Hoje está praticamente pacificado na doutrina, nas legislações democráticas e na jurisprudência, que o único campo de atuação do Direito penal é o do “comportamento humano”. Os sentimentos, assim, apenas quando ligados aos comportamentos podem ter relevância.
O Direito, desse modo, não pretende “moldar moralmente o homem”, transformá-lo verdadeiramente. Basta-lhe, para ser considerado eficiente, que logre alterar – ou evitar – as condutas humanas socialmente desajustadas e modificar – ou controlar – os indivíduos no que se refere às suas condutas para com os demais.
Para o Direito, portanto, não importa se o homem, em seu plano interno, no seu “querer”, na sua imaginação e pensamentos seja, por exemplo, um “homicida”. O que lhe interessa – e essa é a sua função precípua – é que tais pensamentos ou “vontades” não se concretizem de fato; e, se se concretizarem, a sanção terá por finalidade ressaltar que o “bem jurídico” atingido continua a manter a sua posição de valor socialmente relevante.
Logo, o que se passa somente no mundo interior de cada ser humano, o que está reservado ao âmbito da alma ou do espírito e não se reflete nas relações sociais, não é atingido pelo Direito – que não é apto e nem pretende intervenção desta natureza .
Como já sustentava Samuel Pufendorf, lembrado por Artur Kaufmann, os deveres para com Deus e para com a bondade só interessam, respectivamente, à religião e à moral. Os deveres jurídicos, por sua vez, que resultam da razão, o são para com a sociedade e independem da religião e da moral.[1]
Conclui-se, pois, que se o Direito e a norma penal têm por único referencial a conduta humana, somente esta pode ser o fundamento do juízo de culpabilidade, e não o caráter do homem ou a sua periculosidade latente.
O juízo de culpabilidade tem como objeto fundamental, pois, determinado ato humano, e não o caráter ou conduta de vida da pessoa.
A adoção da culpabilidade pelo ato, todavia, não implica, como parecem querer muitos em nosso tempo, a completa dessubjetivação da responsabilidade penal e a despersonalização do delito; que a atitude interna do agente em relação ao bem jurídico, assim como os demais caracteres subjetivos – em suma, a sua personalidade[2] e opções efetivadas, isto é, o uso que fez de sua liberdade[3] -, na concreção do fato, não tenham qualquer relevância; ao contrário, trata-se, no juízo de culpabilidade, do dado que permite diferenciar e fixar o seu grau e, em conseqüência, aplicar a pena com observância ao princípio da proporcionalidade.
A pessoa humana – como sustenta Edith Stein – é um ser corporal-anímico que “habita” um eu consciente de si mesmo que é livre e que pode configurar tanto o seu corpo como seu espírito. Sua estrutura essencial submete a uma formalização espiritual, tanto a sua autoconfiguração voluntária, como os atos pontuais de sua vida e o seu próprio ser permanente.[4]
A culpabilidade, pois, não se esgota em um juízo sobre o ato – embora seja este, repita-se, sempre a sua referência principal e pressuposto inafastável -, mas envolve, também, a valoração da posição assumida pela pessoa em relação aos outros, de sua autocolocação na vivência social, ou seja, do sentido que confere – ou conferiu – o indivíduo à própria existência[5].
O injusto penal, nestas condições, constitui uma revelação da construção que a pessoa fez de si própria, das escolhas livres, conscientes e intencionais que efetivou para si e em relação aos demais e pelas quais é responsável; em síntese, da elaboração que realizou do próprio destino e de seu “ser-no-mundo”, devendo ser valorado sob essa complexidade. O ser da pessoa é composto pelo que ela é e como é. A coincidência entre o ser de um ente, e seu aparecer, consubstancia-se em como aparece para nós, de forma que este aparecer compreende-se como um vir-a-ser na cotidianidade da existência. O ser somente pode ser compreendido, portanto, na existência humana, na coexistência em seus modos de ser no mundo.[6]
Com efeito, o (f)ato-crime doloso é um fenômeno social[7] que se imputa – e por isso pertence – a determinado sujeito como obra sua, pois produzido como decorrência de sua vontade consciente, em frustração à expectativa de observância da norma. Estes, em apertada síntese, os pressupostos subjetivos que fundamentam a imposição de uma sanção penal.
No “fenômeno-crime” o que se dá a observar não é apenas o “fato”, mas também a personalidade[8] – ou ao menos um de seus lados, uma de suas facetas – de seu agente. Realmente, se o conhecimento, como assevera Edith Stein, é uma captação espiritual de um ente, é lícito dizer que conhecemos o modo de ser próprio de um homem e que este modo de ser se mostra a nós mediante as múltiplas formas expressivas pelas quais o interior – personalidade - se exterioriza - comportamentos[9]. A análise da existência, que se constitui de escolhas concretas, deixa transparecer o sentido do ser.[10] Um determinado “modo de ser”, pois, permite uma investigação e conclusões ontológicas, na medida em que mostra ao mundo o próprio ser que o produz.[11]
A culpabilidade, por isso, tendo por objeto o fenômeno, constitui um juízo de valor não somente sobre o próprio ato, em si mesmo considerado e “isolado”, mas ainda em relação ao que se revelou da personalidade, da opção existencial do espírito humano que o produziu.
Em resumo: o direito penal que pretenda realizar justiça não pode ser um puro direito penal do fato, pois os fatos, isolados de seu contexto e descolados de suas circunstâncias circundantes não possibilitam implicações valorativas subjetivas; também não pode ser um mero direito penal de autor - cujos efeitos danosos à liberdade foram inequivocamente comprovados pela história -, pois a moral, enquanto circunscrita ao plano pessoal e sem capacidade de causar prejuízos a outrem, pertence apenas a cada um. Propugnamos, portanto, um direito penal do ato, que é constituído pelo fato, mas também por seu autor, uma vez que o ato pertence a quem o produz e é expressão de sua personalidade. O ato supera o fato, pois é o fato somado ao seu autor e impregnado pelas características pessoais deste. Logo, na apreciação do ato, valora-se o fato, o acontecimento – aspecto objetivo -, mas também o seu contexto ético e seu agente – aspecto subjetivo.
A gradação da pena, portanto, além das circunstâncias objetivas do fato – por exemplo: modo de execução, grau de lesão ao bem jurídico, etc. -, tem como objeto de valoração o comportamento total do sujeito, isto é, não somente os elementos exteriores da conduta, mas também o seu aspecto subjetivo. Antigos conceitos, então, como de personalidade voltada para o crime e de intensidade do dolo, que por muitas vezes foram utilizados como um mero recurso retórico e, por isso, foram rechaçados pelas “modernas tendências” do direito penal, ganham com a interpretação aqui formulada fundamentação e conteúdo e permitem, pois, a elaboração de um direito penal de feição mais personalista.
Quem conhece a realidade dos processos criminais sabe que a Defesa – técnica -, ordinariamente, não se limita a negar os fatos ou a impugnar a “imputação”, mas procura demonstrar que a personalidade do acusado, seu comportamento familiar, profissional e social anterior, em suma, que seu ser-no-mundo e suas relações intersubjetivas são incompatíveis com a acusação, ou, ao menos, que o evento tratou-se de um “fato isolado” em sua vida. E é por isso que, em regra, são arroladas as denominadas “testemunhas de antecedentes”, as quais, embora nada saibam sobre o “objeto” do processo – principal, pois, como sustentamos, também a personalidade do acusado está, de certa forma, sob “julgamento” -, procuram fornecer elementos para a conclusão de que se trata o réu de uma “boa pessoa”, “dedicada ao trabalho e à família”, inexistindo algo que “desabone” a sua conduta anterior. Esta quase “tradição” processual-penal, bastante presente nos processos sujeitos a julgamento pelo juiz singular – de Direito - que não pode – e não deve – ser considerada desnecessária ou inútil – desde que verdadeiros os testemunhos-, na medida em que permite ao julgador conhecer de forma mais profunda o réu que lhe é apresentado, é ainda mais incisiva nas acusações julgadas pelo Tribunal do Júri, em que os juízes – jurados, membros do Conselho de Sentença – são leigos escolhidos – sorteados – dentre os membros da comunidade.
Assim, centrada no sujeito, a culpabilidade representa, primeiro, um juízo sobre os motivos e móveis do crime, sobre a formação da vontade dirigida contrariamente ao bem jurídico tutelado, pois a motivação, enquanto “provisões ou expectativas aprendidas de uma finalidade”[12], enseja uma maior ou menor reprovabilidade social.
Em segundo lugar, diante do conceito de dolo – valorativo ou englobante – por nós formulado[13], tem a culpabilidade como referência o grau de menosprezo consciente, na conduta, ao bem jurídico tutelado pelo tipo.
Embora pertença o dolo ao tipo, a valoração que sobre ele recai integra a culpabilidade, pois importa, também, uma maior ou menor reprovabilidade do comportamento. Neste sentido, pode-se falar em “intensidade do dolo”[14] correlacionada ao grau de reprovabilidade e, portanto, vinculada à culpabilidade. Nestas condições, o dolo pode ser compreendido como portador de duas posições: no tipo, funciona como elemento subjetivo e, para a culpabilidade, como objeto de valoração.
Em terceiro lugar, pode haver uma relação direta entre conhecimento da ilicitude e reprovabilidade. Se a ausência de consciência potencial a exclui e a consciência, ao menos potencial, já a afirma, a consciência plena, perfeita, importa uma culpabilidade superior, pois em relação ao sujeito, nas circunstâncias concretas, se consubstancia uma frustração maior da expectativa social de cumprimento da norma.
O grau de expectativa de observância da norma, por derradeiro, justifica a maior reprovabilidade – culpabilidade – que recai sobre os portadores de maus antecedentes e reincidentes, pois daquele que já tomou contato com a Justiça Criminal e obteve, do Estado, a reafirmação da escala valorativa vigente – condenação -, há de se esperar que observe o complexo normativo e se motive pelas prescrições dele decorrentes, pois antes atingido, de forma direta, pelas conseqüências de tal inobservância – tendo sido delas, portanto, inequivocamente alertado.
Isto nada tem a ver, como pretendem alguns, com influência do “direito penal do inimigo” em nosso ordenamento jurídico[15], na medida em que a reprovabilidade penal superior fundada na consciência, autonomia e liberdade do sujeito que perpetrou o ato ilícito, constitui verdadeira antítese em relação à desconsideração da qualidade de pessoa do agente, preconizada por Jakobs. Acrescente-se que a consideração da reincidência e maus antecedentes, quando da fixação da pena, tem por única finalidade individualizá-la[16] – em observância, também, como já referimos, ao princípio da igualdade, que impõe o tratamento desigual de condutas desiguais - e não caracteriza, de forma alguma, “procedimento de guerra” contra o agente do crime, outro ponto configurador do “direito penal do inimigo”. Por fim, anote-se que a valoração da vontade, motivação e finalidades do agente reveladas no ato ilícito, bem como das circunstâncias que envolvem a sua prática, não caracteriza qualquer “violação à intimidade” da pessoa[17], pois a intimidade é protegida pela Constituição enquanto tal – ou seja, reservada à individualidade do sujeito e à sua vida privada -, e não nas hipóteses de sua exteriorização dirigida à lesão de bens jurídicos de outrem.
Notas
[1] “A problemática da filosofia do direito ao longo da história”. Introdução à Filosofia do Direito e à Teoria do Direito Contemporâneas, p. 89. Esta ideia encontrou desenvolvimento em Christian Thomasius, discípulo de Pufendorf, para quem o dever externo pertence ao Direito, enquanto que o dever interno encontra o seu campo na moral. Somente o dever moral é um dever de consciência; o dever externo do Direito, ao contrário, é um dever coativo baseado no temor fundado na coação exercida por outros homens – a sociedade. O Direito – segundo Thomasius – “se ocupa somente das ações exteriores do homem, porém não penetra no que está escondido no peito deste e não se exterioriza mediante algum efeito, ou de uma maneira perceptível”. O Direito, portanto, ocupa-se, em sua maior parte, dos comportamentos humanos exteriores (WELZEL, Hans. Estúdios de Filosofia del Derecho y Derecho Penal, pp. 220-221 e 247).
[2] Em sentido próximo o posicionamento nitidamente existencialista de Jorge de Figueiredo Dias ao sustentar que o substrato da medida de pena reside “na totalidade da personalidade do agente, ético-juridicamente relevante, que fundamenta o facto, e portanto também na liberdade pessoal e no uso que dela se fez, exteriorizadas naquilo que chamamos <<atitude>> da pessoa perante as exigências do dever-ser (o <<Gesinnung>> na sua estrutura ético-existencial). Daí que o juiz, ao emitir o juízo de culpa ou a medir a pena, não possa furtar-se a uma compreensão da personalidade do delinqüente, a fim de determinar o seu desvalor ético-jurídico e a sua desconformação em face da personalidade suposta pela ordem jurídico-penal. A medida desta desconformação constituirá a medida da censura pessoal que ao delinqüente deve ser feita e, assim, o critério essencial de medida de pena (Liberdade-Culpa-Direito Penal, pp. 184-185).
[3] Assim é porque, sob uma perspectiva existencialista, adotada neste trabalho – embora sem caráter absoluto, pois reconhecidas as influências genéticas, da primeira infância e do ambiente em que vive o sujeito para a formação da sua personalidade, as quais, entretanto, não excluem a sua liberdade ou possibilidade de liberdade - : “Nada ocorre verdadeiramente na existência do homem sem que ele escolha. A estrutura do homem é essencialmente liberdade, liberdade que não é indiferença, mas normatividade, dever-ser: dever-ser da personalidade finita do homem e, por isso mesmo, do ser universal que a funda e da comunidade que nele encontra seu lugar de encontro e de entendimento recíproco” (ABBAGNANO, Nicola. Introdução ao Existencialismo, p. 33).
[4] La Estructura de la Persona Humana, pp. 110-11.
[5] Sérgio Leonardo Gobbi observa que “Para a abordagem centrada na pessoa a Liberdade está relacionada a um processo interno de exploração das experiências, a partir de uma perspectiva de estruturação da personalidade e, por conseqüência, de comportamento perante a própria vida. Esta consiste no aspecto crucial do organismo para representar adequadamente suas experiências (...). A partir das próprias escolhas, ou seja, da liberdade de escolher aquilo que mais lhe convém, a escolha torna-se mais satisfatória, em suas necessidades e, fundamentalmente, mais congruente em sua estrutura organísmica (...). Demonstra um estado de “tornar-se” muito mais do que um estado estático de ser. O tornar-se passa a ser parte da existência do homem enquanto processo, assim como ocorre na realidade física” (Teoria do Caos e A Abordagem Centrada na Pessoa, pp. 58-59).
[6] CRITELLI, Dulce Mára. Analítica do Sentido, 2ª ed., pp. 29 e 31-33. O fenômeno crime, sob a consideração fenomenológica aqui empreendida, é uma expressão do próprio ser nas suas relações intersubjetivas, pois, neste sentido, como adverte Martin Heidegger, o “fenômeno é somente o que constitui o ser, e ser é sempre ser de um ente. Por isso, ao se visar a uma liberação do ser, deve-se, preliminarmente, aduzir de modo devido o próprio ente. Este ente também deve mostrar-se no modo de acesso que genuinamente lhe pertence” (Ser e Tempo, p. 77).
[7] Pode-se afirmar, por isso, que “A valoração do objeto é uma atividade fenomênica do Juiz sobre o fenômeno crime, o qual como objeto consiste na conduta do agente mencionada no tipo penal (...). O Juiz como ser humano que é tem a sua presença judicial demarcada pela Fenomenologia Existencial. Basta ver na multiplicidade de intuições e percepções remetidas pelo Juiz (não um mero expectador), interferindo intersubjetivamente na conduta do agente, através da norma penal, co-vivenciando todo plano do comportamento delituoso. Ao mesmo tempo, tem uma visão panorâmica da norma, lançando-lhe também, um sentido de valor que faz recair no bem jurídico nela assegurado, onde procede o balanceamento de valores atendendo a um equilibrado método” (COSTA, Carlos Aldamyr Condeixa da. Pressupostos Existenciais do Crime, p. 32).
[8] A personalidade a que nos referimos – ou um conceito relevante para efeitos jurídico-penais - constitui a conjugação, em uma organização dinâmica, no indivíduo, de aspectos genéticos, físicos e culturais, que formam uma totalidade única, dirigida à auto-realização e a um determinado sentido, movida por móveis e motivos, aberta a modificações – inclusive no que se refere a seu sentido - e que supera a mera soma das partes que a integram – gestalt. Por acreditarmos que a personalidade está aberta a alterações é que admitimos, como uma das finalidades da pena, a prevenção especial, que, respeitada a liberdade de pensamento e de opção da pessoa humana, consiste na colocação, à disposição do criminoso, de meios capazes de provocar a sua (re)integração à vida social ordenada, ou, na feliz expressão de Paul Ricouer, de reabilitá-lo, de lhe devolver, ao fim da pena, a capacidade de ser um cidadão integral (O Justo 1, p. 193). Trata-se a prevenção especial, pois, de uma oportunidade de modificação existencial conferida ao condenado, que dela poderá aproveitar-se ou não, de acordo com a sua liberdade de escolha, para, no fluxo de sua existência e confrontado com a pena em sua complexidade, tornar-se um ser diferente do que era, moldar-se para um vir-a-ser distinto. O agente, quando da prática do crime é criminoso, mas não está “condenado” a permanecer nesta condição existencial; pode optar pela modificação de seus comportamentos e pela alteração do sentido de seu próprio ser.
[9] La Estructura de la Persona Humana, p. 25.
[10] BUZZI, Arcângelo R. Introdução ao Pensar, 33ª ed., p. 58. Podemos subscrever, assim, o ensinamento de Dulce Mára Critelli: “Quem alguém é, é sempre quem alguém foi (Arendt, 1981). Uma vida tecida na trama dos outros com quem interagiu e das coisas que com eles (ou contra eles) fez, sobre as quais falou, e dos negócios humanos que com eles manteve em comum (ainda que em discórdia). Assim, quem alguém é/foi, no registro do texto ou da memória dos outros, é sempre uma biografia que só se constitui pela coexistência no mundo (...). O que se pretende objetivar através da singularização de um quem, é um modo de alguém ser. Um modo de como alguém é humano (...). Ser, portanto, é sempre a realização de um modo de ser” (Analítica do Sentido, 2ª ed., pp. 127-28).
[11] Este entendimento aproxima-se da posição de Jean-Paul Sartre, para quem “A aparência não esconde a essência, mas a revela: ela é a essência. A essência de um existente já não é mais uma virtude embutida no seio deste existente; é a lei manifesta que preside a sucessão de suas aparições, é a razão da série (...). Assim, o ser fenomênico se manifesta, manifesta tanto sua essência quanto sua aparência e não passa de série bem interligada dessas manifestações” (O Ser e o Nada, pp. 16-17). Na mesma linha o pensamento de Arcângelo R. Buzzi, para quem o ser é o que aparece e se mostra a quem procura, de forma que o ser verdadeiro está no que aparece. Assim, para alcançar o ser verdadeiro, deve-se mergulhar na aparência, mergulho este que não anula o mundo da aparência, mas que apenas mostra o estranho de seu ser insondável (Introdução ao Pensar, 33ª ed., pp. 21 e 35-36).
[12] PENNA, Antonio Gomes, Introdução à Motivação e Emoção, p. 22. Jean-Paul Sartre ensina que o motivo constitui a razão de um ato, uma apreciação objetiva da situação, ou seja, o conjunto das considerações racionais que o “justificam”. Conceitua o motivo, assim, como a “captação objetiva de uma situação determinada, na medida em que esta situação se revela, à luz de um certo fim, como apta a servir de meio para alcançar este fim. O móbil [ou móvel], ao contrário, é considerado comumente como um fato subjetivo. É o conjunto dos desejos, emoções e paixões que me impele a executar certo ato (...) o móbil nada mais é do que a captação do motivo, na medida em que tal captação é consciente (de) si. Mas daí resulta, evidentemente, que motivo, móbil e fim são os três termos indissolúveis do brotar de uma consciência viva e livre que se projeta rumo às suas possibilidades e define-se por essas possibilidades” (O Ser e o Nada, 16ª ed., p. 551-52 e 555). A motivação, portanto, constitui a análise das condições que tornam possível a realização de determinada conduta. O motivo impulsiona para o ato, cabendo ao sujeito, porém, a escolha de sua realização, de acordo com o seu “projeto existencial”.
[13] A respeito, conferir o nosso Fundamentos de Direito Penal, pp.157-159.
[14] A mesma solução, evidentemente, não é possível com a adoção do “dolo natural”, pois este se satisfaz, para restar plenamente configurado, com o “querer o resultado”, independentemente da posição valorativa tomada pelo agente, o que, a nosso ver, implica violação ao princípio da justiça, pois condutas disparares são tratadas com absoluta – e incabível – igualdade.
[15] Neste sentido posicionam-se André Luís Callegari e Roberta Lofrano Andrade, “Traços do Direito Penal do Inimigo na fixação da pena-base”, in Boletim IBCCRIM n. 178, setembro de 2007.
[16] A Constituição Federal de 1988 elevou o princípio da individualização da pena à categoria de garantia constitucional, ao dispor, em seu art. 5º, inciso XLVI, que “a lei regulará a individualização da pena”, e em seu inciso XLVIII, que “a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado”. O princípio da individualização da pena é decorrente da admissão, entre nós, da dignidade humana como fundamento do sistema penal. Isto porque se a pessoa humana, por força da dignidade que a caracteriza, trata-se de ser único e insubstituível, assim deve ser tratada, inclusive quando sujeita a uma sanção penal. Logo, podemos conceituar a individualização da pena como o processo pelo qual, mediante a mensuração da quantidade e qualidade da pena – fixação e execução -, objetiva-se atingir os seus fins – reprovação proporcional e prevenção -, considerando-se as características essenciais de seu sujeito passivo e da conduta ilícita perpetrada – de nítida influência existencialista e personalista, portanto.
A individualização compreende três fases. A primeira etapa deste processo consiste na cominação da sanção ao delito, a individualização legal, com o estabelecimento da espécie de pena e de seus limites mínimo e máximo. O legislador, ao fixar estes limites, objetiva oferecer parâmetros ao Estado-juiz, a fim de que este possa aplicar corretamente a pena, atendendo aos fins da proporcionalidade e da prevenção geral.
Uma real individualização exige que a pena seja determinada, explícita e precisa, mas nunca fixo o seu quantum, pois do contrário retirar-se-ia do julgador a possibilidade de efetivamente individualizar a pena no caso concreto (SHECAIRA, Sérgio Salomão e CORRÊA JR., Alceu. Pena e Constituição, p. 31).
Conseqüências extremamente relevantes originam-se nesta fase, tais como os regimes de cumprimento da pena privativa aplicáveis – fechado, semi-aberto ou aberto – e o cabimento da transação penal ou da suspensão condicional do processo (artigos 76 e 89, ambos da Lei 9.099/95).
Diante da conduta concretamente considerada, surge a segunda fase do processo de individualização – que ora tratamos -, isto é, a aplicação da pena.
Para tanto, deve o juiz, como afirmamos, apreciar a culpabilidade, a personalidade, antecedentes e conduta social do agente, as circunstâncias e conseqüências do crime, bem como o comportamento da vítima – ou seja, o fenômeno “crime” em toda a sua complexidade, centrado na pessoa de seu agente. Fixa, então, a espécie e quantidade de pena e, em se tratando de pena privativa de liberdade, o regime inicial de seu cumprimento.
Com a fixação da sanção advém a possibilidade de substituição da pena privativa de liberdade por uma das penas restritivas de direito ou pela pena de multa, desde que preenchidos os requisitos objetivos e subjetivos, e a viabilidade da suspensão condicional da pena (sursis).
Por fim, concretiza-se também a individualização na execução da pena, com a classificação dos condenados e colocação em estabelecimento penal adequado, determinação e atribuição de trabalhos e deveres, concessão ou indeferimento dos institutos de evolução para a readaptação social no cumprimento da sanção – progressão de regime, livramento condicional, conversões, saída temporária, entre outros – e estabelecimento das condições do livramento condicional.
[17] CALLEGARI e LOFRANO, ob.cit.