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O direito real de superfície entre particulares no Código Civil Brasileiro:

a extinção como modo de aquisição da propriedade plena pelo superficiário em caso de inocorrência de indenização

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12/12/2013 às 11:33
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4. O DIREITO INDENIZATÓRIO DO SUPERFICIÁRIO À MARGEM DA LEI

A propriedade, na sua extensão vertical, estende-se por em cima ou debaixo do solo até onde seja útil e conveniente[10]. As construções e/ou plantações que existem sobre ou debaixo do solo são consideradas autônomas em relação ao solo. O civilista Orlando Gomes (2002, p. 149) adverte que:

Por superfície não deve entender-se a crosta terrestre, ou seja, o solo que está em contato com o início do espaço atmosférico, porém, o que está incorporado ao solo (construções e plantações); é o que emerge do solo: é o sobre solo. (...) A extensão do poder do proprietário sobre o solo não se delimita pela superfície. (...) O poder do proprietário de um bem de raiz seria inútil se recaísse tão-somente em sua superfície. Há de se estender para cima e para baixo a determinada altura e a determinada profundidade. Se quer, por exemplo, edificar, terá de implantar os alicerces da construção do subsolo e erguê-la acima da superfície. Seu direito estende-se, portanto, verticalmente. Um terreno não é apenas ‘um espaço de limites determinados na superfície da terra’, se considerado do ponto de vista do poder que a ordem jurídica reconhece ao seu dono. Daí o princípio segundo o qual a propriedade do solo abrange a do que lhe está superior e inferior.

Roberto Gonçalves (2012, p. 443) nos auxilia na compreensão da essência do direito de superfície, podendo-se dizer, simplesmente, que esse direito corresponde a uma suspensão do princípio da acessão. O direito de superfície rompe com a tradicional regra de que a propriedade do solo compreende a das acessões que sobre ele se erguerem. É que, constituído este direito, a coisa acedida passará a pertencer à pessoa distinta da do proprietário do solo. Essa noção foi traduzida com precisão por José Teixeira (1993, p. 53) ao asseverar que “a admissão desse direito implica a suspensão, pelo tempo em que ele vigorar, do efeito aquisitivo da acessão”.

Adentrando-se na extinção do direito real em foco, o concessionário será indenizado pelas construções e/ou plantações, desde que haja cláusula contratual nesse sentido, uma vez que as coisas construídas ou plantadas pelo superficiário no terreno do concedente a ele pertencem. Extinta a concessão superficiária, o proprietário passará a ter a propriedade plena sobre o terreno, construção ou plantação, independentemente de indenização, salvo se as partes não tiverem estipulado o contrário.  É o que prevê o artigo 1375 do Código Civil brasileiro, in verbis:  “Extinta a concessão, o proprietário passará a ter propriedade plena sobre o terreno, construção ou plantação, independentemente de indenização, se as partes não houverem estipulado o contrário[11].” Cumpre destacar que o a extinção aqui tratada não decorre de infração de quaisquer cláusulas do instrumento constitutivo. Não é o caso de violação ao pacto, como por exemplo, quando o superficiário atribui ao terreno destinação diversa da que foi objeto da concessão (artigo 1374, Código Civil brasileiro)[12], mas sim de extinção pela ocorrência do termo final[13].

Há quem defenda que com o fim da concessão, o princípio da acessão, que estava temporariamente suspenso, volta a vigorar. Se a superfície acede ao solo e o solo pertence de forma plena ao proprietário, a superfície também pertencerá a este. Entretanto, como já mencionado, cabe estipulação contrária, “pois não é regra de ordem pública”, conforme salienta Silvio Rodrigues (2002, p.276).

Pergunta-se: em não havendo pagamento espontâneo da indenização pactuada e em não sendo o patrimônio do fundieiro suficiente para o seu pagamento, como sanar, minimizar ou evitar danos ao superficiário, que é o sujeito que investe no terreno alheio, tornando a propriedade produtiva? Como atribuir maior efetividade à cláusula de indenizar? Demonstrar-se-á que a aquisição da propriedade fundiária (do solo) pelo superficiário, quando da extinção do direito real em tela, é um meio de simplificar e fortalecer o direito indenizatório do qual é titular, rechaçando a propriedade imóvel improdutiva.

O legislador e a sociedade não têm interesse em terras ociosas. Aquele, visando à geração de riquezas e emprego, somada ao intento de corresponder à crescente complexidade das aspirações humanas, cria ou adapta mecanismos para esta árdua tarefa, haja vista a descomunal diferença de velocidade entre as mudanças das necessidades do homem e as alterações no ordenamento jurídico.

Maria Helena Diniz defende o instituto sustentando sua “grande utilidade econômica e social, diminuindo a crise habitacional, por incentivar a agricultura, por possibilitar uma reforma agrária e por fazer com que a terra, no meio urbano, inclusive, possa ser fonte de trabalho e produção (op.cit., p. 412)

O superficiário, como já visto, é aquele que cumpre com o intento do legislador e da sociedade tornando a propriedade produtiva. Indubitável que também tem vantagens, uma vez que  utiliza o bem sem pagar por ele (paga pelo uso e  pela fruição, caso seja a superfície onerosa).

A lei civil descurou do superficiário quando da extinção do direito real em tela. Previu a indenização pelo implante, desde que pactuada no título constitutivo, mas não conferiu efetividade ao seu recebimento.

É sabido que o devedor responde para o cumprimento de suas obrigações, com todos os seus bens presentes e futuros. Extinto o direito real de superfície e não satisfeita a indenização pactuada, o que deve fazer o seu titular? O Código de Processo Civil Brasileiro responde: propor ação de execução por quantia certa contra devedor solvente[14] que será exitosa apenas se o devedor tiver patrimônio disponível e compatível com o valor da dívida.

Supondo-se que nenhum bem seja encontrado ou que os encontrados não sejam suficientes para o pagamento do débito, o imóvel gravado pela superfície poderia garantir a execução e, em um segundo momento, com a hasta pública ou a adjudicação[15] satisfazer o crédito parcial ou integralmente e isso após longo período de litígio.

O legislador civilista teria conferido maior efetividade ao recebimento da verba em destaque se tivesse previsto, em acréscimo ao art. 1375, a aquisição da propriedade fundiária (do solo), em caso de não pagamento indenizatório em determinado prazo, a contar da extinção e independentemente de notificação, o que em termos práticos significaria a propriedade plena nas mãos do superficiário.

O incremento da efetividade no recebimento da indenização pactuada provavelmente traria maior aceitação do direito real de superfície. Permitir a aquisição da propriedade do solo pelo superficiário na extinção não-indenizada é reforçar o propósito da lei. É fomentar as transações imobiliárias de modo a disponibilizar às partes interessadas mais uma opção de empreendimento, com destaque à maior segurança atribuída ao investidor de ser indenizado pelo implante, viabilizando, ainda, a redução de propriedades imobiliárias ociosas, criando oportunidade àquele que não pode pagar pelo terreno de nele construir sua moradia ou seu negócio; de nele efetuar plantações de qualquer natureza, gerando riqueza e emprego.


5. RELEXÕES ACERCA DA EFETIVIDADE DO DIREITO DE INDENIZAÇÃO E “ENGESSAMENTO” DA PROPRIEDADE FUNDIÁRIA

Tornar a propriedade plena nas mãos do superficiário em caso de extinção do direito real de superfície pelo advento do termo, sem o pagamento de indenização seria um modo de “engessar” a disponibilidade da propriedade fundiária?  Porventura tal fato significaria a  constituição de um direito real de garantia sobre tal patrimônio, com fulcro em dívida futura? O interesse privado deve prevalecer sobre o interesse público, isto é, deve-se dar maior garantia ao concedente em detrimento do investidor?

O primeiro dos questionamentos é respondido pela realidade do mercado imobiliário. Excepcionalmente alguém adquirirá um imóvel gravado de superfície. A preferência é por bem de raiz livre e desembaraçado. Assim, uma vez registrado o direito real de superfície, a disposição da propriedade fundiária já se torna mais remota. O maior interessado na sua aquisição é o próprio concessionário.

O segundo deles tem sua resposta no título constitutivo. A dívida não é futura. A indenização é pactuada no referido documento. A sua exigibilidade e/ou quantificação é que se dá em momento posterior.

Finalmente, o terceiro é respondido pela realidade social. O Estado não dispõe de meios para concretizar a política habitacional. O investidor precisa se sentir atraído e seguro. Se assim não for, ele partirá para outro tipo de empreendimento, não se podendo privilegiar o direito de dispor da propriedade fundiária em detrimento de uma política social.

O Código Civil brasileiro, ao tratar da aquisição da propriedade imóvel por acessão, prescreve em seus artigos 1258 e 1259 a aquisição do solo pelo construtor de boa-fé, caso o valor da construção exceda o do solo. In verbis:

Art. 1.258. Se a construção, feita parcialmente em solo próprio, invade solo alheio em proporção não superior à vigésima parte deste, adquire o construtor de boa-fé a propriedade da parte do solo invadido, se o valor da construção exceder o dessa parte, e responde por indenização que represente, também, o valor da área perdida e a desvalorização da área remanescente.

(...)

Art. 1.259. Se o construtor estiver de boa-fé, e a invasão do solo alheio exceder a vigésima parte deste, adquire a propriedade da parte do solo invadido, e responde por perdas e danos que abranjam o valor que a invasão acrescer à construção, mais o da área perdida e o da desvalorização da área remanescente; se de má-fé, é obrigado a demolir o que nele construiu, pagando as perdas e danos apurados, que serão devidos em dobro.

Orlando Gomes (op.cit., p. 177) destaca que a solução apresentada pelo legislador apresenta-se como exceção ao princípio de que o acessório segue o principal, modificando a tradicional regra da acessão:

Certas edificações modernas são mais importantes economicamente do que os terrenos onde se levantam. Tornam-se, por assim dizer, bem principal, por seu valor. Sacrificar o construtor de boa-fé em proveito do dono do terreno confinante não seria justo. Dar preferência a seu direito é colocar-se fora da realidade em homenagem ao preconceito da superioridade da terra, difundido nos tempos em que era o principal bem econômico.

Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald são ainda mais contundentes (2008, p. 316) ao chamar a atenção para o fato de que “sacrificar o construtor é contrário aos fins constitucionais da propriedade”.

Perceba-se que a lei protege o “invasor-investidor de boa-fé”, estipulando indenização quando cabível. Utilizando-se da mesma lógica, por qual razão não se poderia proteger o superficiário-investidor, atribuindo-lhe o direito de aquisição da propriedade fundiária em caso de não pagamento da indenização ajustada? Simplesmente não há, merecendo o titular do direito real em estudo maior atenção à efetividade de seus direitos, o que certamente vai refletir de forma positiva nas políticas públicas e na sociedade.

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6. CONCLUSÃO

Demonstrado está que é possível conferir maior efetividade indenizatória ao investidor-superficiário com a inserção na lei civilista da aquisição da propriedade fundiária em caso de extinção do direito real em tela sem ressarcimento pelo implante.

A natureza da atividade a ser praticada pelo superficiário demanda tempo, o que torna freqüente a sua constituição por prazo não exíguo. O patrimônio do concedente pode aumentar, diminuir ou zerar no seu transcurso. Antevendo as duas últimas situações, a permissibilidade de aquisição da propriedade do solo pelo superficiário, em caso de não pagamento da indenização pactuada, fortalece a sua posição, evitando ou minimizando danos.

A desvantajosa situação do concessionário está a demandar intervenção normativa no sentido de se permitir a aquisição da propriedade plena por ele, em caso de não pagamento da indenização pactuada, a contar de determinado prazo após a extinção do direito real de superfície e independentemente de notificação, salientando que tanto o direito indenizatório quanto o de aquisição da propriedade fundiária devem estar previstos no título constitutivo.

A aquisição da propriedade pela extinção da superfície significa tornar o negócio mais atraente para o investidor, uma vez que lhe será atribuída maior segurança no modo e no tempo de ser indenizado.

 Analisando-se o teor do artigo de lei que trata da extinção do direito real de superfície, é possível se constatar que há uma contradição do legislador que tem por escopo evitar propriedades ociosas, dado que não confere efetividade ao direito indenizatório pelo  responsável pela realização do seu intento. Tanto assim, que se extinta a superfície sem que ocorra indenização, o superficiário terá que mover uma ação no Poder Judiciário para receber o valor do implante, o que pode ter como desfecho a penhora e  a do próprio bem objeto de superfície, comportando adjudicação do bem ou a sua alienação particular ou em hasta pública, adiando-se desnecessariamente o recebimento da indenização por parte daquele que é o parceiro do Estado e da sociedade na tentativa de minimizar a crise habitacional e agrária.  

Se porventura, não houver liquidez por parte do fundieiro, o investidor; aquele que torna a propriedade produtiva; aquele que gera emprego e renda nas áreas agrária, de construção, de serviços e de comércio; que influencia no crescimento ordenado da cidade, não será ressarcido, evidenciando-se a desvantajosa posição que assume quando da extinção da superfície pelo advento do termo.

A previsão legal da aquisição da propriedade fundiária em caso de extinção sem ressarcimento é uma maneira de atribuir efetividade ao direito indenizatório do concessionário que terá seu crédito satisfeito sem os transtornos de uma demanda judicial, formando uma verdadeira parceria com o Estado e com a sociedade no sentido de viabilizar a política habitacional urbana e a política agrária, melhorando a qualidade de vida dos menos favorecidos. 

Ademais, é um disparate proteger legalmente o investidor-invasor e deixar à margem da lei o investidor-superficiário. É um instituto que necessita ser lapidado. As fontes do direito cumprirão o seu papel, amoldando o “olhar” social do direito real de superfície à realidade, atribuindo a ele maior efetividade.

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Sobre a autora
Sandra Regina Pires

Doutora em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino (UMSA), com diploma em fase de reconhecimento. Especialista em Direito Processual Civil com Formação para o Magistério Superior. Graduada em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professora no curso de Graduação em Direito da Universidade Metodista de Piracicaba - UNIMEP, ministrando as disciplinas Direitos Reais, Direito Processual Civil (Recursos) e Introdução ao Estudo do Direito. Membro da Comissão de Arbitragem da Ordem dos Advogados do Brasil – Subseção Jabaquara/Saúde. Mediadora e Conciliadora capacitada pelo Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP) para atuar nas iniciativas pública e privada, habilitada junto ao Núcleo de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e inscrita no Cadastro Nacional de Mediadores e Conciliadores do Conselho Nacional de Justiça. Integrante do painel de árbitros e mediadores da Câmara de Mediação e Arbitragem Especializada (CAMES/SP). Integrante do painel de conciliadores da Câmara de Mediação e Arbitragem de Joinville (CEMAJ). Advogada militante nas áreas cível e família há 26 anos. Atuação no Magistério Superior por 10 anos, ministrando as disciplinas: Prática Jurídica Civil I e II, Direitos Reais, Responsabilidade Civil e Direito Civil (Parte Geral). Integrante do Núcleo de Prática Jurídica. Atuação como Coordenadora de Monitoria e Estágios. Professora do Curso Preparatório para Magistrados na ESMA/PB (Escola Superior da Magistratura Estadual) nas disciplinas Ação Popular/Ação Civil Pública, Atualidades em Processo Civil, Direitos Reais e Direito Civil (Parte Geral). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/9557919549020744.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PIRES, Sandra Regina. O direito real de superfície entre particulares no Código Civil Brasileiro:: a extinção como modo de aquisição da propriedade plena pelo superficiário em caso de inocorrência de indenização. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3816, 12 dez. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26116. Acesso em: 20 abr. 2024.

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