meio de forças sociais. Doutra forma, esse Estado não é Democrático, nem de Direito e, aliás, já não serve para mais nada. Ele é violento, autoritário, totalitário e, com isso, só produz violência e revolta, cria antagonismos e suscetibilidades inexistentes para justificar sua invasão das consciências e das condutas individuais. Se parece com um sujeito que mata os pais para poder gozar da piedade das pessoas porque é órfão!

Sabe-se ou se devia saber muito bem pelas lições históricas, que a religião nunca se dobrou à opressão estatal. Essa opressão somente faz surgir fanatismos, atos terroristas, violências e revoltas. A única via para o tratamento com um sentimento tão poderoso no ser humano, seja para o crente ou o ateu, é a tolerância e tolerância não significa “apartheid”. Caso contrário se poderia afirmar que Hitler teria sido tolerante com os Judeus quando os confinou em guetos!

Tentar vender uma medonha “Carta da Laicidade” como um documento que expressa a tolerância entre crentes e não crentes é um engodo proposital ou um auto – engano descomunal. Se os tolos (aqueles que “não sabem o que fazem”) estão no auto – engano, aqueles que agem com consciência de seus atos (eles que “sabem o que fazem”) chafurdam na lama da fraude que muitas vezes é mais poderosa que a força. Falando disso, é interessante transcrever o trecho de Dante sobre a fraude, na medida em que o totalitarismo do “pensamento único politicamente correto” vai se espraiando com uma falsa face humana:

“Aí está a fera que, com sua afiada cauda, trespassa as montanhas e derruba as muralhas e as armas, aí está a que corrompe o mundo inteiro. Assim falou  meu guia,  fazendo um sinal para que se aproximasse da pedregosa margem onde nos encontrávamos. O disforme fantasma da fraude assim o fez, avançando a cabeça e o corpo, mas não pondo a cauda sobre a beira. A benigna aparência de seu rosto parecia a de um homem justo; o resto do corpo era de um dragão”. [14]

A verdade é que de laicidade nada tem a mal fadada “Carta da Laicidade” (sic). Ela perverte a própria natureza de um Estado Laico e promove a discriminação negativa dos religiosos em geral e a imposição de um ateísmo ou de uma antirreligiosidade como substitutos da antiga “religião oficial”. Promove uma confusão deliberada entre Estado Laico e Sociedade Laica. Um Estado Laico não significa uma Sociedade Laica, muito ao reverso, significa uma sociedade onde há diversidade religiosa e também a liberdade de não ter religião alguma. O Estado Laico também não confronta com o exercício público ou privado das religiões, não lhes impõe limites irrazoáveis, tais como a sua circunscrição ao âmbito privado e dos templos, impedindo qualquer manifestação pública ou mesmo sua expressão em qualquer discussão. Rumando para o Estado Democrático, toda essa truculência da tal “Carta da Laicidade” para com os religiosos entra em choque frontal com a liberdade concedida a qualquer espécie de manifestação dos mais variados desejos ou caprichos humanos (v.g. passeatas gays, movimentos para liberação de certas drogas e até tolerância para com partidos neonazistas). Novamente o sentido de proporção é jogado no lixo. Então quando uma pessoa pendura um crucifixo no pescoço e saí à rua pode “ofender” (sic) gravemente um não - crente pela simples visão de tal objeto. Mas, se um indivíduo saí pela rua em trajes sumários, com um fio dental, expondo as nádegas e defendendo o “orgulho gay”, ninguém pode se sentir constrangido com isso!? Ninguém pode desaprovar que seu filho seja incentivado ao consumo de drogas como maconha e cocaína em meio a uma passeata, mas se um indivíduo para na rua e se benze, isso é uma “ofensa” tremenda aos direitos alheios. Para terminar, um judeu não pode usar um Kipah na via pública, mas um neonazista pode negar o holocausto e defender um novo genocídio!!!!

É preciso reforçar o fato de que o Estado Laico nada tem contra as religiões e muito menos contra a sua expressão pública ou privada. Nas palavras esclarecedoras de Abbagnano:

“Considerado em sua estrutura conceitual e histórica o princípio do laicismo não tem qualquer caráter de antagonismo a qualquer forma de religiosidade, nem mesmo ao catolicismo. Em primeiro lugar, ele frequentemente foi útil aos católicos na defesa da autonomia de sua atividade, constituindo ainda hoje a política oficial do catoliscismo nos países em que ele não tem partido político à disposição, como p. ex. nos países anglo – saxões. Em segundo lugar, é interesse dos católicos , como de todos, que a administração do Estado, as ciências, a cultura, a educação e, em geral, as esferas da atividade humana sejam organizadas e regidas por princípios que possam ser reconhecidos por todos, que sejam independentes da inevitável disparidade de crenças e ideologias e que, por isso, tornem eficazes e fecundas as atividades que nele se fundem. É bastante óbvio que as administrações políticas que favorecem certos grupos de cidadãos em prejuízo de outros, em vista de suas crenças religiosas, são simplesmente ineficientes e corruptas, não podendo reivindicar méritos ‘religiosos’. Da mesma forma, os poderes judiciários que não aplicam com escrúpulo e equidade a lei vigente do Estado, não oferecem garantias a ninguém, porque também são ineficientes e corruptos. A ciência que serve a interesses de partidos, crenças e ideologias não pode ter méritos de nenhum tipo. Poderia ser comparada a uma medicina que tomasse como critério de diagnóstico, prognóstico e cura os desejos do paciente ou de outras pessoas; uma medicina assim estruturada seria um caso de ciência ‘não laica’, clerical ou partidária. O laicismo não atende ao interesse deste ou daquele grupo político, religioso ou ideológico, mas ao interesse de todos. Contanto que o interesse de todos seja o desenvolvimento harmônico das atividades que asseguram a sobrevivência do homem no mundo”.  [15]

Ora, a “laicidade” da chamada “Carta da Laicidade” é exatamente o reverso disso tudo. Trata-se de um documento que claramente opta pela prioridade de uma cultura ateia, submetendo os crentes a um regime de discriminação negativa e opressão.

Embora essa “Carta” não seja um documento com valor jurídico pode-se, talvez, considerá-la como uma espécie de normatização programática. Então, apenas a título de argumentação, poder-se-ia supor que, quem sabe, no campo do Direito, com sua característica “autopoiética”, tenha sido possível deturpar o cerne do laicismo e transformá-lo a fórceps em um instrumento de repressão religiosa.

Acontece que essa espécie de raciocínio não se sustenta (afora sua absurdidade) pelo fato de que o Direito, embora dotado sim de certa “autopoiese”, na medida em que se produz a si mesmo, também sofre influências externas em sua conformação, ao que Neves denomina “alopoiese”, o que o incapacita para uma “autoprodução consistente ou fechamento operativo”. [16] Significa dizer que o Direito não se pode manter infenso aos conceitos filosóficos, sociais e políticos do laicismo, construídos ao longo de séculos de conquistas de garantias fundamentais.

Isso pode ser fartamente demonstrado numa breve pesquisa que também se recomenda àqueles ufanistas da “Carta da Laicidade”, a fim de que possam, quem sabe um dia, compreender, agora sob o ângulo jurídico, do que estão falando quando abrem suas bocas ou digitam seus textos deletérios e equivocados.

Segundo Canotilho o programa republicano laicista se caracteriza pela consagração constitucional de

“uma espécie de ‘pluralismo denominacional’, ou seja, a presença na comunidade, com iguais direitos formais, de um número indefinido de coletividades religiosas, não estando nenhuma delas tituladas para desfrutar de um apoio estadual positivo”.  [17]

     O autor lusitano cita o escólio de Manuel Emídio Garcia, segundo o qual o laicismo é marcado por “Igrejas Livres no Estado indiferente”. Nesse passo a religião deixa a esfera pública para adstringir-se ao campo privado, “a não ser quanto à vigilância da própria liberdade religiosa”. [18] O grifo é nosso para destacar o fato de que o Estado Laico vela pela liberdade religiosa e seu devido exercício, longe de estar voltado para a repressão e a opção por um ateísmo militante. “Igrejas Livres no Estado Indiferente”, não “Igrejas Oprimidas num Estado Ateu”!

O mesmo Canotilho lembra o fato de que o programa laicista, embora bem intencionado, vem resvalando “algumas vezes para um anticlericanismo sectário ao pretender impor-se como um ‘projeto de hegemonização de uma nova mundividência’”. O autor explica que isso não deveria acontecer, constituindo uma perversão do laicismo que acabou desaguando numa polarização ou confrontação do mundo religioso com o poder estatal, já que este último, com a perversão acima mencionada, passa a tentar “neutralizar os poderes simbólico, político e cultural” da religião. [19]

Essa “vontade de poder” do “pensamento único globalizador” que pretende recriar o mundo e o homem sem consultar quem quer que seja, homogeneizando a tudo e a todos e anulando a individualidade retrata exatamente a perversão do laicismo diagnosticada por Canotilho.

É preciso estar atento a isso porque, como demonstram autores como Jellineck, a luta pela liberdade religiosa constitui a verdadeira origem dos direitos fundamentais. [20] Hoje a noção que se tem da liberdade de religião é a de um “direito inalienável do homem” em praticamente todos os diplomas constitucionais. [21] Ora, se é permitida a violação desse direito originário e fundamental, o caminho estará escancarado para todas as demais ofensas aos direitos individuais sob os mais diversos pretextos acobertados por um manto de “boas intenções” daquelas que levam ao inferno, como no dito popular, não só pelo resultado, mas porque só são “boas” no nome.

Quando se fala em liberdade constitucional de religião isso não pode se reduzir ao culto privado, ou melhor, ao “culto oculto”. As liberdades religiosa, de pensamento, opinião, consciência, culto e expressão são inseparáveis e não podem ser restringidas a determinados espaços como se fossem atividades clandestinas ou indesejadas. Conforme ensina Pontes de Miranda, citado por Silva:

“Compreendem-se na liberdade de culto a de orar e a de praticar os atos próprios das manifestações exteriores em casa ou em público, bem como a de recebimento de contribuições para isso”. [22]

Em sua obra ficcional, “Tenda dos Milagres”, Jorge Amado, retrata a repressão contra a manifestação profano – religiosa dos afoxés na Bahia, o que gera imediata indignação. E ali também o culto e a festa profana eram permitidos no ambiente privado dos terreiros, apenas não podiam desfilar pelas ruas de Salvador. [23] Pergunta-se, como é possível que um brasileiro, ciente de nosso sincretismo e pluralismo religioso, seja capaz de se rejubilar com a leitura de uma espúria “Carta da Laicidade”, que, como já se disse, de laicidade nada tem, a não ser como se diz popularmente “para inglês ver”. Não há ali laicidade alguma para brasileiros, ingleses, franceses e nem para marcianos! Os únicos que veem naquilo algo de bom são pessoas hipnotizadas por ideologias que as cegam a tal ponto que cedem facilmente quaisquer de seus direitos fundamentais em nome de qualquer baboseira enfeitada com um discurso politicamente correto.

Seguindo no escólio de Silva, aponta-se que “é evidente que não é a lei que vai definir os locais de culto e suas liturgias. Isso é parte da liberdade de exercício dos cultos, que não está sujeita a condicionamento”. Dessa forma, “a liberdade de culto se estende à sua prática nos lugares e logradouros públicos, e aí também ele merece proteção da lei”. Aos poderes públicos cabe a missão de “não embaraçar o exercício dos cultos religiosos e protegê-los, impedindo que outros o façam”. [24] A missão do Estado é tão simples: é só não atrapalhar e não deixar que outros atrapalhem!

A restrição da manifestação religiosa das pessoas ao espaço privado, a imposição de uma ocultação das crenças pessoais manieta de tal forma a liberdade do indivíduo que torna a garantia constitucional letra morta. É bem verdade que as liberdades de consciência, pensamento e de crença são algo de “foro íntimo”, mas seu exercício somente se completa e se torna realmente eficaz para o desenvolvimento do homem em sua plenitude quando acoplado à liberdade de expressão e manifestação do pensamento, de que a liberdade de culto é uma espécie. Na dicção de Ferreira Filho:

“A liberdade de consciência e de crença, porém, se extroverte, se manifesta na medida em que os indivíduos, segundo suas crenças, agem deste ou daquele modo, na medida em que,  por uma inclinação natural, tendem a expor seu pensamento aos outros e, mais, a ganhá-los para suas ideias. As manifestações, estas sim, pelo seu caráter social valioso, é que devem ser protegidas, ao mesmo tempo que impedidas de destruir ou prejudicar a sociedade”. [25]

No campo em estudo a liberdade em si é relevante, mas sua manifestação livre é que a torna completa e real. Caso contrário se converte em um pseudodireito, chegando mesmo a se tornar um estigma social. A famigerada “Carta da Laicidade” francesa faz exatamente isso: estigmatiza os religiosos e cria um falso clima belicoso entre as pessoas. Essa ficção de guerra é bem constatável na frase lamentável do Ministro da Educação francês (ou da deseducação?), Vicent Paillon, quando afirma que “a laicidade é uma batalha que não opõe uns aos outros, mas uma batalha contra aqueles que querem opor uns aos outros” (sic). [26] Mas, quem são esses que querem “opor uns aos outros” senão aqueles que se dão ao trabalho de redigir uma “Carta” impondo restrições terríveis a um grupo enorme de pessoas sem qualquer motivação? Será que uma mulher com uma burca na rua ou na escola está opondo as pessoas umas contra as outras? Talvez uma mulher de minissaia oponha mais, tendo em vista, dependendo de sua conformação física, o desejo sexual que incitará em vários indivíduos. Aliás, a frase do Ministro da Educação francês é um primor de ilogicidade digno de um analfabeto funcional que não sabe concatenar ideias. Como pode haver uma “batalha” sem que haja opositores? Ah! Mas, ele mesmo depois diz que a batalha é “contra aqueles que querem opor uns aos outros”. Então, na verdade há uma oposição entre pessoas umas que querem opor uns aos outros e outras que não querem essa oposição e então se opõem àquelas que querem opor uns contra os outros!!!! Com o perdão do Senhor Ministro: Só por Deus! Ou então, para não ofendê-lo tanto: Que confusão demoníaca! Que verborréia diabólica! Mas, para não ser injusto, quem sabe uma última opção: talvez o autor dessa “pérola literária” estivesse sob efeito de algum psicotrópico quando a disse, lembrando aquela canção de Caetano Veloso intitulada “Qualquer Coisa”:

“Esse papo já tá qualquer coisa/ Você já tá pra lá de Marraqueche/ Mexe qualquer coisa dentro doida/ Já qualquer coisa doida dentro mexe”. [27]

Ademais, tirante manifestações patológicas da religiosidade, como pode haver manifestações assim sobre qualquer atividade humana, até da relação com animais de estimação, o verdadeiro religioso jamais pretenderá converter alguém à força. Porque a religião é justamente algo que compõe a consciência profunda da pessoa, seu ser mais íntimo, de modo que toda “conversão forçada” (sic) não passa de hipocrisia. Assim como a negação ou omissão de um sentimento religioso devido a uma normatização totalitária somente pode fomentar revolta ou hipocrisia. A imposição nesses casos jamais é eficaz. É contra ela, em um ou outro sentido que se deve lutar.

Vale a pena mencionar o ensinamento de Frankl:

“Justamente a pessoa religiosa deveria saber respeitar esta decisão negativa de seus semelhantes; ela deveria reconhecer esta decisão como uma possibilidade básica, assim como aceitá-la como realidade de fato. Com efeito, justamente a pessoa religiosa deveria saber que a liberdade para tal decisão é uma liberdade desejada e criada por Deus; o homem é a tal ponto livre, feito livre por seu Criador, que  esta liberdade é uma liberdade até para o não, que vai tão longe que a criatura também pode se decidir contra seu próprio Criador, que pode inclusive renegar Deus”. [28]

Retornando aos juristas mais letrados, já que os Ministros da Educação não costumam ser bons exemplos na área da escrita ou da fala, [29] Bastos chama a atenção para o fato de que a liberdade de religião não se pode contentar “com a sua dimensão espiritual”, no sentido de uma realização que se limita à interioridade do indivíduo. Ela precisa de exteriorização. O autor lembra tristes tempos em que no Brasil “havia liberdade de crença sem liberdade de culto”. Naquela época “só se reconhecia como livre o culto católico. Outras religiões deveriam contentar-se em celebrar um culto doméstico, vedada qualquer forma exterior de templo”. [30] Será que isso poderia ser mesmo reconhecido como uma liberdade religiosa? É claro que não. Aceitar como reconhecimento de liberdade religiosa o exercício meramente privado, o “culto oculto”, é o mesmo que considerar como uma pessoa um indivíduo cuja cabeça foi arrancada. Ele não é mais uma pessoa e sim um cadáver. A religião sem liberdade de expressão e culto público e privado é também um cadáver de um direito vilipendiado. Falso direito, sem vida, sem dinâmica, tinta e papel inúteis.

Com bem lembra Cavalcanti, a liberdade religiosa é reveladora da maturidade de um povo, enquanto desdobramento da liberdade de pensamento e de manifestação” (grifo nosso). [31] Somente um povo infantil, birrento, egocêntrico e intolerante não é capaz de construir uma convivência harmônica por meio da qual ninguém se sinta “ofendido” porque alguém se veste de tal ou qual maneira, faz este ou outro sinal religioso, usa em seu pulso ou no pescoço determinado símbolo ou objeto, professa em público suas convicções religiosas. Mas, nem sempre é o povo que é infantil. Ele muitas vezes é “infantilizado” por ideologias que criam falsos conflitos e suscetibilidades artificiais. Como aquele corrupto que “cria dificuldades para vender facilidades”, todo aquele que almeja o poder totalitário “cria conflitos para vender soluções mediante a violação dos direitos fundamentais”. O povo brasileiro, por exemplo, nunca foi dado a questiúnculas religiosas, mas vai aos poucos sendo ludibriado pelo discurso internacional dos conflitos religiosos, fomentados pelos intelectualóides que trazem as “novidades” e criam um clima de rivalidade onde este jamais existiu.

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Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Louvando a “carta da laicidade” ou como se tornar, sem esforço, um intelectualóide bobo alegre. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3750, 7 out. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25465. Acesso em: 16 abr. 2024.

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