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O euro e o déficit de legitimidade que o cerca

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Em 1º de janeiro de 2002 o euro passou a ser a moeda corrente em doze dos quinze países que compõem a União Europeia[1]. Esse fato representa a concretização da mais ambiciosa meta do processo europeu de integração, o clímax do movimento de organização comunitária, a etapa mais avançada de um processo de integração económica regional (segundo a tipologia dos processos de integração, introduzida por Bela Balassa, em 1961); um bloco comunitário dotado de uma estrutura supranacional e de personalidade jurídica de direito internacional, formado por países que mantêm-se enquanto sujeitos de direito, unidos sem fusão, e que optaram pela primazia do ordenamento jurídico comunitário.

O processo de integração da Europa foi marcado por etapas históricas, cujo método consistiu na construção de uma integração económica global realizada, passo a passo, e impulsionada por grandes projectos que mobilizaram a vontade nacional em determinadas conjunturas históricas: a coordenação dos escassos recursos para a reconstrução económica do pós-guerra; a gestão em comum dos recursos do carvão e do aço, matéria-prima da produção bélica no princípio dos anos cinquenta, o salto comunitário em 1951, quando foi assinado em Paris o Tratado da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), por França, Itália, Alemanha, e países do Benelux (Luxemburgo, Bélgica e Holanda) e em 1957, quando em Roma, firmaram-se os tratados que criavam a Comunidade Europeia de Energia Atómica (CEEA) e a Comunidade Económica Europeia (CEE), que comportava a liberação dos intercâmbios, envolvendo a livre circulação de mercadorias, serviços, capitais e pessoas, bem como a harmonização de política comuns.

A necessidade de criação de uma moeda comum foi sentida, por empresários e governantes, a partir do final da década de sessenta, com o objectivo inicial de fazer frente ao dólar americano, à época, muito forte na Europa. A autoria intelectual dessa moeda deve-se a Pierre Werner, primeiro-ministro de Luxemburgo, que elaborou um plano de união monetária a ser implementado nos países da CEE, em três etapas, no período máximo de dez anos. Segundo a proposta desse governante, a implantação de uma moeda única no território europeu dar-se-ia no início da década de oitenta.

Entretanto, nos primeiros anos da década de setenta, as sucessivas crises petrolíferas e o colapso do sistema monetário internacional, conhecido como Bretton Woods[2], baseado nas paridades fixas, funcionaram como desestabilizadores da proposta de unidade monetária para a Europa e da consolidação das comunidades europeias. O Sistema Monetário Europeu (SME) é criado para enquadrar e reduzir as flutuações entre as moedas dos países-membros da CEE.

Em 1983, a crise financeira vivida pela França, apontava para a necessidade de fortalecimento do projecto integracionista na Europa. Jacques Delors, ministro das Finanças, convence o presidente François Miterrand da necessidade de tomar medidas para fortalecer o franco face ao marco alemão. Mais tarde, o próprio Delors, então presidente da Comissão Europeia, confiando que a paridade cambial permitiria trocas mais facilitadas entre os Estados-membros da UE, apresentou sua estratégia para uma "Europa dormente", cujo objectivo era fortalecer o mercado interior até 31 de dezembro de 1992. Em 1986, com o Acto Único Europeu, dá-se a primeira revisão de fundo do Tratado de Roma, como reacção à crise de estagnação económica que abalou a Europa, quando a ideia de integração política económica e monetária retomou o vigor, com o projecto de um grande mercado unificado de bens e serviços, trabalhadores e capitais, para o início dos anos noventa. A aprovação dos sucessivos planos Delors encampava um conjunto de medidas com vistas a conduzir o mercado interno a um nível mais elevado de competitividade. Durante esse período, após a queda do muro de Berlim e o desmembramento da União Soviética, a Europa fortaleceu a ideia de uma União Económica e Monetária (criada em 1990) e concebeu o Tratado de Maastricht, que fez surgir a União Europeia (UE), assinado em 07 de fevereiro de 1992, para vigorar a partir de 01 de novembro de 1993. A partir de então, a Europa insere-se definitivamente na lógica da globalização, impulsionada desde o início dos anos oitenta pelos EUA e pelo Reino Unido.

A primeira fase de implantação da União Económica e Monetária (UEM), que se estendeu até dezembro de 1993, consagrou a livre circulação de capitais e uma colaboração mais específica no âmbito das políticas económicas, orçamentárias, cambiais e monetárias.

Entre janeiro de 1994 e dezembro de 1998, segunda fase de implementação da UEM, foi criado o Instituto Monetário Europeu (antecessor do Banco Central Europeu), que determinou a política macro-económica do bloco e preparou a entrada da moeda comum, com medidas como a proibição do financiamento do sector público pelos bancos centrais nacionais e a obrigação desses bancos de evitar débitos excessivos. Assiste-se a uma retracção da regulação estatal na medida em que há uma aceleração das medidas de privatização.

A introdução do euro foi projectada para realizar-se em três períodos sucessivos. Em 1998, a União Europeia definiu os países em condições de abrir mão de suas moedas nacionais para aderir à moeda única comunitária, o Euro, e criou o Banco Central Europeu (BCE), que, em conjunto com os Bancos Centrais de cada Estado-Membro, passaram a formar o Sistema Europeu dos Bancos Centrais (SEBC). De 1999 a 2001, o euro é instituído enquanto moeda, o BCE assume a responsabilidade da política monetária europeia e os Bancos Centrais Nacionais concretizam as transações correspondentes à nova política monetária europeia.

Em 01 de janeiro de 2002, num passo histórico decisivo para a implantação definitiva da União Económica, as notas e moedas de euros são introduzidas nos doze países aderentes; todas as transformações e adaptações terão que ser concluídas, num dos mais importantes consensos aparentes já gerados no seio da UE.

Os discursos mais optimistas argumentam que a moeda única contribuirá para a homogeneidade dos preços e para a redução nos gastos de transação, pela supressão dos custos de conversão de moeda, nos países do euro. Para estes, a criação do euro é o sinal mais evidente de fortalecimento da Europa porque conclui o edifício do mercado único europeu.

Entretanto, as políticas macro-económicas até o momento adoptadas em torno do euro, tornam a arquitectura da União Europeia particularmente assimétrica. O Tratado de Maastricht confere primazia à política monetária, relegando a plano secundário as políticas orçamentárias e fiscais. Se, por um lado, a política monetária é organizada numa estrutura federal, o SEBC, composto, actualmente, pelos bancos centrais nacionais dos doze países que aderiram ao euro, sob a direcção do BCE, a política fiscal continua a cargo de cada Estado-membro e a política orçamentária, após o Pacto de Estabilidade e Crescimento, de 1997, na tentativa de proteger a estabilidade cambial da zona euro de débitos orçamentários excessivos, prioriza a participação orçamentária comunitária às questões macro-económicas, impossibilitando a elaboração de um orçamento nacional capaz de fazer frente às despesas públicas[3] e a uma justa distribuição de rendas. Nesse sentido, mantém ou acentua a desigualdade entre os países do euro, vez que a proporcionalidade conduz a um nivelamento mantenedor do status quo.

A criação de um sistema monetário único, sem modificações nas taxas de câmbio, aponta imediatamente para uma outra prioridade política: atribuir papel cada vez mais relevante às políticas orçamentárias e fiscais. Se já não há flutuações no âmbito monetário, os novos ajustamentos passam por outros institutos económicos, como preços, salários, empregos, capital etc. evitando, assim, futuro processo inflacionário, elemento fatal para a estabilidade monetária e para a existência do euro. O perigo de inflação ou de recessão paira ameaçador como um custo social que o euro pode provocar e que os europeus podem vir a enfrentar.

O euro surgiu de uma dinâmica puramente económica e financeira, fruto das exigências dos grandes grupos económicos em funcionamento no mercado comum europeu, e põe-se a substituir as moedas nacionais, símbolos da luta de sobrevivência de cada país, referências históricas, às vezes seculares, de cada povo. Tal como está, o euro é apenas uma moeda funcional, um mero instrumento de troca, em toda a sua crueza económica. Sua única expressão colectiva está no nome euro, numa referência explícita à Europa. Boa parte das pessoas ainda não conhece o valor de troca do euro, não confia no euro e teme pela inflação que pode vir a ocorrer em virtude do arredondamento de preços no varejo.

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O euro não veio de uma comunidade social, económica e politicamente fortalecida mas parece ter surgido, dentre outros objectivos, com a finalidade de consolidar essa comunidade. O novo dinheiro não simboliza, para os cidadãos, a consciência de um elo comum entre pessoas e nações que precisam manter-se unidos e assinalar a sua existência, enquanto grupo, pela instituição de seu próprio padrão monetário de referência. A autoridade monetária europeia não parece ter e, de facto, não tem a legitimidade de uma autoridade política. Esse deslocamento de poder aliado à ausência de base democrática, transforma a nova moeda numa realidade estranha, gerada nos comités burocráticos e posta às vias de fato para o consumo interno de uma população até então indiferente. O cidadão comum finalmente toma consciência de que esse processo também envolve seus interesses e apercebe-se que faz parte dessa cadeia. Mas está tomado por dúvidas e desconfianças múltiplas; teme por fraudes, teme pela reversibilidade do processo. Não consegue reconhecer no euro dimensões simbólicas nem legitimidade política.

A partir do momento em que parte essencial da emissão monetária compete a bancos comerciais privados e quando o valor dessa divisa não se refere a um padrão material, esse dinheiro precisa ancorar-se em valores intrínsecos que representem as comunidades políticas de uma base territorial específica, para além das contradições sociais que possam existir entre elas. Bruno Théret, da Universidade de Paris-Dauphine, lembra que a ilegitimidade da moeda com curso legal pode conduzir a uma redução drástica do papel que desempenha nas transacções e no aparecimento de moedas paralelas, circulando em comunidades de pagamento reduzidas. Esse déficit de legitimidade é deixado transparecer nas próprias notas de euro, onde a intercomunicação entre os países-membros, que dá a tónica à criação do euro, é exclusivamente representada pela abertura para o mercado, através da abertura de portas e da travessia de pontes.

Sob o aspecto material, como as notas e moedas de euro podem circular livremente em todo o território com o mesmo valor pecuniário, aspira ser uma moeda única. Sob o aspecto formal, em cada Estado-membro as moedas, cunhadas pelos Tesouros públicos nacionais, têm uma face específica, o que pretende uma indicação de moeda não única, mas comum. Entretanto, se não houver todo o cuidado de cercar a criação do euro de outras medidas políticas que procurem consolidar a estrutura comunitária, mobilizar as vontades nacionais para gerar a consciência do processo histórico e conferir legitimidade, ética inclusive, à nova unidade monetária, inspirando confiança na sua continuidade e na sua aptidão para auxiliar a prover o bem comum, o euro poderá até ser uma moeda única mas não terá o espírito de uma moeda comum e corre o perigo de ser rejeitada.


Notas

1.A moeda única europeia foi adoptada por Alemanha, Áustria, Bélgica, Espanha, Finlândia, França, Grécia, Holanda, Irlanda, Itália, Luxemburgo e Portugal.

2.Referência ao Acordo da Conferência Internacional Monetária de Bretton Woods, estabelecido em 1944, visando assegurar estabilidade monetária internacional, impedindo que o dinheiro escapasse dos países e restringindo a especulação com as moedas mundiais. Os países mantinham o valor de suas moedas numa faixa estreita em relação ao dólar e uma taxa correspondente de ouro, conforme necessário. Antes desse acordo, o padrão ouro de troca, onde as moedas tinham garantia de estabilidade pelo preço do ouro, dominou o sistema económico internacional, de 1876 até a Primeira Guerra Mundial. O Acordo de Bretton Woods foi abandonado em 1971, pelo presidente Richard Nixon, e o dólar americano deixou de ser conversível em ouro. A partir de 1973, as moedas voltaram a flutuar, controladas essencialmente pelas forças da oferta e da procura.

3.Apenas uma pequena parte das despesas públicas constitui o orçamento comunitário (1,27% do PIB europeu, em março de 1999).


Referências Bibliográficas

ALENCAR, Maria Luiza Pereira de. A Constituição Brasileira e a Integração Latino-Americana. João Pessoa, Universitária, 2001.

ALMEIDA, Paulo Roberto de. Mercosul e União Européia: Vidas Paralelas? Boletim de Integração Latino-Americana. Brasília, MRE, N. 14, p. 16-25.

BALASSA, Bela. Teoria da Integração Económica. Trad. Maria F. Gonçalves e Maria E. Ferreira. Lisboa, LCF, 1972. Tradução de: Theory of Economic Integration.

PLIHON, Dominique. Governos Desarmados. In Le Monde Diplomatique, ed. Portuguesa, n. 33, dez./2001.

RAMOS, Rui M. G. De Moura. Das Comunidades à União Europeia. Coimbra, Coimbra, 1994.

THÉRET, Bruno. O Euro e seus Tristes Símbolos. In Le Monde Diplomatique, ed. Portuguesa, n. 33, dez./2001.

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Sobre a autora
Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer Feitosa

professora de Direito da UFPB, João Pessoa (PB), mestra e doutoranda em Direito Econômico pela Universidade de Coimbra (Portugal)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FEITOSA, Maria Luiza Pereira Alencar Mayer. O euro e o déficit de legitimidade que o cerca. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 54, 1 fev. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2597. Acesso em: 26 abr. 2024.

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