1. Considerações Iniciais
O abuso de direito está atrelado ao Direito Medieval, tendo sido observada nos atos emulativos (aemulatio), os quais podem ser compreendidos como os atos praticados pelos indivíduos com a intenção deliberada de causar prejuízos a terceiros. No entanto, sua teoria efetivamente só passou a ser desenvolvida pela doutrina e jurisprudência ao longo do século XX.
Emulação, nesse sentido, é o exercício de um direito com o fim de prejudicar outrem. Quer dizer que em vez de ter o fim de tirar para si um benefício, o autor do ato tem em vista causar prejuízo a outrem. Historicamente, a rixa, a briga, a altercação, são elementos característicos da vida medieval. Brigas de vizinhos, brigas de barões, brigas de corporações, nos seio das sociedades; brigas entre o poder temporal e o poder espiritual. Todas as formas de alterações a sociedade medieval conheceu, como não podia deixar de acontecer numa época de considerável atrofia do Estado. É aí que, pela primeira vez, os juristas têm conhecimento deste problema: o exercício de um direito com o fim de prejudicar a outrem, ou seja, o direito como elemento de emulação (Barros, 2005).
2. Especificando o abuso de direito
O abuso de direito advém do predomínio da vontade do titular de um direito como condutor absoluto de seu exercício. Dessa forma, na literatura moderna, tem servido para demonstrar a funcionalização de uma cadeia de direitos, tais como os contratos e a propriedade. A conceituação do abuso de direito pela doutrina, apesar de ampla, também pode ser definida como o exercício do direito de modo a contrariar e contradizer o valor que o mesmo procura tutelar. Assim sendo, representaria uma violação a limites que não estão colocados na existência de direitos de terceiros, e sim em elementos típicos emanados do próprio direito, exemplificado como o seu valor ou sua função (Oliveira et al. 2010).
O fundamento da teoria encontra-se nos preceitos éticos morais que o direito não pode desconhecer, para que haja dentro das relações interpessoais equilíbrio e que o interesse coletivo se sobreponha ao interesse individual. Já que abusar significa exceder, afrontando direitos de terceiros. Assim, Venosa conceitua o abuso de direito da seguinte maneira:
“Juridicamente, abuso de direito pode ser entendido como fato de usar de um poder, de uma faculdade, de um direito ou mesmo de uma coisa, além do razoavelmente o Direito e a Sociedade permitem. O titular de prerrogativa jurídica, de direito subjetivo, que atua de modo tal que sua conduta contraria a boa-fé, a moral, os bons costumes, os fins econômicos e sociais da norma, incorre no ato abusivo. Nesta situação, o ato é contrário ao direito e ocasiona responsabilidade” (VENOSA, 2003, p. 603 e 604).
Inicialmente, não existia no Código de Processo Civil brasileiro um dispositivo que legitimasse a aplicação da teoria para os casos de abuso de direito de ação ou abuso na defesa realizada em processo. Assim, os processualistas utilizaram o artigo 160 do Código Civil de 1916 para aplicar o abuso de direito.
Já o Código Civil de 2002 inovou o instituto do abuso de direito na medida em que trouxe à baila a tutela do abuso de direito como tratamento da matéria em um dispositivo autônomo, no artigo 187 (Oliveira et al. 2010). Tal artigo afirma que: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes” (CAHALI, 2007).
3. Aprofundando o abuso de direito no Código Civil de 2002
O referido artigo 187 do Novo Código Civil teve sua redação inspirada no Direito Civil Português, que preceitua no seu art. 334 que é ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestadamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou econômico desse direito. Ao comparar as redações dos dispositivos brasileiro e português, percebe-se, portanto, apenas uma alteração na ordem das expressões (Fernandes, 2007).
A tese do abuso de direito, no ordenamento brasileiro, não obstante, é expressa no título dos atos ilícitos, sendo este ato uma conduta voluntária, comissiva ou omissiva, negligente ou imprudente, que viola direitos e causa prejuízos a terceiros. Extrai-se de imediato uma ilação: a que entre nós o abuso de direito está, de lege data, equiparado ao ato ilícito. Semelhante equiparação, já se registrou, não é pacifica na doutrina. E, na verdade, parece razoável, do ponto de vista teórico, o entendimento que distingue as duas figuras. Uma é a situação de quem, sem poder de invocar a titularidade de direito algum, simplesmente viola direito alheio. Outra situação é a daquele que, sendo titular de um direito, irregularmente o exerce. (Moreira, 2003).
Nesse sentido, como argumenta Carpena (2003) apesar de se encontrar consagrado no capítulo dos atos ilícitos, a estes não se equipara, pelos seguintes fundamentos: o abuso de direito é caracterizado por um exercício que aparentemente é regular, mas desrespeita a finalidade do direito, enquanto no ato ilícito há um vício na estrutura formal de um direito. Os dois institutos se assemelham, porém não se confundem por terem efeitos idênticos. O ilícito, sendo resultante da violação de limites formais, pressupõe a existência de concretas proibições normativas, ou seja, é a própria lei que irá fixar limites para o exercício do direito. No abuso não há limites definidos e fixados aprioristicamente, pois estes serão dados pelos princípios que regem o ordenamento os quais contêm seus valores fundamentais.
Assim, Fernandes (2007) explica que a caracterização do ato ilícito é direta e mais evidente, logo que há uma norma jurídica tipificando uma conduta, enquanto no abuso se constatará a partir do momento que houver uma desconformidade entre a conduta e o fim que a lei impõe. Com esta teoria, pretende-se assegurar o interesse coletivo nas relações interpessoais, pautando o interesse individual nos pressupostos ético-sociais tais como a boa-fé, os bons costumes e a função social-econômica que cada direito resguarda. O instituto do abuso de direito traz a premissa da relativização dos direitos, visando evitar o exercício abusivo dos mesmos pelos seus titulares, com escopo de garantir o bem-estar das relações jurídicas na sociedade. Logo, todo aquele que excede os parâmetros da boa-fé objetiva, dos bons costumes e a finalidade social ou econômica dos direito ou prerrogativa deve ter sua conduta repelida pelo Direito, já que o exercício absoluto de um direito causa um desequilíbrio nos valores ético-sociais, que fundamentam a vida em sociedade.
4. Referências históricas
Além do já mencionado período medieval, o Direito Romano também guardou vestígios do exercício dos atos emulativos, vez que eram praticados os mais grosseiros abusos sob o firme pretexto de se exercitar um direito reconhecido por lei. Desvirtuava-se a finalidade social dos direitos subjetivos com o intuito de causar dano injusto a terceiro. Contudo, como ensina Paulo Nader “a figura do abuso do direito, se não chegou a ser teorizada pelos romanos, pelo menos foi conhecida do ponto de vista doutrinário” (1999, p.404).
Ocorre que os romanos eram infensos às teorias, posto que buscavam estabelecer soluções casuísticas para as situações práticas que iam se descortinando. Os romanos não desconheciam totalmente a teoria do abuso de direito. Ao contrário, utilizaram-se dela para apresentar soluções a determinados casos concretos. Dentre as tentativas de vedação ao abuso do direito localizadas no Direito Romano, temos, por exemplo, a proibição ao proprietário de demolir sua casa para vender os materiais; a perda da propriedade quando o titular se recusava a prestar caução de dano infecto; ou, ainda, as proibições de se manterem incultas as terras e de se manterem os latifúndios (Barros, 2005).
Já na França, durante o período que antecedeu o Código Napoleônico, era consagrada, pela legislação vigente à época, a proibição do uso da propriedade em desconformidade com a sua destinação social. Entretanto, com o advento do Código Civil Francês, prevalecera o pensamento individualista, esvaindo-se, dessa maneira, o princípio que limitava o exercício absoluto e anti-social do direito de propriedade. Apesar disso, a doutrina do abuso de direito era aplicada em diversos julgados dos órgãos jurisdicionais franceses.
Outro famoso caso que caracteriza a figura do abuso de direito, relata Barros (2005), passou-se no início do século XX e encontra-se inserido na jurisprudência alemã. Consta que o proprietário de uma fazenda, sob a alegação de que sempre que se encontrava com seu filho ocorria altercação, impediu-lhe que penetrasse em suas terras, a fim de visitar o túmulo de sua mãe, que lá se encontrava sepultada. Apesar de não encontrar amparo na legislação, o filho provocou a tutela jurisdicional estatal e obteve ganho de causa, tendo-lhe sido assegurado o direito de visitar as terras de seu pai nos dias de festa. Tal decisão, proferida em 1909, consistiu no grande marco para a plena caracterização do abuso do direito no ordenamento jurídico da Alemanha.
No Direito moderno, foi o Código Civil da Prússia, de 1794, a primeira legislação a tornar defeso o exercício do direito fora dos limites próprios. Posteriormente, a doutrina do abuso de direito acabou difundida para a maioria dos ordenamentos jurídicos das grandes nações, notadamente no Direito Italiano, Russo, Argentino e Português, tendo este último influenciado o Código Civil brasileiro de 2002 (Barros, 2005).
5. O abuso de direito no cotidiano
Em nossas relações cotidianas o abuso de direito ocorre com as mais diversas relações de consumo e de vizinhança. Todavia, não são as únicas, pois até na rede mundial de computadores, a internet, o comportamento abusivo se manifesta.
Nesse sentido, Barros (2005), nos apresenta situações bastante consideráveis dessas ocorrências. Na seara das relações de consumo, um dos mais claros exemplos de abuso de direito pode ser encontrado por ocasião das cobranças de débitos. Ocorre que muitos fornecedores costumam, no exercício do direito de crédito, extrapolar os limites permitidos para a cobrança, ocasionando para o devedor enormes constrangimentos e, em alguns casos, expondo-o ao ridículo. Um exemplo clássico dessa prática é o do cobrador de porta, indivíduo que realiza a cobrança de maneira humilhante, vexatória, visto que expõe o devedor ao ridículo perante a vizinhança e demais pessoas presentes no momento.
Ainda nas relações de consumo, considera-se abusiva cláusula contratual que autoriza a instituição financeira a descontar diretamente da conta corrente de funcionário público, seu cliente, valor de empréstimo, uma vez que os vencimentos do servidor têm natureza alimentar, não se admitindo que a instituição credora continuasse a efetivar tal desconto. Claro está que tal conduta excede os limites éticos de qualquer negócio, ensejando, via de conseqüência, o abuso de direito.
Não obstante, exemplos diversos de cláusulas abusivas, isto é, cláusulas contratuais que excedem a boa-fé e a função social do contrato, são facilmente encontrados no cotidiano. Barros (2005) cita as taxas de serviços cobradas pelos hotéis sem qualquer sentido, uma vez que a hospedagem já se apresenta como o objeto da contratação; as cláusulas que isentam de responsabilidade por furtos ou danos causados a veículos nos estacionamentos de shoppings, restaurantes ou supermercados; as cláusulas que permitem o curso cobrar mensalidades, independente da desistência do aluno, além de tantas outras. Dentre práticas comerciais viciadas de abuso, o autor destaca a venda casada, a recusa de recebimento de cheques de correntistas com menos de seis meses ou um ano de conta corrente, etc.
Partindo para situações que acontecem com abusos na internet, tem-se relações de comércio na internet que dizem respeito às compras realizadas através de cartões de crédito. Nesse tipo de negociação, contraente fornecedor abusa da boa-fé do consumidor ao utilizar-se de seus dados para prática de fins escusos, ou ainda quando recebe o pagamento e descumpre a sua prestação na avença. Neste caso, além de atentar contra a boa-fé da outra parte, violou também os fins econômicos e sociais que norteavam a sua posição como contratante. Decerto que na área penal esta conduta poderia ser enquadrada como estelionato.
Outra situação, ainda, que ocorre na internet e que enseja o abuso de direito, segundo Barros (2005), é o spamming. O spam nada mais é do que o envio ao consumidor-usuário de publicidade de serviços ou produtos, oferecendo uma gama de vantagens para o caso de uma efetiva contratação ou utilização, sem que a mesma tivesse sido solicitada. Após receber tais mensagens indesejadas, o usuário geralmente perde um bom tempo selecionando, lendo e excluindo as mesmas. Ademais, o spamming causa grandes dificuldades aos fornecedores de serviços de internet, já que os mesmos necessitam viabilizar medidas para coibir essa prática, o que, naturalmente, implica aumento nos custos de sua atividade econômica. O spam, com isso, contraria o fim social e econômico da grande rede, o que já serviria para enquadrar a prática como abuso de direito. De outro norte, insta salientar que a conduta dos spammers também é atentatória a boa-fé objetiva. Uma pessoa que envia mensagens para outra sem que esta tenha ao menos solicitado, está distante da probidade e lealdade que se espera das relações intersubjetivas, mesmo que se manifestem em meios virtuais.
Referências bibliográficas
BARROS, João Álvaro Quintiliano. Abuso de direito. In: Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 727, 2 jul. 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/6944>. Acesso em: 04 jul. 2013.
CAHALI, Yussef Said (Org.). Constituição Federal. Código Civil. Código de Processo Civil. Código Comercial. 9.ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007 – RT Mini Códigos.
CARPENA, Helena. Abuso de direito à luz do novo Código Civil. In: TEPEDINO, Gustavo. Coord. A Parte Geral do Novo Código Civil: Estudos na Perspectiva Civil-Constitucional, 2º, Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
FERNANDES, Ilana Oliveira. A Teoria do Abuso do Direito no Novo Código CivilIn: WebArtigos.com. Publicado em 16 de maio de 2007 http://www.webartigos.com/artigos/a-teoria-do-abuso-do-direito-no-novo-codigo-civil/1646/
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Novo Código Civil. Doutrinas (VII): Abuso do Direito. In: Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil, nº 26, nov-dez. Porto Alegre: Editora Síntese, 2003.
NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. 16. ed. rev., atual. Rio de Janeiro: Forense, 1999.
OLIVEIRA, Eduardo; RUIZ, Isadora; CARVALHO, Mariana; CANECA, Paloma. Abuso de direito. 2010. Disponível em: <http://academico.direito-rio.fgv.br/wiki/Abuso_do_direito>. Acesso em 04 jul. 2013.
VENOSA, Sílvio Salvo. Direito civil. vol.1, 3º. São Paulo: Editora Atlas, 2003