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A facultatividade na filiação ao regime de previdência complementar

19/12/2013 às 15:22
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O estudo aborda o princípio constitucional da facultatividade da previdência complementar, materializado com a exigência legal da manifestação de vontade expressa e válida do participante e do patrocinador ao contrato previdenciário.

Sumário: I - Introdução. II – A exteriorização da vontade do segurado (participante) como elemento fundamental para o aperfeiçoamento da relação jurídica de previdência complementar. III – As propostas de filiação/inscrição automática ou simplificada ao plano de benefícios. IV – Conclusões.


I - Introdução:

A facultatividade da relação jurídica de previdência complementar prevista no art. 202 da Constituição Federal contrapõe-se à obrigatoriedade da filiação nos regimes previdenciários públicos. Significa dizer a necessidade da manifestação expressa e livre de vontade das partes da relação contratual para configurar validamente a relação jurídica de previdência complementar.

Se nos regimes públicos previdenciários a relação jurídica decorre automaticamente e por força da incidência direta da lei previdenciária sobre a pessoa que exerce atividade laborativa[1] (filiação), na relação jurídica de previdência complementar há a necessidade do concurso da vontade dos segurados (participantes) para o aperfeiçoamento da relação jurídica.

Foi muito bem o Decreto nº 3.048/99, regulamento do RGPS, quando definiu no art. 20 a filiação como “o vínculo que se estabelece entre pessoas que contribuem para a previdência social e esta, do qual decorrem direitos e obrigações”, impondo-lhe a incidência da norma previdenciária “automaticamente do exercício de atividade remunerada”, conceitos aplicáveis aos regimes de previdência complementar.

Como veremos, na previdência complementar o aperfeiçoamento da relação jurídica dá-se de forma diferente, exercendo a vontade do segurado papel fundamental.


II – A exteriorização da vontade do segurado (participante) como elemento fundamental para o aperfeiçoamento da relação jurídica de previdência complementar:

Na previdência complementar, por sua natureza jurídica contratual, há de ser respeitada a vontade das partes para o início e desenvolvimento válido da relação jurídica.

Essa relação jurídica é facultativa em relação ao participante, pois é necessária sua concordância para aderir ou para se desligar do plano de benefícios oferecido pela entidade.

Desse modo, a assinatura do termo de adesão (inscrição) ao plano de benefícios é condição fundamental para a criação de direitos e obrigações do participante em relação ao plano ofertado pela entidade de previdência complementar.

A jurisprudência dos tribunais superiores, ao fundamentar a facultatividade do regime de previdência complementar, insere a liberdade contratual nas dimensões positiva e negativa do direito à associação, fazendo alusão ao princípio da liberdade associativa do art. 5º, XVII da CF/88, o que, embora se mostre, no nosso entendimento, um fundamento jurídico equivocado, pois a previdência complementar não decorre do direito constitucional de associação, serve como precedente para realçar a liberdade contratual dos participantes quanto a filiação ou desfiliação ao regime de previdência complementar.

Nesse sentido, precedente do Excelso Supremo Tribunal Federal:

A faculdade que tem os interessados de aderirem a plano de previdência privada decorre de norma inserida no próprio texto constitucional art. 202 da CB/1988. Da não obrigatoriedade de adesão ao sistema de previdência privada decorre a possibilidade de os filiados desvincularem-se dos regimes de previdência complementar a que aderirem, especialmente porque a liberdade de associação comporta, em sua dimensão negativa, o direito de desfiliação, conforme já reconhecido pelo Supremo em outros julgados. Precedentes. (STF. RE 482.207-AgR, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 12-5-2009, Segunda Turma, DJE de 29-5-2009. No mesmo sentido: RE 603.891-AgR, rel. min. Joaquim Barbosa, julgamento em 26-6-2012, Segunda Turma, DJE de 13-8-2012;  RE 600.392-ED, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 8-11-2011, Segunda Turma, DJE de 29-11-2011).

Admite-se o ingresso tácito nos planos não-contributivos, ou seja, naqueles em que não há previsão no plano de benefícios ônus ou obrigação de natureza financeira para o participante. Uma empresa pode criar um plano de previdência privada para o seu empregado, sem exigência do repasse de contribuições, como instrumento de política empresarial na área de recursos humanos, como forma de atrair trabalhadores mais qualificados aos quadros do patrocinador[2].

De outro lado, a relação jurídica também é facultativa para o patrocinador/instituidor, já que seu vínculo jurídico com o plano de benefícios nasce com a celebração do instrumento contratual denominado convênio de adesão, sendo possível a rescisão desse contrato por ato do patrocinador, e, por sua vez, a extinção das obrigações do patrocinador com o plano, com o procedimento de retirada de patrocínio, desde que o patrocinador garanta o cumprimento da totalidade dos compromissos assumidos com a entidade relativamente aos direitos dos participantes, assistidos e obrigações legais, até a data da retirada ou extinção do plano.

Os patrocinadores e instituidores também exteriorizam sua vontade quando atuam na criação da pessoa jurídica responsável por administrar os planos de benefícios, as entidades de previdência complementar, sendo-lhes permitido, posteriormente, promover a extinção dessa mesma pessoa jurídica, com o encerramento de suas atividades.


III – As propostas de filiação/inscrição automática ou simplificada ao plano de benefícios:

Tem sido discutida, no âmbito do sistema de previdência complementar, com base em experiências do direito estrangeiro, a possibilidade de filiação ou inscrição automática ou, para alguns, inscrição simplificada, como forma de fomentar o crescimento do sistema previdenciário, ampliando o número de adesões de participantes aos planos de benefícios.

Os defensores da mitigação do princípio da facultatividade do contrato previdenciário argumentam que há uma inércia inconsciente nas pessoas quando o assunto é poupança individual, o que mereceria um impulso de agente externo para que o interessado passe a refletir sobre a vontade em aderir ou não a contratos de longo prazo de natureza financeira ou previdenciária.

Na inscrição automática a filiação previdenciária não dependeria da prévia manifestação da vontade do participante. Bastaria a criação de planos de benefícios patrocinados pelo empregador para que todos os seus empregados passem a estar vinculados automaticamente ao plano de benefícios.

Já a ideia da inscrição simplificada deriva da inversão do momento em que o desejo de contratar (aceitação) é exteriorizado pelo possível segurado. A entidade de previdência complementar, no momento em que inicia o vínculo laboral ou associativo do participante com o patrocinador/instituidor, realiza a inscrição ao plano, concedendo prazo para sua manifestação, que, se não exteriorizada formalmente, importaria em sua permanência no plano de benefícios.

A questão é polêmica e, no nosso entendimento, não se adequaria à disciplina constitucional da previdência complementar, em razão da expressa referência no texto constitucional da facultatividade do contrato de previdência complementar.

Para os defensores da possibilidade da anuência tácita nessa espécie contratual far-se-ia alusão à perfectibilidade dos contratos de massa (de adesão) em que os efeitos jurídicos independem da manifestação expressa da vontade ou da capacidade civil do contratante. Uma simples conduta espontânea importaria na aceitação do contrato posto a sua disposição, servindo como exemplo os contratos de transporte público fornecidos a menores incapazes, de estacionamento de veículos, e outros fornecimentos de serviços em que o aceitante não possui outra opção senão utilizar os serviços, como no serviço de água e energia com fornecedor único.

Seguem as lições de LÔBO [3]:

O desequilíbrio contratual inerente às principais atividades econômicas da atualidade é potencializado quando se aplica o esquema tradicional da oferta e da aceitação, que pressupõe a existência de manifestações de vontades livres. Exemplifique-se com o uso disseminado de condições gerais dos contratos, predispostas unilateralmente pelo contratante utilizador, principalmente empresas e fornecedores de produtos e serviços. A teoria tradicional do contrato, consequentemente, é inadequada a tais situações.

Se as novas figuras contratuais, hoje prevalecentes, prescindem ou ignoram o poder de escolha; se não há, em muitas situações, autodeterminação livre dos seus próprios interesses; se os direitos, pretensões, deveres e obrigações são fortemente limitados ou até mesmo prefixados pela lei ou pelo contratante com poder negocial dominante; se o contrato pode ser celebrado sem a identificação ou a manifestação de qualquer espécie do outro contratante, em virtude da automação ou da informatização, a teoria do contrato teve de se transformar, em igual medida.

No moderno tráfico de massa, os bens e serviços são oferecidos a todos, sob condições fixas, podendo ser utilizados por qualquer pessoa. Exemplo muito comum são as prestações de transporte, consignadas em tarifas autorizadas e fiscalizadas pelo poder público, sem que para elas se exija declaração ou manifestação de vontade do usuário, dirigida a concluir o contrato. A utilização efetiva da prestação realiza a relação contratual.

Nos exemplos citados, os contratos se caracterizam pela oferta geral ao público e pela imediata prestação dos serviços, não se assemelhando às obrigações de longo prazo da previdência complementar.

Embora seja compreensível e louvável a preocupação do sistema de previdência complementar em ampliar o número de participantes dos planos de benefícios, o que reduziria o custo operacional para manutenção desses planos pelo ganho de escala, é bastante temerária a adoção da filiação automática.

O sistema de previdência complementar brasileiro é desenhado no intuito da ampliação da proteção social dos cidadãos, sendo objetivo do Estado a proteção dos interesses dos participantes e assistidos dos planos de benefícios, conforme previsão do art. 3º, VI da LC 109/2001.

Assim, padeceria de nulidade cláusulas do contrato previdenciário que dispensassem a prévia e expressa manifestação da vontade dos participantes e assistidos para adesão dos planos de benefícios.

Tal interpretação da legislação previdenciária vem ao encontro da previsão do art. 107 do Código Civil que dispõe “a validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir”. A Lei Complementar nº 109/2001 em diversas passagens deixou evidente a necessidade da manifestação expressa da vontade do participante, quando qualifica este como (art. 8º, I) a pessoa física que aderir aos planos de benefícios; e quando prevê a inscrição e o certificado (art. 10) como atos que formalizam a relação jurídica de previdência complementar.

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Nesse sentido, a doutrina ao discorrer que “conquanto diga respeito primordialmente aos aspectos atinentes à formalização do interesse de aquisição da qualidade de participante, o conceito jurídico de adesão a plano de benefícios de entidade fechada comporta, no sistema da lei, noção ampla, a abranger não só o ato de formalização do vínculo contratual, como, também, a feição dinâmica (própria à natureza precária) da manifestação da vontade de permanecer ostentando a qualidade de participante (interesse contínuo, presente, de conservar o regime jurídico contratado com a entidade)” [4].

De todo modo, a filiação automática ou a inscrição simplificada não seriam possíveis nos planos com patrocínio público, disciplinados pela LC 108/2001, diante da necessária obediência ao princípio da paridade contributiva, que veda aos órgãos e entidades públicos realizarem aportes de contribuições ao plano sem contrapartida igualitária do participante[5].

Quanto ao tema da inscrição simplificada, entendemos juridicamente possível se no prazo fixado para opção (aceitação contratual) não haja ônus financeiro para custeio do plano pelos participantes, não se aplicando, em todo o caso, aos planos fechados com patrocínio público, considerando que nesses planos o que legitima o aporte de contribuições por organismos estatais é a contrapartida do participante, o que dará a medida da contribuição paritária.


IV – Conclusões:

O princípio da facultatividade incide na relação jurídica de previdência complementar como valor fundamental para o estabelecimento do vínculo jurídico entre o participante, o patrocinador e a entidade gestora do plano de benefícios previdenciários.

Mesmo sendo o contrato de previdência complementar um contrato de adesão, a necessidade de manifestação válida da vontade dos sujeitos contratuais se apresenta nítido quando a legislação permite que o participante ou patrocinador adiram ao regulamento do plano de benefícios e ao convênio de adesão, respectivamente, para que sejam produzidos efeitos previdenciários à sua órbita de interesses.

Doutro modo, também é permitida a rescisão contratual, o que dá a dimensão negativa do direito à filiação previdenciária.

Assim, não se mostraria juridicamente válida, com o atual panorama constitucional da matéria, qualquer proposta que venha dispensar a expressa manifestação de vontade do participante para incluí-lo na relação jurídica de previdência complementar, a exemplo das propostas que estão sendo discutidas no âmbito do sistema acerca da filiação ou inscrição automática dos participantes ao plano de benefícios.


BIBLIOGRAFIA

CAZETTA, Luís Carlos. Previdência Privada: o regime jurídico das entidades fechadas. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 2006.

LEITÃO, André Studart. Teoria Geral da Filiação Previdenciária – Controvérsia sobre a filiação obrigatória e a filiação facultativa. São Paulo: Conceito Editorial, 2012.

LÔBO, Paulo. Direito Civil: contratos. São Paulo: Saraiva, 2011.


Notas

[1] LEITÃO, André Studart. Teoria Geral da Filiação Previdenciária – Controvérsia sobre a filiação obrigatória e a filiação facultativa. São Paulo: Conceito Editorial, 2012. Nessa obra, o autor enfrenta com muita propriedade todas as nuances da relação jurídica previdenciária do RGPS.

[2] A criação desses planos não-contributivos está vedada para os planos fechados com patrocínio público, considerando o princípio da paridade contributiva, necessidade de previsão de contribuição do participante como forma de legitimar o aporte de contribuições pelo patrocinador público.

[3] LÔBO, Paulo. Direito Civil: contratos. São Paulo: Saraiva, 2011, p.20.

[4] CAZETTA, Luís Carlos. Previdência Privada: o regime jurídico das entidades fechadas. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 2006, p.74-75.

[5] Sobre o tema, consideramos que a dotação inicial orçamentária realizada pelo patrocinador público no momento em que cria a entidade de previdência possui a natureza jurídica de antecipação de receitas das contribuições futuras devidas em razão da sua qualidade de patrocinador, que deverão ser devidamente compensadas com o decorrer das atividades iniciadas pela EPC na administração do plano de benefícios. Dessa forma, procedeu a Lei nº 12.618/2012 quando instituiu o regime de previdência complementar dos servidores públicos federais, ao dispor: “art. 25. É a União autorizada, em caráter excepcional, no ato de criação das entidades fechadas de previdência complementar referidas no art. 4º, a promover aporte a título de adiantamento de contribuições futuras, necessário ao regular funcionamento inicial, no valor de: I - Funpresp-Exe: até R$ 50.000.000,00 (cinquenta milhões de reais); II - Funpresp-Leg: até R$ 25.000.000,00 (vinte e cinco milhões de reais); e III - Funpresp-Jud: até R$ 25.000.000,00 (vinte e cinco milhões de reais)”.

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Sobre o autor
Allan Luiz Oliveira Barros

Allan Luiz Oliveira Barros. Procurador Federal da Advocacia-Geral da União. Atuou na Procuradoria Federal junto a Superintendência Nacional de Previdência Complementar - Previc. Membro da Câmara de Recursos da Previdência Complementar (CRPC). Mestrando em Direito e Políticas Públicas pela UNICEUB. Máster en Dirección y Gestión de Planes y Fondos de Pensiones pela Universidade de Alcalá, Espanha. Pós-Graduado em Direito Constitucional e Direito Previdenciário. Professor de Cursos de Pós-Graduação em Direito Previdenciário e da Escola da Advocacia-Geral da União. Editor do site www.allanbarros.com.br

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARROS, Allan Luiz Oliveira. A facultatividade na filiação ao regime de previdência complementar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3823, 19 dez. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26160. Acesso em: 26 abr. 2024.

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