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A quem interessa a pressa na reforma penal?

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Independentemente de qualquer consideração ideológica, há incontáveis vícios dogmáticos no texto final do relatório Pedro Taques. Reformas bem feitas não são tocadas de afogadilho. São debatidas, não necessária e unicamente com a população, mas também com a comunidade científica, acadêmica e profissional.

Novamente volta ao debate a reforma do Código Penal. Com incomum pressa e rapidez pretendeu-se a votação do novo Código. Incomum foi também todo o desenrolar do processo legislativo. Incomum foram os passos da chamada Comissão de Juristas, bem como a celeridade da avaliação e das propostas de relatório final. A dúvida parece residir na legitimidade, ou não, desse verdadeiro suceder incomum.

Que se inicie dizendo que reformas penais são necessárias, ainda mais no cenário atual. Disso ninguém duvida. A forma pelo meio da qual tais reformas devem se dar, no entanto, é motivo de questionamentos de toda a ordem.

Por outro lado, e por questão não menos fundamental, que se afirme pela escorreita legitimidade do Parlamento decidir sobre o plano normativo - inclusive penal - a ser posto no país. Representantes eleitos do povo, aos congressistas é atribuída a missão superior de reformar a legislação nacional. Novamente, no entanto, a forma pela qual isso se dá é que suscita questionamentos.

Em 2012, sob a batuta de Miguel Reale Júnior, professor Titular da Faculdade de Direito da USP, movimentaram-se associações de classe de advogados, da Defensoria Pública, do Ministério Público e da Magistratura, além da Academia e de institutos científicos vários, que, em uníssono criticaram e rejeitaram as propostas de reforma que já se desenhavam. A leitura preliminar do anteprojeto acentuava os vícios fatais que prejudicavam todo o conjunto da obra posta.

Não obstante todas as denúncias feitas sobre os erros primários contidos naquela proposta, o procedimento foi em frente. Presentes eram equívocos dogmáticos e de redação, de ordem científica e de confusão ideológica. Tudo era absolutamente errático. Sob a alegação de que o povo feito parlamentar teria toda a legitimidade para proceder a reformas legislativas, deu-se continuidade ao andamento do processo, agora encabeçado pelo senador Pedro Taques. Lançado seu relatório final, anunciou-se sua votação no Senado Federal.

Notadamente deram-se mudanças significativas em relação à redação da Comissão de Juristas. Em primeiro lugar, alguns erros e equívocos foram corrigidos. Esse, um mérito inegável. Outros tantos, no entanto, foram mantidos ou agudizados. Foram trazidos à realidade da (pretensa) reforma todos os projetos de reforma penal presentes no Senado Federal. Sob a desculpa de uma reforma global, somam-se tentativas de modificação penal as quais teriam menor chance de resultado em condições normais e serenas de trâmite legislativo. Aliás, a colocação senatorial da necessidade de reforma simplesmente ignora que a Câmara dos Deputados – composta também por Parlamentares eleitos – tem Projeto próprio de reforma. Ao invés de enriquecer o debate, e somar esforços na busca de uma melhor lei penal, parece simplesmente querer fazer sua vontade, e nada mais.

Independentemente de qualquer consideração ideológica, é de se ver incontáveis vícios dogmáticos no texto final do relatório Pedro Taques. Poder-se-ia falar, aqui, de erros básicos de formulação dogmática. Poder-se-iam mencionar temas como de legalidade, insignificância, omissão, responsabilidade da pessoa jurídica, os quais, sem nenhum partidarismo, podem ser alterados, mas com foco no bom Direito, e não copiando-se o que pior e ineficaz existe na realidade nacional e comparada. Na Parte Geral, então, com a tentativa de verdadeira consolidação de leis penais sob vestes de novo Código, trazendo para seu manto todas as leis esparsas, verifica-se o maior dos absurdos. Simplesmente parece-se esquecer que existe uma lógica na utilização de leis apartadas da norma codificada, como, por exemplo, a estipulação de políticas públicas independentes, como é o caso do meio ambiente ou de drogas.

De forma muito mais rica, o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, a Ordem dos Advogados do Brasil ou o Instituto dos Advogados de São Paulo, entre outros, apresentaram suas objeções pontuais. A Academia, não só de São Paulo, mas de todo o Brasil, também o fez. Apenas para destaque específico, e de compreensão até de um público leigo, mencionam-se, aqui, alguns pontos de absoluta incongruência do texto apresentado.

Teve-se a intenção, por exemplo, de tornar a corrupção crime hediondo. Fala-se, observe-se, unicamente de corrupção ativa e passiva. Medida aparentemente de aplauso, ainda mais em um momento de escândalos emblemáticos, como é de todos sabido, ela tem, em verdade, a capacidade extremamente perniciosa de, ou gerar injustiças gigantescas (com punições por crime hediondo de pequenas e corriqueiras corrupções), ou de tornar a lei simplesmente sem efeito. Pode-se entender que se pretenda combater a corrupção que agride a sociedade. Mas é absolutamente incompreensível, até mesmo por agressão ao princípio da proporcionalidade, que a corrupção rasteira, da esquina, seja tida como hedionda. Trata-se de desrespeito a questão já consagrada. Aliás, essa é uma constante da proposta apresentada: pretender modificar conceitos já sedimentados, o que vai gerar, durante anos, extremada insegurança jurídica, até que a jurisprudência venha a dar a última palavra sobre um ou outro entendimento.

Em termos de Parte Especial, poderiam ser citados inúmeros outros problemas. Aqui, de se mencionar unicamente dois deles. O primeiro diz respeito a menções específicas de qualificadoras em relação ao homicídio quando este se der em razão de preconceito de raça, cor ou orientação sexual. A medida, que até tem suas justificativas, tem o condão de transformar praticamente toda a conduta homicida em sua faceta qualificada, além de gerar problemas de interpretação significativos. É óbvio que se deve recriminar atitudes subjetivas preconceituosas, mas deve ser entendida a dificuldade de constatação do motivo oculto, sob pena de simplesmente toda a agressão a um cidadão nessas condições, mesmo que não motivada pelas mesmas, venha a ser tida como qualificada. Novamente, aqui, uma agressão aparente a uma proporcionalidade desejada.

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É, contudo, em relação a outro crime emblemático que os vícios são ainda piores. No que diz respeito aos chamados crimes tributários, chega-se ao cúmulo de pretender aumentar as figuras típicas em absurda ordem de grandeza, tornando crime até mesmo a simples conduta de traçar planejamento tributário. Além de gerar problemas de toda ordem, essa neocriminalziação tem um potencial de, verdadeiramente, paralisar a Economia do país, unicamente sob a alegação de que estar-se-ia como que a planejar atitude criminosa.

Tais exemplos denotam o problema fundamental da pressa em uma tão significativa reforma do Código Penal. No exemplo da legislação comparada extrai-se a lição de que reformas bem feitas não são tocadas de afogadilho. São debatidas, não necessária e unicamente com a população (pois isso pode viciar parcialmente sua leitura), mas também com a comunidade científica, acadêmica e profissional, pontuando-se todos, repita-se, todos os problemas que podem surgir desta ou daquela mudança.

Embora seja absolutamente verdade que o Congresso Nacional tenha a autonomia para propor reformas legislativas, estas, em homenagem ao propósito a que se destinam, devem ser vistas com responsabilidade de Estado. As metas devem ser do Parlamento como um todo - e aqui, leia-se também a inteiração com as propostas da Câmara dos Deputados.

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Sobre o autor
Renato de Mello Jorge Silveira

Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP). Presidente da Comissão de Direito Penal do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVEIRA, Renato Mello Jorge. A quem interessa a pressa na reforma penal?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3828, 24 dez. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26236. Acesso em: 22 nov. 2024.

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