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Estado moderno:

características, conceito, elementos de formação, instituições políticas, natureza jurídica, atualidades

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28/12/2013 às 07:10
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11. LEIS DE FÁBRICA:

Não houve um Renascimento Jurídico

O objetivo deste item é indicar que o Estado Moderno não promoveu um Renascimento Jurídico. Ainda que possamos falar de uma Renascença (nas artes), de um revigoramento do homem, de suas representações, de seu imaginário a partir do Direito à Educação e, é evidente, de um Renascimento Econômico e de suas forças produtivas, não houve um adensamento jurídico alternativo. Pois, juridicamente, o Renascimento foi apenas o antepasto da acumulação primitiva de capitais necessários ao livre desenvolvimento das revoluções nacionais (Estado Moderno) e da própria Segunda Revolução Industrial, um século à frente. As Leis de Cerceamento, parafraseando Marx, constituíram-se no primeiro “ato histórico-jurídico da burguesia”. A chamada Lei de Fábrica surgiu muito tempo depois (1833). Neste sentido, o Estado Moderno nasceria marcado pela luta de classes, como segurança jurídica do capital, expropriação e espoliação do camponês e não, como se pensa, em defesa da segurança do cidadão. Os marcos jurídicos do Estado Moderno, portanto, são regulados por direitos de classe e sua soberania representa a salvaguarda dos interesses da burguesia nacional.

Como veremos, foram necessários cinco séculos de espera para ver alguma expressão jurídica de Justiça Social. Contudo, para melhor visualizar o que não foi feito juridicamente, em termos de desenvolvimento da própria “tecnologia jurídica”, veremos primeiro alguns impactos/reflexos da influente atividade econômica do mesmo período.

Renascimento econômico

Marx destacou que a servidão havia desaparecido da Inglaterra em fins do século XIV. Mas foi um longo processo de exploração/expropriação e “crescimento da economia para fora”, constituindo-se no próprio Renascimento Econômico: acumulação primitiva; empuxo e formação do Estado Moderno; navegações e descoberta de novos territórios e mercados que formaram a estirpe do mercantilismo, a partir do século XVII:

Nos séculos XVI e XVII, a rápida expansão dos espaços econômicos, que teve por base a incorporação das novas massas territoriais ao sistema europeu pelas grandes descobertas, e a funcionalidade que esse processo adquiriu na economia mercantilista (exploração das riquezas coloniais, rápido crescimento do comércio etc.) favoreceram a acumulação primitiva de capital e facilitaram a estruturação do moderno Estado Nacional (Lessa, 2005, p. 58).

Foi este o próprio circulo virtuoso que geraria, na outra ponta, a Segunda Revolução Industrial, com: forte/dinâmico sistema financeiro; modernização agrícola; competitividade no comércio de lã (sobretudo no mercado externo). Porém, como se viu, este ímpeto de crescimento, modernização e tecnificação produtiva é um resultado que foi plantado desde o século XV. Em seguida, como marco divisório, os Atos de Navegação (1651) corroboraram com a derrocada da supremacia marítima holandesa e em benefício da Inglaterra.

Outro evento importante, decisivo desse processo virtuoso em que se encontrava o Renascimento Econômico, veio com a Revolução de 1688 ou Revolução Gloriosa — sucedendo-se à ditadura de Cromwell (1653-1658): favoreceu a ascensão burguesa; trouxe forma de controle político sobre a monarquia; gerou condições propícias a um novo ciclo virtuoso da economia; expansão do comércio; prosperidade agrícola; unificou o mercado nacional; houve hegemonia na exploração dos mares; grande aproveitamento dos recursos energéticos (carvão); ênfase comercialista na política mercantilista; acumulação acelerada de capitais a fim de detonar o processo pioneiro dessa modalidade de industrialização emergente.

Ao que se somaram outros efetivos, como: fechamento dos campos e transformação dos pequenos proprietários em trabalhadores livres; espírito empreendedor de boa parcela da sociedade inglesa da época; internalização das principais inovações tecnológicas nas atividades produtivas; abertura das primeiras linhas férreas e a invenção do barco a vapor. Além da incorporação de outras tecnologias: “No caso, a introdução dos teares movidos a vapor, em substituição aos teares manuais, juntamente com as máquinas para o processamento do algodão e com as fiandeiras, foram as inovações que deram início ao industrialismo moderno” (Lessa, 2005, pp. 60-61). O escoamento de tamanha manufatura foi possível graças ao intercâmbio comercial existente entre as colônias inglesas e com outras potências:

A convergência singular dessas dinâmicas que se desenrolaram desde o século XVI na Inglaterra fez desse país o único na Europa com as condições políticas, econômicas e sociais necessárias ao desenvolvimento inicial da indústria e, portanto, do capitalismo industrial. Mas o aprofundamento da Revolução Industrial dar-se-ia com o alargamento das condições de oferta de recursos que até o final do século XVII eram escassos ou de manipulação excessivamente cara, como o ferro, cujos artefatos — especialmente as armas — eram demandados prioritariamente pelo Estado (Lessa, 2005, p. 61).

Outras inovações foram a introdução da locomotiva a vapor e a edificação de estradas de ferro, mas a isto se somava a penúria, a miséria das populações expulsas de suas terras e casas, e de suas tradições. A reação a tudo, no entanto, não tardou nos grandes centros urbanos, levando à aparição de movimentos de reação à industrialização, ao surgimento de lideranças trabalhistas de um operariado de consciência crescente e auxiliado pelo nascimento dos movimentos de reivindicação socialista, já a partir de 1830. A correspondência no setor de serviços (“economia invisível”) indicaria índices elevados de crescimento, pois que era “a roldana que fazia girar o ciclo econômico” (Lessa, 2005, p. 64).

A movimentação política e econômica deveria se fazer sentir em uma legislação inovadora, que associasse direito e garantia do trabalho, primeira conquista jurídica/trabalhista do trabalhador, como resultado de sua mobilização para enfrentar as agruras e severas intensidades de exploração do trabalho (incluso o trabalho infantil e de mães amamentando ou grávidas perto da “hora do parto”). Um destaque progressista em termos de convivência social que só apareceria com o Iluminismo.

O não-renascimento jurídico

Contudo, antes que o Século das Luzes fizesse suas promessas de liberdade e de maioridade, foram séculos de exploração à frente, com extensa e reiterada utilização de Leis de Cerceamento ou Cercamento:

Além disso, desde o século XVI, acontecia na Inglaterra a substituição da pequena propriedade pela grande propriedade, imposta pelas leis de cercamento. Essas leis, estabelecidas pelos reis Tudor, acabavam com as extensões de terras abertas, utilizadas comunitariamente por camponeses, determinando o cercamento e venda desses campos. Com isso, cada vez mais formavam-se grandes propriedades que produziam mercadorias para o comércio e criavam ovelhas para o fornecimento de lã para a indústria têxtil [...] Essas leis de cercamento forneceram, além de matérias-primas para a Revolução, mão de obra para as cidades, ou seja, para as manufaturas em expansão. Os camponeses, que perderam as terras comuns e eram até obrigados a vender suas terras, não tinham condições de viver no campo. Dirigiam-se então para as cidades, onde trabalhavam, em péssimas condições, nas futuras indústrias. Assim, a Inglaterra possuía mão de obra disponível para a Revolução 48.

Com leis abusivas e política repressiva como suporte, as táticas do cerceamento eram explicitamente negativas ao “direito consuetudinário” e exploradoras do campesinato, bem a serviço da acumulação de capitais e que “obrigavam” a conversão dos camponeses em mão-de-obra barata para o trabalho industrial:

O movimento dos cercamentos (enclosure), campos utilizados comunitariamente pelos camponeses livres, passaram a ser cercados pelos landlords: os latifundiários ingleses. Isto provocou um enorme êxodo rural e a formação do proletariado como exército industrial de reserva para alimentar o industrialismo nascente 49.

Neste primeiro momento, pode-se dizer que o industrialismo “libertou” os camponeses das amarras que o prendiam ao senhor feudal com a ajuda dos comerciantes e burgueses. Porém, em seguida, novos grilhões foram rapidamente preparados, pois a ordem econômica exigia muito mais acumulação do que já se vira até então. Portanto, o movimento econômico que gerou de início a "liberdade negativa” aos camponeses não teve por objetivo estendê-la até a isonomia e equidade. Em pleno Renascimento, portanto, as amarras da tradição começavam a se soltar, mas sob a ação de leis típicas de um Estado de Exceção: “Uma lei de 1533 constata que certos proprietários possuem 24.000 carneiros, impõe-lhes para limite a cifra de 2000 50” (Marx, 1977, p. 25). A este curso se seguiu a finalização das propriedades comunais, por força de lei — Bills for enclosures for commons (Lei de cercamento das terras comuns):

A propriedade comunal, inteiramente distinta da propriedade pública [...] era uma velha tradição germânica, conservada em vigor no seio da sociedade feudal [...] as violentas usurpações [...] começaram no último terço do século XV e se prolongaram para além do XVI [...] A forma parlamentar do roubo cometido sobre as comunas é de “leis sobre o fechamento das terras comunais” (Bills for enclosures for commons). São, na realidade, decretos por meio dos quais os proprietários de terras se presenteavam a si mesmos com os bens comunais, decretos de expropriação do povo (Marx, 1977, pp. 34-35).

Na nota 16 deste capítulo, Marx retoma algumas minúcias do citado processo de expropriação, citando um trecho do relatório intitulado A Political Inquiry into the Consequences of Enclosing Waste Lands (A pesquisa política sobre as consequências do cercamento de terra não cultivadas): “Se quiserdes que os caseiros trabalhem, diziam eles, conservai-os na pobreza. O fato real é que os arrendatários se arrogam assim todo o direito sobre as terras comunais e delas fazem o que bem lhes parece” (Marx, 1977, p. 35). A estrutura mesma do modo de produção pré-capitalista não auxiliava aos camponeses, nem mesmo quanto ao sentido político da formação de uma consciência pró-ativa (Eagleton, 1999, pp. 44-45) 51. Depois, Marx reconstrói parte da história do direito trabalhista inglês, de corte claramente burguês e de exceção:

A legislação sobre o trabalho assalariado [...] foi inaugurada na Inglaterra em 1349 com o Statute of Labourers de Eduardo III. A este estatuto corresponde em França a ordenação de 1350, promulgada em nome do Rei João [...] Foi proibido, sob pena de prisão, pagar um salário mais elevado que o estabelecido legalmente: porém, incorre em pena mais severa, o que recebe o salário superior ao fixado, do que aquele que o paga. Assim, as secções 18 e 19 do estatuto de aprendizagem de Elizabeth punem com dez dias de prisão o patrão que faz pagamentos além do limite legal e com vinte dias o operário que o aceita [...] Um estatuto de 1630 estabelece penas ainda mais duras e autoriza mesmo o patrão a obter o trabalho pela tabela legal, por meio da violência corporal [...] As coligações operárias foram incluídas na categoria dos maiores crimes desde o século XIV, até 1824 (Marx, 1977, pp. 66-67 – grifos nossos).

O custo de se arrancar pela raiz qualquer identidade, resistência, tendência ao inconformismo, foi o desenraizamento, a desterritorialização. No sentido de obrigarem ao abandono de seus lares, convicções, tradições, “direitos” e imporem a conversação à modernidade capitalista, exploração desmedida e “urbanização forçada” de levas de milhares de famílias camponesas, as Leis de Cerceamento podem ser classificadas como leis motivacionais do Estado Moderno de Exceção:

O último procedimento de um alcance histórico, que se empregou para expropriar aos cultivadores, se chama clearing of states, literalmente: “roçada dos bens de raiz”. No sentido inglês não significa uma operação técnica de agronomia; é o conjunto de atos de violência por meio dos quais se desembaraça dos cultivadores e de suas moradias, quando eles se encontram sobre os bens de raiz destinados a passar ao regime da grande cultura ou ao estado pastoril (Marx, 1977, p. 42).

Este desenraizamento obsessivo, truculento, imposto verticalmente pelo Estado, nada mais faria do que sacramentar a lógica do capital burguês e do grande latifundiário: “O capital é trabalho morto [...] O tempo durante o qual o trabalhador trabalha é o tempo durante o qual o capitalista consome a força de trabalho que comprou. Se o trabalhador consome seu tempo disponível para si, então rouba ao capitalista” (Marx, 1985, p. 189).

Nem mesmo o direito renascentista por definição, o direito à educação (já sob a batuta da universalidade), escaparia a este sentido pró-capitalista que estamos apontando para o direito nascente no Estado Moderno. Como direito não-laico, o direito à educação surgiu para servir como um poderoso meio de controle social erigido pelo Estado Moderno:

Martinho Lutero apelou “para os vereadores de todas as cidades da Alemanha, para que estabeleçam e mantenham escolas cristãs [...] A educação obrigatória e universal foi estabelecida na Genebra calvinista em 1536 e o discípulo escocês de Calvino, John Knox, “plantou uma escola e uma igreja em cada paróquia.” [...] A educação obrigatória está vinculada, historicamente, não só à invenção e desenvolvimento da imprensa, à ascensão do protestantismo e do capitalismo, mas também ao crescimento da própria ideia de nação-estado (Ward, 1973, pp. 62-63 – grifos nossos).

Nessa toada, em meados do século XIX, como consequência do industrialismo imposto pelo êxodo rural, com base no Renascimento Econômico inglês, as condições de trabalho não se mostravam melhores do que antes: “A jornada de trabalho variava entre 12, 14 e 15 horas, com trabalho noturno, refeições irregulares, em regra no próprio local de trabalho, empestado pelo fósforo. Dante sentiria nessa manufatura suas fantasias mais cruéis sobre o inferno ultrapassadas” (Marx, 1985, p. 198. – grifos nossos). Algumas tentativas de enfocar a igualdade e a isonomia datam do Iluminismo (“humanizar o direito”), como vemos no livro Observações Sobre a Tortura, de Pietro Verri (2000): é uma narrativa das barbáries da Razão de Estado, ainda que feitas em “razão do Estado”. É um livro representativo do Iluminismo do século XVIII, e relata a aplicação da tortura quando se buscavam os responsáveis para a peste que assolou a Milão de 1630. É uma narração intensa, perturbadora, angustiante, lutando contra a barbárie praticada pela tortura, pelo uso da força bruta, pelo obscurantismo, pela mediocridade, pela ignomínia, pela estupidez e pela crendice. De outro modo, é uma aposta na razão, no conhecimento, na inteligência, na arte do desvelamento.

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No fundo, nos crimes cometidos, vemos refletir-se a alma das pessoas e da sociedade em que vivem. Já com os tipos penais, e com as penas consequentes, temos o nível de organização da cultura, o formato que o povo conseguiu imprimir ao Estado. Por isso, os crimes e as penas são fontes ricas, preciosas, para quem quer demonstrar o que a sociedade é capaz de produzir e em que nível se encontra nesse longo processo civilizatório.

Abolir a pena de morte e a tortura, portanto, é “civilizar” a pena, o apenado, a vítima e o penalista. Verri cita Cícero (no discurso Pro Silla): “A tortura é dominada pela dor, governada pelo temperamento de cada um, tanto de espírito quanto de membros, ordenada pelo juiz, dobrada pela dor, corrompida pela esperança, debilitada pelo temor, de modo que entre tantas angústias não resta nenhum lugar para a verdade” (p. 113). O maior problema, no entanto, é que o obscurantista não é capaz de entender o que Cícero diz (em sua síntese da razão), quanto mais a assertiva de que a dignidade é fruto dessa mesma razão 52.

Lei de Fábrica: esboço de uma interpretação materialista do renascimento

A primeira dessas medidas/garantias, especificamente no chamado “mundo do trabalho” seria chamada Lei de Fábrica:

As primeiras medidas de proteção do trabalho seriam tomadas para beneficiar a classe trabalhadora apenas em 1833, quando o parlamento inglês votou a Lei de Fábrica, que estabelecia a proibição do trabalho de crianças menores de 13 anos por jornadas superiores a nove horas por dia. Em 1847, nova legislação trabalhista proibiu jornadas diárias com mais de 10 horas para os menores de 18 anos e para as mulheres. Apenas em 1874 foi promulgada a lei que estipulava a jornada diária de dez horas para trabalhadores adultos do sexo masculino (Lessa, 2005, p. 63).

Essas medidas de segurança ou de garantia do direito (havia pressão social, do operariado e também socialista/comunista) em prol da “expectativa de direito” (“direito a ter direitos”: Bobbio, 1992) por parte da classe trabalhadora era o início de uma onda de resistências aos efeitos trazidos pela Segunda Revolução Industrial – especialmente a partir da Inglaterra.

Note-se, em parte pelo que já vimos, que tratamos a luta de classes como uma relação antagônica, contraditória e oposta entre as classes fundamentais; especificamente no capitalismo essas classes são burguesia e proletariado. Mas há outras classes, como o lumpemproletariado e a pequena burguesia e até frações de classe, também em luta, como: burguesia industrial X agropecuária ou financistas versus industriais. Uma relação de oposição pode implicar apenas em uma situação de conflito controlado, a exemplo do que se vê entre oposição e situação, relação mediada pelo Princípio do Contraditório: comum ao debate parlamentar (trabalhistas X conservadores) ou à relação jurídica.

Será uma relação antagônica quando a conflituosidade e a animosidade ganharem um nível muito superior de beligerância, antecipando-se à negação, porque os discursos ou ideologias estão em franco e aberto conflito: as visões de mundo se tornaram insuportavelmente diversas. Por fim, será uma relação contraditória porque, aquela negação anunciada estará em ação, o que implica que — apesar da mútua necessidade de existência entre os pólos em disputa (“não há diálogo de mudos ou de surdos”) — a vida de um acarreta obrigatoriamente a exclusão/eliminação do Outro.

Diferentemente da dialética oriental (positivo versus negativo), a dialética ocidental marxista impõe a ocorrência da negação. Assim, a um processo dialético por contradição é obrigatória a ocorrência de uma tese (situação), antítese (oposição) e de suas respectivas superações em uma síntese (que não é nem a tese, nem a antítese, mas que contém parte das duas, transformadas, revigoradas em um dado novo, em outro contexto). A síntese, portanto, como substrato das duas ocorrências anteriores, será a nova tese — o que implicará em outra antítese e assim por diante. Nesta fase, pode-se dizer que houve superação da própria luta de classes, pois sem que uma das classes fundamentais tivesse sobrevivido, necessariamente, a outra teria de se transformar em algo diverso daquilo que fora até então: as revoluções, portanto, transformam a própria luta de classes que as alimentou até aquele momento. Na síntese apresentada por Engels temos uma (re)visão histórica e crítica feita por Marx:

“O materialismo é filho nato da Grã-Bretanha” [...] O verdadeiro pai do materialismo inglês é Bacon. Para ele, a ciência da natureza é a verdadeira ciência, e a física experimental a parte mais importante da ciência da natureza [...] Toda ciência se baseia na experiência e consiste em aplicar um método racional de investigação ao que é dado pelos sentidos. A indução, a análise, a comparação, a observação, a experimentação são as condições fundamentais desse método racional [...] Hobbes sistematiza o materialismo de Bacon. A sensoriedade perde o seu brilho e converte-se na sensoriedade abstrata do geômetra [...] Se os sentidos fornecem ao homem todos os conhecimentos – argumenta Hobbes partindo de Bacon -, os conceitos, as ideias, as representações mentais, etc., não são senão fantasmas do mundo físico, mais ou menos despojado da sua forma sensorial. A ciência não pode fazer mais do que dar nomes a estes fantasmas [...] Locke, na sua obra [...] Ensaio sobre o Entendimento Humano fundamenta o princípio de Bacon e Hobbes [...] Assim se expressa Karl Marx referindo-se às origens britânicas do materialismo moderno (Engels, s/d, pp. 10-12).

Em seguida, Marx formula, no dizer de Engels, uma crítica mais rotunda acerca do conatus ou endeavor de Hobbes (1983). No fundo, uma crítica de base à ideia da reta razão (Angoulvent, 1996), porque a razão nunca seria reta se mais adiante sempre se colocassem obstáculos, diatribes 53, estranhamentos do mundo material — atuando como sufocação das subjetividades:

Corpo, ser, substância, vêm a ser uma e a mesma ideia real. Não se pode separar o pensamento da matéria que pensa. Ela é o sujeito de todas as mudanças [...] Toda a paixão humana é movimento mecânico que termina ou começa. Os objetos do impulso são o bem [...] O poder e a liberdade são coisas idênticas [...] Hobbes sistematizou Bacon, mas sem oferecer novas provas a favor do seu princípio fundamental: o de que os conhecimentos e as ideias têm a sua origem no mundo dos sentidos (Engels, s/d, p. 11).

Em parte, este é o esforço analítico principiando pelo materialismo histórico, tendo-se a acumulação primitiva e a colonização (ultramar) como suportes extratores de riquezas que originaram ou “suportaram” o Estado Moderno — em seguida, ainda socorre-se especialmente do “papel político-institucional” exercido pelo Estado-Nação. Portanto, cabe bem uma distinção/complemento quanto à dialética, especificamente para que possamos destacar o papel do Estado na condição/condução das suas superestruturas: direito, educação, “função pública”. Então, vejamos um relato sobre o Renascimento, a partir da perspectiva do Materialismo Histórico:

As fortunas da Espanha, da Holanda, da Inglaterra, da França foram obtidas, não somente com o trabalho excedente de seu proletariado, não somente destroçando sua pequena burguesia, mas também com a pilhagem sistemática de suas possessões de ultramar. A exploração de classes foi complementada e sua potencialidade aumentada com a exploração das nações. A burguesia das metrópoles se viu em situação de assegurar uma posição privilegiada para seu próprio proletariado, especialmente para as camadas superiores, mediante o pagamento com lucros excedentes obtidos nas colônias [...] Espoliando a riqueza natural dos países atrasados e restringindo deliberadamente seu desenvolvimento industrial independente, os magnatas monopolistas e seus governos concedem simultaneamente seu apoio financeiro, político e militar aos grupos semifeudais mais reacionários e parasitas de exploradores nativos [...] A luta dos povos coloniais por sua libertação, passando por cima das etapas intermediárias, transforma-se na necessidade da luta contra o imperialismo e, desse modo, está em consonância com a luta do proletariado nas metrópoles [...] O capitalismo tem o duplo mérito histórico de ter elevado a técnica a um alto nível e de ter ligado todas as partes do mundo com os laços econômicos [...] No entanto, o capitalismo não tem condição de cumprir essa tarefa urgente. O núcleo de sua expansão continua sendo os estados nacionais circunscritos com suas aduanas e seus exércitos. Não obstante, as forças produtivas superaram faz tempo os limites do Estado nacional, transformando consequentemente o que era antes um fator histórico progressista numa restrição insuportável. As guerras imperialistas não são mais que explosões das forças produtoras contra os limites estatais, que se tornaram limitados demais para elas (Trotsky, 1990, p. 71-73-75).

Este texto de Trotsky sobre a colonização, o imperialismo e o papel do Estado-Nação europeu na exploração das colônias, foi escrito em 1939. As revoluções foram intensas não só no aspecto material (acumulação primitiva, inversão de capitais), mas igualmente nas “mentalidades”: “Onde quer que tenha chegado ao poder, a burguesia destruiu todas as relações feudais, patriarcais, idílicas” (Marx & Engels, 1993, p. 68).

Para Marx, o papel do Estado Moderno nunca foi de relevância muito superior ao que vimos em alguns de seus interlocutores e comentadores: “O poder político do Estado moderno nada mais é do que um comitê (Ausschuss) para administrar os negócios comuns de toda a classe burguesa” (Marx & Engels, 1993, p. 68. – grifos nossos). Em momento de reflexão semelhante, Marx ainda dirá, entrelinhas, que o juiz crê que para chegar à verdade, é preciso aplicar a subsunção e, como se aplica a isto reiteradamente, acaba por atribuir à subsunção a própria força da verdade objetiva dos fatos sublimados, colimados pela ocorrência histórica e não pela retórica. O juiz termina por acreditar mais nas aparências e nas formalidades do que no direito e nos fatos:

As relações, na jurisprudência, política etc. — convertem-se em conceitos na consciência; e por eles não se situarem acima dessas relações, os conceitos das mesmas, em suas cabeças, são conceitos fixos; o juiz, por exemplo, aplica o código e por isso, para ele, a legislação é tida como verdadeiro motor ativo. Respeito pela sua mercadoria; pois sua ocupação tem a ver com o geral (Marx, 1984, p. 134).

Por isso, pela ausência de realidade substancial que funcione como anteparo ao achaque à consciência do aplicador do Judiciário (e agindo quase que por inércia, osmose, sob o efeito direto da subsunção), a partir do Estado Moderno, não poderia ter havido um típico Renascimento do Direito. De modo complementar também se destaca o Estado Moderno como fixador material/ideológico do “sistema capitalista” já a partir do Renascimento. Em suma, trata-se de uma leitura complementar, crítica/realista acerca do Renascimento e da Renascença, pois, nem todas as ideias, vocações ou habilidades puderam (re)nascer livremente. De lá para cá, no que concerne precisamente às múltiplas manifestações da Razão de Estado no mundo contemporâneo, podemos salientar que há duas grandes correntes teóricas a serem observadas:

CORRENTES: Liberais (Grotius e Locke); Realistas (Maquiavel e Vico)

  • máxima realista: A paz só é possível quando a guerra não é necessária

  • máxima liberal: A guerra só é necessária quando a paz não é possível

A ordem e o direito internacional deveriam restringir e, ao mesmo tempo, garantir a soberania e a Razão de Estado. No entanto, para os realistas, a Razão de Estado só se mantém segura com o emprego da violência:

Como o objetivo do Estado é sua própria sobrevivência, aqueles que se identificam com essa corrente tendem a dedicar-se ao estudo dos meios e mecanismos empregados pelos estados para conservar e acumular o poder necessário à sua própria sobrevivência enquanto Estado. Como o Estado é o responsável final por sua própria sobrevivência, o emprego da força militar e, em decorrência, a guerra e a preparação para a guerra são, em última instância, o instrumento essencial do Estado nas relações internacionais (Albuquerque, 2005, p. 30. – grifos nossos).

Para os idealistas ou liberais, a necessidade de conservação não se converte, obrigatoriamente, em Luta por Conservação (Honneth, 2003); antes se verte em cooperação. Com isto, evita-se a transformação da necessidade em Estado de Necessidade (ou Estado de Guerra, como ocorreu com a formação do Estado Moderno):

Assim sendo, quando a necessidade de conservar ou acumular riquezas passa a esbarrar, necessariamente, na violação da necessidade de terceiros, seja para conservar, seja para acumulá-las, a cooperação se torna indispensável e, por sua vez, aumentando as oportunidades de convivência, aumentam as razões de conflito [...] a inevitabilidade da convivência leva à necessidade de cooperação e à inevitabilidade do conflito, e a superação racional do conflito pela cooperação leva à construção da ordem política (Albuquerque, 2005, p. 27. – grifos nossos).

Os liberais buscam subordinar os conflitos à racionalidade normativa: a racionalidade humana permite evitar o emprego da violência e os seus riscos inerentes, aprendendo-se com as experiências e a comunicação política inaugurada pelos mecanismos mediadores. Os atores (ou indivíduos envolvidos: pessoas ou grupos de interesse econômico) devem converter os conflitos de interesses em normas (mesmo que sem a participação legitimadora do Estado). As normas, então, funcionariam como meios e procedimentos capazes de evitar, solucionar ou limitar os conflitos (Albuquerque, 2005). Todo Estado (a exemplo do Estado de Cortes, pré-Renascentista e anterior ao Estado Moderno) luta por autonomia e soberania (centralização e unidade política em que não cabe superlativo). Esta é a era da luta por conservação ou sobrevivência (Honneth, 2003) a que se seguirá a espera pela fase do reconhecimento diplomático dos demais Estados:

É essa articulação que Maquiavel sublinha, de tal modo que estamos sempre postos na presença de vários termos simultâneos e constrangidos a pensá-los em função de suas relações, isto é, das ações e reações que exercem uns sobre os outros [...] Em suma, somente a constelação dos fatos é significativa: não podemos considerar o comportamento dos súditos senão em relação ao do príncipe e vice-versa, e é o fato de suas relações que constitui o objeto do conhecimento (Lefort, 2003, pp. 44-45 – grifos nossos).

Weber demonstrará muito bem esta relação/passagem do Estado Moderno à Razão de Estado, a partir do exemplo do Estado nacional alemão. Da perspectiva da eterna luta pela manutenção (conservação, sobrevivência) nasce uma imbricação entre economia e política e isto as faz desembocar, associadamente, na Razão de Estado. Luta e Razão de Estado, portanto, estariam absolutamente entrelaçadas enquanto tipos ideais em Weber:

Não é a paz e a felicidade que devemos legar aos vindouros mas sim a eterna luta pela manutenção e aperfeiçoamento do nosso modo de ser nacional [...] Os processos de desenvolvimento econômico são também em última instância lutas de poder [...] E o Estado nacional não representa para nós algo indefinido, que se imagina estar elevando tanto mais alto quanto mais a sua essência fica recoberta por névoas místicas, mas a organização mundana do poder nacional. E nesse Estado nacional o critério de valor definitivo que vale também para o ponto de vista da política econômica é para nós a “razão de Estado”. Ela não significa para nós, ao contrário de um estranho mal-entendido, a “ajuda do Estado” no lugar da “ajuda própria”, a regulamentação estatal da vida econômica no lugar do livre jogo das forças econômicas. O que queremos exprimir, ao falarmos de razão de Estado, é a reivindicação de que o interesse de poder econômico e político da nossa nação e do seu portador, o Estado nacional alemão, seja a instância final e decisiva para as questões da política econômica alemã (Weber, 1989, p. 69. – grifos nossos).

A ausência de um Estado dos Estados tem como consequência direta a ausência de uma autoridade mediadora entre os contendores; os pactos e acordos multilaterais auxiliariam nesta mediação, assim como os contratos políticos que permitiram ao Estado Moderno subtrair o patrimônio dos súditos/cidadãos em situações de necessidade. Mas, a ausência de autoridade (Estado dos Estados: função exercida pela Igreja Católica na Idade Média) também poderia gerar guerras de conquista, quando houvesse: a) disputas diretas por territórios; b) Estados que procuram se armar preventivamente; c) Estado em disputa para fixar ascendência ou supremacia (Albuquerque, 2005, p. 12). É interessante como Kant e Weber se aproximam deste ponto: a paz como preparativo da guerra.

Renascimento Político: Estado Moderno

A monarquia feudal, em decorrência da instabilidade inerente a sua estrutura política, acabou por gerar os princípios e Bases do Estado Moderno: conflitos franco-ingleses; anglo-escoceses; dos conflitos franco-flamengos do século XIV à Guerra dos Cem Anos. Suas duas faces forçaram a isso: de um lado paz, justiça e religião; de outro, guerra. As estruturas forjadas ao Estado Moderno naquela época, guardadas as atualizações e proporções, vigoram até hoje:

Ao final do século XIII, ocorre uma mudança decisiva que contém em germe a evolução futura e a transformação da monarquia feudal no que se pode denominar Estado moderno, pois esta forma de Estado é o ancestral direto, sem descontinuidades, do moderno Estado europeu atual (Le Goff, 2006, p. 405. – grifos nossos).

As necessidades do Estado (ou Estado de Necessidade) autorizam o espólio dos súditos, como antigamente se fazia para financiar as guerras de conquista (Cruzadas) ou “auxiliar” o suserano. O Estado moderno se reservou o “direito de apelar” para se defender de suas necessidades:

Em seguida, já que o Estado se reserva o direito de apelar em caso de necessidade aos bens de seus súditos, é preciso que esses bens existam e sejam protegidos: contra a arbitrariedade da violência feudal e a flutuação dos variados tipos de terra que favorecem o feudalismo, o Estado vai por intermédio de seus juízes permitir e proteger o desenvolvimento da propriedade individual 54 (Le Goff, 2006, p. 406. – grifos nossos).

Historicamente, um passo fundamental foi dado pela centralização de Portugal, já o financiamento do Estado Moderno, internamente, deve-se à cobrança de tributos pelo trânsito livre, uma evolução do outrora “resgate de pilhagem” (Marx, 1984, p. 89):

O aparecimento do ouro e da prata americanos nos mercados europeus, o desenvolvimento progressivo da indústria, a rápida expansão do comércio e a conseqüente prosperidade da burguesia não-corporativa e do dinheiro deram as essas medidas um significado diferente. O Estado, que era cada dia menos capaz de dispensar dinheiro, mantinha a proibição das exportação de ouro e prata por razões de ordem fiscal (Marx, 1984, pp. 89-90).

Após esse processo inicial, com a segunda fase do desenvolvimento europeu, veio o Fausto inglês: “A nação marítima mais poderosa, a Inglaterra, mantinha sua preponderância no plano comercial e na manufatura. Nota-se aqui a concentração em um só país” (Marx, 1984, p. 90). Sob este aspecto, a modernidade de Marx também se rendeu como herdeira àquela primeira fase da modernidade: colonialismo.

Legalização da Luta de Classes

Assim, a inovação social, tecnológica, econômica, política e cultural (ideológica) de um dos marcos do avanço/consolidação capitalista europeu, iniciada no século XV e com repique no século XIX, certamente iria trazer modificações de ordem jurídica. Como diriam Marx e Engels (2003), um devido ajustamento entre infra e superestrutura.

No caso específico do Estado Moderno, pode-se salientar a ocorrência da “laicização da política”: a) exclusão da religião (diante da Razão de Estado); b) diluição radical do imbricamento entre moral e política; c) aceitação “irregular e lenta” da perspectiva da modernidade: “o outro lado” (Ribeiro, 2001). Outro destaque é a luta intestina entre o reconhecimento versus a conservação e a dominação:

Em outro passo [pode-se argumentar que] o direito não é constituído propriamente por relações sociais em geral, ou mesmo pelas relações de produção e de troca, mas por um sistema acabado de relações, por um sistema de relações caracterizado por um interesse de classe e defendido pela classe dominante (Naves, pp. 30-31).

É certo, entretanto, que não se acomete mais da ingenuidade de se supor um Estado Ético, na linha proposta por Hegel. Portanto, o Princípio da Igualdade jurídica, como certa construção do Estado Moderno, especialmente o modelo que se afirmaria com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (mas a de 1793), não ofereceria perspectiva muito diversa:

Na verdade, Marx vê a noção de “direitos iguais” herdada da época burguesa, como um tipo de reflexo espiritual da troca de mercadorias abstratamente iguais. Isto não quer dizer que para ele o conceito seja desprovido de valor, mas que ele reprime inevitavelmente a particularidade de homens e mulheres, os diversos talentos próprios de cada um. Ele atua assim entre outras coisas como uma forma de mistificação, ocultando o verdadeiro conteúdo das desigualdades sociais atrás de uma mera forma legal (Eagleton, 1999, pp. 48-49).

O que Marx indagava era acerca da igualdade diante das próprias desigualdades sociais que só fazem aflorar as potencialidades de poucos. Por isto, igualmente, a ideia da legitimação de um estado de desigualdade estrutural, a partir do Estado Moderno, não lhe agradava. Como também lhe soava estranha qualquer proposta ou possibilidade de uma legalização da luta de classes:

Essa legalização da luta de classes significa que as formas de luta do proletariado só são legalmente reconhecidas se observam os limites que o direito e a ideologia jurídica estabelecem [...] As reivindicações jurídicas do proletariado devem conter um elemento desestabilizador, quer “perturbe” a quietude do domínio da ideologia jurídica (Naves, 1991, pp. 20-21).

Com interpretação semelhante, Lênin daria uma pista de que maneira o Princípio da Igualdade exigiria uma resposta fora/além do âmbito do Estado Moderno:

Compreende-se a importância da luta do proletariado pela igualdade e pelo próprio princípio de igualdade, contanto que sejam compreendidos como convém, no sentido da supressão das classes. Mas, democracia quer dizer apenas igualdade formal. E, logo após a realização da igualdade de todos os membros da sociedade quanto ao gozo dos meios de produção, isto é, a igualdade do trabalho e do salário, erguer-se-á, então, fatalmente, perante a humanidade, o problema do progresso seguinte, o problema da passagem da igualdade formal è igualdade real baseada no princípio: “De cada um segundo a sua capacidade, a cada um segundo as suas necessidades” (Lênin, 1986, p. 123).

Lênin, partindo do Engels d’A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, sistematizou assim as premissas do Estado de forma geral (e, é claro, também do Estado Moderno):

O Estado é o produto e a manifestação do antagonismo inconciliável das classes. O Estado aparece onde e na medida em que os antagonismos de classes não podem objetivamente ser conciliados. E, reciprocamente, a existência do Estado prova que as contradições de classes são inconciliáveis [...] Para Marx, o Estado não poderia surgir nem subsistir se a conciliação das classes fosse possível [...] Para Marx, o Estado é um órgão de dominação de classe, um órgão de submissão de uma classe por outra; é a criação de uma “ordem” que legalize e consolide essa submissão, amortecendo a colisão das classes (Lênin, 1986, pp. 09-10).

Desse modo, o “jovem Marx” reforçaria esta advertência crítica: “Hegel não deve ser censurado por ter descrito a essência do Estado moderno, como ele é, mas por ter imaginado que aquilo que é constitui a essência do Estado” (Reichelt, 1990, p. 15) 55. No mesmo sentido, já apontava o próprio Marx:

A crítica da filosofia alemã do direito e do Estado, que teve a mais lógica, profunda e completa expressão em Hegel, surge ao mesmo tempo como a análise crítica do Estado moderno e da realidade a ele associada e como a negação definitiva de todas as anteriores formas de consciência na jurisprudência e na política alemã, cuja expressão mais distinta e mais geral, elevada ao nível de ciência, é precisamente a filosofia especulativa do direito. Só a Alemanha poderia produzir a filosofia especulativa do direito — este pensamento extravagante e abstrato acerca do Estado moderno, cuja realidade permanece no além [...] o representante alemão do Estado moderno, pelo contrário, que não toma em linha de conta o homem real, só foi possível porque e na medida em que o próprio Estado moderno não atribui importância ao homem real ou unicamente satisfaz o homem total de maneira ilusória (Marx, 1989, p. 85).

É nítida a crítica de Marx a uma possível Teoria Geral do Estado baseada neste ideal que possa permear as “estruturas jurídicas” vincadas no também ideal Estado Moderno.

Estado “pós-Iluminista”

Se não houve um Renascimento Jurídico, pode-se ver um Estado ou direito pós-Iluminismo? Como sabemos, esta legalização da luta de classes ocorreu mais tardiamente, a partir da Lei de Fábrica e após, já sob os efeitos do clássico Estado de Direito, no contexto do século XIX como salientou o também alemão Robert von Mohl — com uma maior “jurisdicização do poder político” (Canotilho, 1999). Sob esse efeito da concepção jurídica de uma ordem mundial, sobretudo no pós-guerra de 1945, nasceria o Estado Democrático de Direito (Silva, 2003) 56:

Desde Pablo Verdú (a primeira monografia, Estado Liberal de Direito e Estado Social de Direito, data de 1955) e Elías Díaz (com seu livro Estado de Derecho y sociedad democrática, de 1966), o moderno conceito de Estado Democrático de Direito atrelou-se conceitualmente ao socialismo e à Justiça Social. Esta ligação é tão forte que também foi chamado de Estado de Justiça, por Elías Díaz 57.

Por outro lado, há mais uma relação de contradição política nascida com o Renascimento, do que de pura dominação, em que se avoluma um longo e tortuoso processo de luta entre conservação de poder, de um lado, e reconhecimento de novas demandas e direitos, de outro, no exemplo mais notório da contraposição entre burguesia e proletariado. Curiosamente, uma das lições que se apreendem com o “jovem Marx” decorre da crítica ao dogmatismo político-jurídico, de esquerda ou de direita. O que melhor se aprende no “jovem Marx” é o caminho da utopia, mesmo que este seja apenas um singelo nalgum-lugar. O que também se apreende de Marx é a necessária investigação das condições reais em que o Povo se encontra; sem o que as análises conceituais não passam de ideologias do poder.

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Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Estado moderno:: características, conceito, elementos de formação, instituições políticas, natureza jurídica, atualidades. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3832, 28 dez. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26268. Acesso em: 21 mai. 2024.

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