I -Introdução:
A previdência complementar fechada no Brasil é um ramo do direito previdenciário que ainda nos dias atuais se apresenta como algo novo, em processo de descoberta pela doutrina tradicional e pela jurisprudência.
Não raras são as decisões judiciais que confundem os conceitos, a natureza jurídica das instituições, as relações intersubjetivas entre as pessoas físicas e jurídicas envolvidas e o papel do Estado na regulação e fiscalização desse regime previdenciário.
Para alguns doutrinadores a previdência complementar sequer estaria inserida no sistema de Previdência Social, embora atualmente tal afirmação não mais se justifique diante da previsão da matéria no art. 202 da Constituição Federal, que faz parte da Seção III da Previdência Social, Capítulo II da Seguridade Social e Título VIII da Ordem Social, a partir da nova redação da Emenda Constitucional nº 20/1998.
Mas a previdência complementar não é fenômeno novo no Brasil.
As primeiras entidades privadas destinadas à proteção social dos trabalhadores datam do século XIX, quando em 1835 foi criado o Montepio Geral de Economia dos Servidores do Estado – MONGERAL.
No direito infraconstitucional existe regulamentação da matéria desde o ano de 1977, com a Lei nº 6.435/77, posteriormente revogada pela Lei Complementar nº 109/2001.
A ausência de desenvolvimento do estudo científico da matéria, o que até pouco tempo também permeava o direito previdenciário como um todo, pois sequer existia disciplina própria obrigatória nas grades curriculares das faculdades de direito, muitas vezes deve-se ao fato da abordagem multidisciplinar do tema, exigindo do profissional a busca por conhecimentos não somente jurídicos, mas também nas áreas de finanças, atuária e contabilidade, o que aumenta o grau de dificuldade para o domínio da matéria.
Outro ponto fundamental para a incorreta compreensão da relação jurídica de previdência complementar é a tradição brasileira dos serviços previdenciários estar associada a um agir do Estado, em que este seria o provedor exclusivo das necessidades sociais da população, respondendo pelo custeio dos serviços e prestações previdenciárias, mesmo que, eventualmente, não existam recursos disponíveis no fundo previdenciário.
Não que se deva afastar qualquer obrigação do Estado em relação ao seu corpo social. Sempre boa a lembrança de que os objetivos de nossa República previstos na Constituição Federal estão associados à erradicação da pobreza e ao bem-estar e desenvolvimento sociais[1], sendo um dever constitucional do Estado a criação de políticas e ações destinadas a minorar os riscos sociais da população menos favorecida economicamente.
Ocorre que um Estado que tem como fundamento os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, protegendo a propriedade privada e estimulando a livre concorrência, deve também prover as condições necessárias para garantir o planejamento previdenciário de seus cidadãos, oportunizando o crescimento da qualidade de vida do segurado e de sua família.
A mudança do quadro social do Brasil nos últimos tempos, com estabilidade financeira e aumento do nível de renda da população, tem intensificado a importância da previdência complementar para a sociedade, considerando que o modelo de Estado Social (welfare state) não mais tem suportado custear sequer as necessidades mais prementes da população, como emprego, saúde, educação e segurança pública.
Essa é uma realidade mundial.
Vários países da Europa, a exemplo daqueles que integram a zona do Euro (França, Espanha, Portugal, Grécia, para ficar apenas naqueles que estão nos noticiários recentes), tem sofrido com os altos custos para a manutenção das ações sociais do Estado, o que tem exigido desses países alterar a estrutura jurídica dos seus sistemas previdenciários, seja para excluir benefícios previstos pela legislação, seja para incluir no cálculo desses benefícios um fator de proporcionalidade entre o tempo de contribuição/idade do segurado e o valor do benefício pago, ou para implementar regimes previdenciários públicos ou privados que adotem o modelo financeiro de capitalização, em substituição ao modelo de repartição, este último com altos custos sociais para sua manutenção[2].
A participação de entidades privadas na prestação de serviços previdenciários faz parte dessa evolução em busca da ampliação da proteção social dos cidadãos.
É sempre bom realçar que a participação de pessoas jurídicas de direito privado na execução dos serviços de previdência não descaracteriza o seu caráter social, considerando que esse modelo de atuação paralela de entes públicos e privados está presente em outros serviços essenciais à população, como a saúde, educação e assistência social, serviços estes que historicamente são aceitos como socialmente úteis à coletividade, de interesse público, atuando o Estado ora como agente promotor do segmento econômico, realizando atividades de fomento (concessão de isenções ou imunidades tributárias, repasse de dinheiro público para a execução de atividades de interesse público[3], etc.), ora como agente regulador e fiscalizador do sistema, nos termos do art. 174 da carta constitucional (como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado).
Ao lado dos regimes previdenciários públicos e obrigatórios, atualmente vocacionados à proteção previdenciária social básica, limitado até determinado montante pecuniário, vem crescendo a cultura da administração privada de recursos financeiros destinados a ampliar o âmbito de proteção previdenciária dos cidadãos, onde o limite do nível de proteção social é a capacidade financeira de poupança de cada integrante do corpo social.
E esse quadro de ampliação da proteção previdenciária é um movimento sem retorno. As necessidades humanas são ilimitadas. À medida que o nível social e econômico das pessoas se amplia, também se descortinam para o homem e sua família outras necessidades que o inspiram a realizar projetos pessoais e o respectivo planejamento financeiro.
Para fazer valer essa necessidade da máxima proteção social, a legislação brasileira põe à disposição dos cidadãos um sistema previdenciário de caráter paralelo, em que coexistem sistemas públicos e privados, complementares e não excludentes entre si.
A seguir, em breve resumo, o sistema previdenciário brasileiro é composto por dois subsistemas[4], os quais se desdobram em regimes previdenciários:
- Subsistema previdenciário público, composto por: Regime Geral de Previdência Social, destinado a todos os trabalhadores que exercem atividade remunerada, correspondendo a um regime público, administrado por ente estatal (INSS) e obrigatório, aplicável independentemente do concurso da vontade do trabalhador, utilizando o regime financeiro de repartição simples (pacto solidário intergeracional); Regimes Próprios de Previdência Social, destinados aos servidores públicos efetivos da União, Estados, Municípios e Distrito Federal, também com características de um regime público e obrigatório, administrado por órgão ou entidade vinculada à pessoa política estatal, utilizando o regime de repartição simples.
- Subsistema previdenciário privado: Regime de Previdência Complementar Fechado é um regime previdenciário privado, pois administrado por pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos (fundações privadas[5]) denominadas Entidades Fechadas de Previdência Complementar – EFPC[6] e regido por normas do direito civil, embora o contrato sofra forte regulação do Estado; de caráter facultativo, já que os possíveis participantes não são obrigados a aderir aos planos de benefícios oferecidos pelos empregadores (patrocinadores dos planos), pelas associações e cooperativas (instituidores dos planos, nos planos oferecidos aos associados ou membros de pessoas jurídicas de caráter profissional, classista ou setorial) ou pelo ente público ao qual o servidor público encontra-se vinculado (previdência complementar do servidor público). Este regime adota o regime financeiro de capitalização, em que as contribuições vertidas pelos participantes e pelos patrocinadores do plano são convertidas em ativos que, somados aos rendimentos obtidos pela aplicação desses ativos no mercado financeiro ou em razão da valorização do bem adquirido, integram os recursos que serão destinados para o pagamento dos benefícios contratados. A fonte normativa primária é o art. 202 da Constituição Federal e as Leis Complementares nº 108/2001 e nº 109/2001, editadas na mesma data (29/05/2001); Regime de Previdência Complementar Aberto, com as mesmas características descritas nos planos das EFPC, com o diferencial de que os planos são oferecidos a quaisquer pessoas físicas, indistintamente, e administrados por entidades de direito privado denominadas Entidades Abertas de Previdência Complementar – EAPC, constituídas na forma de sociedades anônimas com fins lucrativos, as quais possuem autorização da Administração Pública Federal para operar planos de benefícios previdenciários, sem a necessidade da existência de prévio vínculo jurídico entre o pretenso participante do plano e a entidade aberta. As normas básicas que regulamentam o subsistema de previdência complementar aberta constam na Lei Complementar nº 109/2001 e no Decreto-lei nº 73/66.
E dentro dessa perspectiva quadripartite das técnicas de proteção previdenciária é que deve ser entendido o sistema previdenciário brasileiro.
II - Os riscos na gestão dos regimes previdenciários:
O principal desafio de todo sistema previdenciário, seja qual for o tratamento jurídico dado aos modelos previdenciários adotados, é garantir que todos os benefícios e serviços previstos por lei ou contrato, e prometidos aos segurados e seus dependentes, sejam efetivamente fornecidos aos seus beneficiários.
A credibilidade do sistema previdenciário perante a sociedade é diretamente proporcional ao efetivo cumprimento das regras estabelecidas na lei ou no contrato previdenciário.
E como toda relação jurídica de longo prazo várias são as vicissitudes que podem incidir sobre as regras postas, que põem sob ameaça o cumprimento dos direitos subjetivos previdenciários dos cidadãos – são os riscos da proteção previdenciária.
Os riscos podem ser interpretados como o nível de incerteza associado a um acontecimento (evento) previsível ou não previsível[7].
Merece transcrição a análise do tema por Flávio Martins Rodrigues:
O tema, de imediato, remete a saber o que, afinal, é risco sob uma perspectiva de índole mais geral e também com o foco jurídico. A palavra “risco” se origina da expressão italiana riscare (essa, de sua vez, derivada do baixo latim risicu, riscu) que significa ousar, ou seja, ter uma atitude (comissiva ou omissiva) capaz de colocar-se em perigo. Essa dimensão da expressão demonstrou-se limitada, pois os riscos não derivam de atos ousados, muitos riscos são suportados em função de fatos externos, que não se pode controlar.
(...)
Como se disse, temos tido a oportunidade de refletir sobre esse tema, sobretudo com suas vinculações com os regimes de previdência. É curioso, porque as prestações previdenciárias compõem regimes voltados para atender as pessoas em situações de “risco social”. Assim, por exemplo, quando não se pode trabalhar em função de um acidente (percebe-se o auxílio-doença ou aposentadoria por invalidez) ou de idade avançada (percebe-se a aposentadoria por idade), as prestações previdenciárias atuam como “seguradoras” desses riscos. Deve-se perceber que os regimes previdenciais também suportam riscos, que precisam ser aferidos e controlados.
Deve-se perceber que o risco não é um destino traçado pelos deuses, mas uma dimensão que pode ser medida, com alguma dose de acerto[8]. (...)
Na previdência complementar não é diferente. Os riscos incidentes sobre o contrato previdenciário são de diversas ordens e matizes, e põem sob ameaça a sustentabilidade financeira do plano de benefícios, sendo possível destacar como os principais entraves para o cumprimento das obrigações de natureza previdenciária:
- riscos jurídicos: são os riscos derivados da tributação, riscos judiciais (prestação jurisdicional), riscos decorrentes da própria legislação, etc.
- riscos econômicos: associados às alterações nos índices da economia dos países, níveis de emprego, renda, inflação, câmbio, produção, exportação e importação, etc.
- riscos atuariais: relacionados ao cálculo matemático prévio realizado para dimensionar o montante necessário para o custeio dos benefícios e serviços previdenciários.
- riscos demográficos: ligados aos fatores de crescimento populacional, natalidade, mortalidade, envelhecimento e migração populacional[9].
O Dicionário de Termos e Conceitos mais usados no Regime de Previdência Complementar elaborado pelo Ministério da Previdência Social[10] traz alguns conceitos de riscos que expõem o contrato previdenciário, entre os quais:
- RISCO BIOMÉTRICO. Consiste na probabilidade passível de cálculo atuarial de perda ou ganho numa decisão de investimento ou de desvio em relação à meta atuarial.
- RISCO DE CONTRAPARTE. Risco de um devedor ou tomador deixar de cumprir os termos de qualquer contrato com a entidade ou de outra forma deixar de cumprir o que foi acordado.
- RISCO DE CRÉDITO. Associado à possibilidade de inadimplência por parte do agente devedor em uma operação de crédito.
- RISCO DE LIQUIDEZ. Risco de perda resultante da falta de recursos necessários ao cumprimento de uma ou mais obrigações da entidade em função do descasamento de atribuições e aplicações.
- RISCO DE MERCADO. Risco de que o valor de um instrumento financeiro ou de uma carteira de instrumentos financeiros se altere, em função da volatilidade das variáveis existentes no mercado, causada por fatores adversos, políticos ou outros.
- RISCO LEGAL. Possibilidade de perdas decorrentes da inobservância de disposições legais, estatutárias e regulamentares e de procedimentos necessários à formalização de operações desenvolvidas, bem como da insolvência da contraparte em negócios realizados.
- RISCO OPERACIONAL. Risco de perda resultante de falhas de processos internos, de pessoas ou de sistemas inadequados, ou ainda da ocorrência de eventos externos.
A presença dessas situações de risco no contrato previdenciário impõe como desafio a constante realização de estudos técnicos e a elaboração de instrumento jurídicos de proteção patrimonial dos recursos destinados ao pagamento dos benefícios, para prevenir sua ocorrência ou, no caso de resultado financeiro deficitário, a promoção de medidas visando readequar o montante de recursos garantidores disponíveis a níveis de integral cobertura dos compromissos previdenciários assumidos pelo plano.
Contornar esses riscos, superando quaisquer obstáculos que repercutam negativamente para o cumprimento das cláusulas do contrato previdenciário, é o objetivo que se busca em todo sistema de previdência complementar.
O importante é a presença constante nas EFPC da cultura da prevenção de riscos, há muito enraizada na iniciativa privada, criando instrumentos de controle interno baseado em informações atuariais, financeiras e contábeis que contribuam com o processo decisório da entidade na área de investimentos, sendo também relevante a atuação preventiva das instituições de controle externo, como a Superintendência Nacional de Previdência Complementar – Previc[11], autarquia que fiscaliza o regime fechado de previdência complementar.
No que interessa ao presente estudo, o patrimônio dos planos de benefícios de previdência complementar são submetidos a uma série de riscos jurídicos, cabendo destaque aqueles relacionados a decisões judiciais equivocadas que põem em risco a solvência financeira dos planos.
III -A necessidade da separação dos patrimônios dos sujeitos da relação jurídica de previdência complementar fechada:
Importa, neste momento, para o fim do desenvolvimento deste trabalho, tecer algumas considerações sobre o risco jurídico da utilização dos recursos que compõem as reservas de poupança individual dos participantes para a satisfação de outras obrigações, sejam aquelas contraídas pela EFPC que administra o plano de benefícios, sejam obrigações outras contraídas pelos participantes, assistidos, patrocinadores ou por outro plano de benefícios administrado pelo mesmo fundo de pensão.
É o que a doutrina especializada tem chamado de independência patrimonial dos planos de benefícios[12][13] ou, como preferimos, por representar um objeto de análise mais abrangente, de proteção ou blindagem patrimonial dos planos de benefícios, que envolve, além da separação patrimonial, a efetiva proteção legal dos recursos financeiros destinando-os a sua finalidade contratual.
O professor Wagner Balera tingiu com cores fortes a necessidade da preservação da destinação específica dos recursos financeiros vertidos aos planos de benefícios:
Em consonância com os aspectos que se entrelaçam, devem, os recursos alocados ao plano, a um só tempo, garantir a renda que cumpra a sua finalidade institucional e, também, proporcionar equilíbrio financeiro ao patrimônio coletivo.
Disso decorre que a importância vertida para o plano pertence, concomitantemente, à coletividade dos participantes e a cada pessoa individualmente considerada, nos termos contratuais, constituindo verdadeiro bem comum[14].
A doutrina clássica, representada por Orlando Gomes, já de há muito reconhece a possibilidade da existência de um patrimônio especial afetado a uma finalidade específica e sobre o qual se estabelecerão relações jurídicas.
A tese da unidade do patrimônio confunde duas noções distintas: a de patrimônio e a de personalidade. O patrimônio seria a aptidão para ter direitos e contrair obrigações, tornando-se, assim, um conceito inútil.
Contra esse subjetivismo, nascido de preocupações lógicas, levanta-se a doutrina moderna, que justifica a coesão dos elementos integrantes de uma universalidade de direito pela sua destinação comum. O vínculo é objetivo. Patrimônio será, desse modo, o conjunto de bens coesos pela afetação a fim econômico determinado. Quebra-se o princípio da unidade e indivisibilidade do patrimônio, admitindo-se um patrimônio geral e patrimônios especiais.
No patrimônio geral, os elementos unem-se pela relação subjetiva comum com a pessoa. No patrimônio especial, a unidade resulta objetivamente da unidade do fim para o qual a pessoa destacou, do seu patrimônio geral, uma parte dos bens que o compõem, como o dote e o espólio.
A ideia de afetação explica a possibilidade da existência de patrimônios especiais. Consiste numa restrição pela qual determinados bens se dispõem, para servir a fim desejado, limitando-se, por este modo, a ação dos credores[15].
No âmbito das fundações esse conceito de afetação patrimonial é algo inerente, considerando a própria expressão do Código Civil (art. 62) que “para criar uma fundação, o seu instituidor fará, por escritura pública ou testamento, dotação especial de bens livres, especificando o fim a que se destina, e declarando, se quiser, a maneira de administrá-la”.
Não é necessário que o patrimônio seja designado no ato da instituição da fundação, mas deve haver a promessa da destinação em momento futuro, como leciona Pontes de Miranda[16]:
5. Patrimônio. A dotação de bens somente é pressuposto quanto à segurança de que esses bens podem ser aumentados e bastariam à mantença da fundação, ou quanto a virem a pertencer, com segurança, à fundação. Essa a razão por que o pressuposto está satisfeito se há promessa, que as circunstâncias tenham por promessa de adimplemento seguro.
No caso específico das fundações criadas para administrar os planos de benefícios de previdência complementar fechada, a maior parte dos recursos vertidos pelos patrocinadores e participantes é direcionado para a constituição das reservas matemáticas para pagamento de benefícios, sendo destinada apenas uma pequena parcela para o custeio do funcionamento administrativo da pessoa jurídica.
Para o custeio de outras despesas, que não as despesas de natureza previdenciária, são destinados recursos que compõem o Plano de Gestão Administrativa - PGA. Esses recursos do PGA, embora não afetados ao pagamento de benefícios, não são atualmente registrados contabilmente como patrimônio da fundação (EFPC), embora esta seja, no nosso entender, a medida mais adequada sob o aspecto formal e jurídico, considerando que não existe fundação, conforme dizer do próprio Código Civil, sem patrimônio que garanta o seu funcionamento.
Assim, podemos, em resumo, identificar na estruturação da previdência complementar, um patrimônio das entidades fechadas, formado pelo PGA e/ou demais receitas e despesas não afetadas ao pagamento dos benefícios, e o patrimônio especial pertencente ao plano de benefícios que, ao final e ao cabo, pertencem individualmente aos participantes e assistidos na proporção dos valores vertidos às contas individuais.
E essa individualização patrimonial das reservas matemáticas deve ser considerada independentemente de como se mantém estruturados os benefícios ofertados (benefício definido, contribuição definida, contribuição variável ou outras formas criadas pela legislação), já que o titular final do direito de propriedade, ou seja, quem possui personalidade jurídica para ser sujeito de direitos e obrigações em relação às prestações previdenciárias, é a pessoa física (participante, beneficiário ou assistido) e não o plano de benefícios, que é uma universalidade de direito criada para congregar subjetivamente os interesses de várias pessoas físicas que se encontram ligadas a uma relação jurídica comum (plano de benefícios), disciplinada pelo regulamento.
No estágio atual da previdência complementar busca-se solidificar a proteção dos recursos das reservas individuais para que estas não fiquem suscetíveis a decisões judiciais ou administrativas que venham a realizar atos de constrição patrimonial para pagamento de dívidas de outra natureza.
Elencamos as seguintes situações hipotéticas que podem repercutir negativamente no equilíbrio financeiro do contrato previdenciário:
- a utilização da reserva de poupança individual dos participantes para pagamento de valores pleiteados por outros participantes do mesmo ou de plano de benefícios diverso administrado pela mesma entidade;
- a utilização da reserva de poupança individual dos participantes para pagamento de dívidas contraídas pela entidade fechada; e
- a utilização da reserva de poupança individual dos participantes para pagamento de dívidas contraídas pelo patrocinador.
Em todas as situações descritas parte dos recursos afetados ao pagamento dos benefícios serão direcionados ao adimplemento de obrigação de natureza diversa, reduzindo a reserva matemática individual do participante e, por consequência, o valor da futura renda mensal prevista no plano de benefícios.
Entendamos melhor a estruturação da relação jurídica de previdência complementar fechada.
A atividade de previdência complementar fechada é um serviço privado de interesse público[17].
O conceito de relação jurídica de previdência complementar gira em torno do conceito de plano de benefícios, por ser este o ponto central por onde gravitam os direitos subjetivos dos destinatários da proteção social. Um grupamento social pode ser destinatário da proteção previdenciária complementar prescindindo da criação, por iniciativa própria ou de seu empregador ou associação, de uma pessoa jurídica (EFPC), utilizando-se de uma entidade em funcionamento, mas jamais prescindirá da existência do plano de benefícios.
Plano de benefícios é o patrimônio jurídico coletivo formado pelas reservas matemáticas individuais dos destinatários da proteção social, e valores direcionados a custear o funcionamento da pessoa jurídica responsável pela gestão dos recursos financeiros, onde estarão dispostos os direitos e obrigações da coletividade tutelada em relação ao plano. A validade jurídica do plano de benefícios dependerá de prévia aprovação do seu regulamento pelo órgão supervisor e fiscalizador da previdência complementar fechada, atualmente a Superintendência Nacional de Previdência Complementar – Previc, criada pela Lei nº 12.154/2009.
A administração desse patrimônio compete a uma pessoa jurídica denominada Entidade Fechada de Previdência Complementar - EFPC, criada sob a forma de fundação civil sem fins lucrativos, que recebe licença do Estado para atuar no segmento econômico de previdência privada. Essas pessoas jurídicas podem ser criadas por empresas ou por entes estatais (fundos de pensão patrocinados), aos seus empregados ou servidores públicos[18], ou por associações e cooperativas (fundos de pensão instituídos, sem patrocínio ou aporte de recursos pelo instituidor), para os associados ou membros de pessoas jurídicas de caráter profissional, classista ou setorial.
Os participantes são os destinatários da proteção social e que figuram como parte na relação contratual. São os segurados, utilizando-se da expressão do Regime Geral de Previdência Social - RGPS. Se estiverem em gozo de benefício são denominados de assistidos. No contrato previdenciário também podem figurar os beneficiários (dependentes), que são aqueles indicados pelos participantes como destinatários da proteção social, em relação a riscos sociais que geralmente afetam o sustento da família do participante (ex: óbito e a concessão da pensão por morte). Não é demais a lembrança que, por não possuírem vinculação com o RGPS[19], o regulamento do plano de benefícios poderá não prever prestações aos beneficiários, mas apenas aos próprios participantes enquanto estiverem em vida (ex: benefício de aposentadoria).
O patrocinador é aquele que, além de promover a criação da EFPC, vincula-se ao plano de benefício por ela administrado, realizando aportes financeiros direcionados aos seus empregados. Nada impede que o patrocinador realize aportes financeiros em EFPC já existente e criada por outras pessoas jurídicas, celebrando com essa entidade fechada convênio de adesão para patrocínio de plano de benefícios específico para seus empregados.
Instituidores são aqueles que criam as entidades fechadas para que esta ofereça plano de benefícios para seus associados (ex: OABPrev), sem possuir obrigação contratual contributiva para o plano de benefícios.
O liame jurídico entre a EFPC e o patrocinador do plano de benefícios estará disciplinado no Convênio de Adesão, que é o instrumento jurídico que detalhará os direitos e obrigações do patrocinador em relação a cada plano administrado pela entidade fechada.
Uma EFPC poderá administrar um ou vários planos de benefícios, quando passa a denominar entidade de plano comum ou de multiplano, respectivamente. Neste último caso, nas entidades multiplano, os patrimônios de cada plano de benefícios permanecerão contabilmente segregados, sendo possível visualizar a individualização da poupança ou reserva individual de cada participante em relação ao plano de benefícios[20].
A EFPC será conhecida como singular, quando estiver vinculada a apenas um patrocinador ou instituidor; e como multipatrocinadas, quando congregarem mais de um patrocinador ou instituidor. Essa a dicção do art. 34 da LC 109/2001.
Já a relação jurídica entre a EFPC e os participantes em relação ao plano de benefícios estará disciplinada no regulamento. Neste instrumento jurídico estarão dispostos os direitos e obrigações das partes em relação ao plano de benefícios, os requisitos para concessão dos benefícios e a forma como os recursos serão vertidos e capitalizados no fundo. O regulamento nada mais é que um contrato previdenciário, regido pelo direito privado, mas cujo conteúdo sofrerá forte dirigismo (poder regulatório) do Estado, inclusive quanto à presença de cláusulas obrigatórias para preservar os interesses dos participantes e assistidos, a exemplo das cláusulas exigidas pelo art. 14 da LC 109/2001 (benefício proporcional diferido, portabilidade, resgate e autopatrocínio)[21].
Sob uma outra perspectiva, podemos dizer que a relação jurídica de previdência complementar é triangular[22] (participantes, patrocinadores e EFPC) e composta por uma relação jurídica prestacional (pagamento de benefícios) e uma relação jurídica de custeio (arrecadação de recursos financeiros), disciplinadas no Regulamento. A relação jurídica de patrocínio é disciplinada no Convênio de Adesão.