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Do incidente de desconsideração da personalidade jurídica

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31/01/2014 às 10:50
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III – A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA PERANTE ALGUMAS DAS LEGISLAÇÕES EM VIGOR.

3.1 – No Código de Defesa do Consumidor.

Foi nesse Código onde por primeiro se fez ingressar no sistema jurídico positivo brasileiro a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, no Título I, que cuida dos direitos do consumidor, a Seção V, do Capítulo IV, que trata da qualidade de produtos e serviços, da prevenção e da reparação dos danos, regula a desconsideração da personalidade jurídica (art. 28, “caput”, CDC) e o § 5º do art. 28 do Código de Defesa do Consumidor salienta ainda que também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica “sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores”. Esse Código também dispõe sobre a responsabilidade subsidiária das sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladoras pelas obrigações dele decorrente, a responsabilidade solidária das sociedades consorciadas e a responsabilidade por culpa das sociedades coligadas.

O artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor apesar de se referir a desconsideração da personalidade jurídica, não abraçou essa teoria, ou seja, a teoria do superamento, pois há situação no mesmo prevista referente a responsabilização do administrador que não enseja o afastamento da pessoa jurídica.. No entanto o § 5º do art. 28, dessa legislação, autoriza a desconsideração sempre que houver obstáculo ao ressarcimento de prejuízo causado ao consumidor; nessa hipótese, percebe-se ter o Código de Defesa do Consumidor abraçado, sim, a denominada teoria menor da desconsideração. Há então nítida diferença entre esse dispositivo e o do art. 50 do Código Civil, pois neste é alcançada a hipótese referente ao desvio de finalidade, abuso, fraude ou confusão patrimonial, a ensejar a aplicação da denominada teoria maior..

O Código de Defesa do Consumidor na verdade permitiu a utilização da teoria da desconsideração da personalidade jurídica de maneira ampla, podendo alcançar qualquer situação em que a autonomia da personalidade jurídica venha a frustrar ou dificultar o ressarcimento do consumidor prejudicado, pois a rigor a impossibilidade de ressarcimento não autorizaria a decretação da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade. Zelmo Denari, ao comentar o art. 28 do Código de Defesa do Consumidor, observa que há pressupostos “que primam pelo ineditismo, tais como a falência, insolvência ou encerramento das atividades das pessoas jurídicas”, além da introdução de uma novidade, “pois é a primeira vez que o direito legislado acolhe a teoria da desconsideração sem levar em consideração a configuração da fraude ou do abuso de direito. De fato, o dispositivo pode ser aplicado pelo juiz se o fornecedor (em razão da má administração, pura e simplesmente) encerrar suas atividades como pessoa jurídica”.[19]

Além disso, permite o art. 28, § 5º, do Código de Defesa do Consumidor, possa o magistrado desconsiderar a personalidade jurídica e a encetar a ser responsável seus sócios, já a contar do instante em que seja percebido estar a autonomia da pessoa jurídica servindo para coactar dificuldade, estorvo, ao ressarcimento de prejuízos aos consumidores.

Da aplicação a legislação consumerista pode ser deduzido que o emprego da teoria da desconsideração da personalidade jurídica é cabível sempre que se evidenciar a afronta ao interesse do consumidor, ao direito que por aquela lhe é garantido, motivo pelo qual a mesma autoriza o juiz a inclusive agir de ofício, e, portanto, essa permissão não pode ser considerada apenas como sendo uma faculdade do juiz e sim deve ser considerada sua aplicação como o poder-dever do magistrado, uma vez que presentes os pressupostos necessários, por ter o interessado o direito em obter a medida para o ressarcimento da obrigação, no limite, na dimensão em que ao consumidor apenas interessa a aplicação do direito como posto, do qual se espera, se deseja e crê, possa ser efetivo, empregado e repercuta na vida dele e dos demais envolvidos como previsto; portanto, não se espera que o magistrado empregue o solipsismo, ou atue com subjetivismo, pois tal não lhe é conferido.

E assim sendo, pode o juiz determinar aquele ato independente do pedido da parte, porque na procura em proteger o hipossuficiente, o legislador não se preocupou em aplicar o princípio dispositivo e, portanto, não necessitará o juiz aguardar a iniciativa da parte interessada para decretar a desconsideração da personalidade jurídica. Diferente da situação que se apresenta para a aplicação da teoria no Código Civil, onde o art. 50 determina que a decretação depende de requerimento da parte o do órgão do Ministério Público, quando este couber intervir no processo.

3.2 – Código Civil de 2002.

O novo Código Civil previu a desconsideração da personalidade jurídica no art. 50 e indica como pressuposto para a aplicação dessa teoria, ter ocorrido o abuso da personalidade, ou desvio de finalidade e a confusão patrimonial, porque tendo se dado desvio da finalidade atribuída a sociedade, quer pela prática de abuso quer pela confusão patrimonial, o privilégio conferido a sociedade atinente a personalidade jurídica, não mais irá protegê-la, deixando de ser considerada a separação referente a autonomia patrimonial.

A pessoa jurídica possui ação própria para alcançar a consecução de seus objetivos jurídicos e sociais, os quais precisam ser observados pelos sócios que a integram e administradores; e para a hipótese em não atuarem aqueles em respeito a essa característica que a lei lhe conferiu, descumprindo os objetivos jurídicos e sociais, poder-se-á empregar a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, o que não se confunde com o término da pessoa jurídica. Todavia, não se pode toldar quanto a possibilidade dos sócios ou administradores da pessoa jurídica de agirem sob o manto da legalidade, quando, em verdade, há uma ocultação consciente da realidade para utilizar da proteção referente a autonomia da pessoa jurídica e assim se sentirem protegidos dos atos dos credores ou outros interessados.[20]

O desvio de finalidade deve ser compreendido quando se verifica o uso anormal da pessoa jurídica, ou seja, quando a sociedade deturpa a personificação jurídica que lhe é atribuída pela legislação, com a finalidade precípua de tornar mais fácil o exercício da atividade para a qual foi criada; apurado o desvio desse fim, é cabível a decretação da desconsideração da personalidade jurídica.

Prevê ainda o art. 50 do Código Civil o pressuposto da confusão patrimonial, o qual será possível de percepção. É que na formação da pessoa jurídica, comum é o emprego de bens pertencentes aos sócios serem empregados na sociedade (é possível também quando a sociedade tem por sócios os cônjuges), ou bens adquiridos apenas por um sócio e nessas hipóteses não se pode afirmar ter ocorrido a confusão patrimonial para a prática de fraude ou de abuso do direito pela sociedade e então não comportaria a decretação da desconsideração da personalidade jurídica. Todavia, verificada a confusão patrimonial criada para prejudicar o credor, caberá a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica.[21]

Não foi essa teoria criada para por fim a autonomia da pessoa jurídica, mas para permitir que haja adequada separação dos patrimônios, com isso impedindo a perpetração de fraudes e abusos de direito que podem ser praticados sob o manto da pessoa jurídica. Logo a desconsideração da pessoa jurídica não alcança a validade de sua constituição e sim a torna desconsiderada, ou seja, ineficaz num determinado instante em virtude de uma situação específica.

Com essa ineficácia possibilitará ao credor afastar a fraude e o abuso então praticado por aquele que administra a pessoa jurídica.

O que se pretende com o emprego da teoria da desconsideração da pessoa jurídica é a sua ineficácia para um determinado caso e num exato período, ou seja, um momento preciso, o que não se confunde com a invalidez da sociedade.

A invalidez deve ser considerada como gênero em relação as nulidades, por ter um significado mas ampliado e abrange a nulidade e a anulabilidade[22]. Arnaldo Rizzardo observou que: “A vontade é a característica primordial do ato jurídico. Quando livremente manifestada, torna-o válido se se acrescenta a sua licitude, isto é, se fundado em direito.

De sorte que, quando afetados por um mal, dizem-se nulos ou anuláveis os atos, segundo a gravidade da doença de que são portadores.

Nulos, quando maior a gravidade do atentado à ordem pública, retirando-lhes o valor ou tornando-os ineficazes em relação a todas ou a algumas pessoas. Anuláveis, se a falta cometida é mais leve, como quando a vontade do agente for viciosa ou imperfeita”[23].

Mas, destaca Teresa Arruda Alvim Wambier, que ser nulo ou anulável o ato significa que está sujeito a ser ineficaz e não pode produzir efeitos e pôde observar também que “quando a lei diz que um ato, praticado de determinada forma, é ineficaz, os efeitos produzidos (pois, no fundo, o que a lei quer dizer é que o ato deve ser ineficaz) devem ser desconsiderados, e para isto não haveria necessidade de que se intente ação própria”.[24]

Portanto, pode ser percebido que a ineficácia tem a característica de um determinado ato em que estejam em ordem os elementos essenciais e os pressupostos de validade, quando, no entanto, obste à sua eficácia uma circunstância de fato a ela extrínseca. Pondera-se a respeito, como fez Humberto Theodoro Junior, ao afirmar que “a aplicação da sanção da ineficácia, e não da invalidade, decorre de uma valoração da lei em torno dos interesses a regulamentar numa prevista conjuntura em que certo negócio jurídico se desenvolve”.[25] Tendo esse pensar verifica-se que a ineficácia para o caso é considerada relativa pois se dá apenas quando o negócio jurídico for ineficaz para determinada pessoa e eficaz para as demais.

Há similitude da desconsideração da pessoa jurídica com a fraude à execução, pois visam a ineficácia do ato jurídico, sendo a fraude instituto de direito processual.

3.3 – Direito Econômico.

A Lei n. 8.884/94 (Lei Antitruste) contém a previsão da desconsideração da personalidade jurídica para as hipóteses em que ocorrerem as infrações à ordem econômica, por exemplo, quando se forma os denominados cartéis, ou o preço predatório e outras infrações e para a aplicação do instituto em estudo, caberão para uma dessas infrações o cumprimento do que dispõe o art. 28 do Código de Defesa do Consumidor. Por isso a desconsideração da personalidade jurídica poderá ser decretada ainda que ocorra o estado de falência da sociedade, ou de insolvência, ou o encerramento da pessoa jurídica em virtude da má administração.

3.4 – Direito Tributário.

As opiniões são divergentes sobre a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica em virtude da aplicação do princípio da legalidade, previsto no art. 5º, inc. II, e art. 150, inc. I, ambos da Constituição Federal, visto não haver previsão legal para tanto.

Mas o art. 135 do Código Tributário Nacional : (são pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos: I – as pessoas referidas no artigo anterior; II – os mandatários, prepostos e empregados; III – os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado.) cuida da solidariedade dos sócios e aponta a responsabilidade das pessoas indicadas, referente aos atos que resultarem da pratica excessiva de poderes ou com infração à lei, ao contrato social ou estatutos. O que define a solidariedade entre os sócios, segundo o art. 124 do Código Tributário Nacional, é o interesse comum na realização do fato jurídico tributário. E praticado ato ilícito por gerentes e/ou diretores da sociedade, a responsabilidade deles é considerada direta em virtude do princípio da responsabilidade tributária prevista no art. 128 do Código Tributário Nacional.

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Assim, não há porque se cogitar em aplicação da teoria da desconsideração da pessoal jurídica no direito tributário. Mas há doutrinadores que entendem ser possível a aplicação do instituto para os casos legalmente previsto, como no art. 50 do Código Civil ou então a aplicação futura e eventual do que dispõe o art. 116 do Código Tributário Nacional.

3.5 – Direito do Trabalho.

A Consolidação das Leis do Trabalho em seu art. 2º, § 2º indica a responsabilidade solidária para obrigações decorrentes do contrato de trabalho ao dispor: “Sempre que uma ou mais empresas, tendo, embora, cada uma delas personalidade jurídica própria, estiverem sob a direção, controle ou administração de outra, constituindo grupo industrial, comercial ou de qualquer outra atividade econômica, serão, para os efeitos da relação de emprego, solidariamente responsáveis a empresa principal e cada uma das subordinadas”.

Esse dispositivo permite ao terceiro interessado atingir não só os sócios, como também outra pessoa jurídica.

“Doutrina e jurisprudência, de modo pacífico, admitem a responsabilização do sócio, quando da frustração da execução contra a sociedade, sob o argumento de que o valor devido decorre do trabalho prestado pelo empregador, mercê do qual o patrimônio do sócio viu-se incrementado.

Trata-se da teoria da desconsideração da personalidade jurídica da empresa, quando esta personalidade deixa de servir aos fins sociais a que se destina, transformando-se em óbice à satisfação de crédito, em verdadeiro escudo a proteger o ato ilícito, qual seja, o não-pagamento de seus débitos”. [26]

Diante desse pensamento, o qual espelha grande parte da doutrina e da jurisprudência do direito do trabalho, percebe-se com o mesmo a aplicação da teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica, uma vez que a decretação dela será ordenada sem que haja comprovação da ocorrência do abuso da personalidade jurídica.


IV A desconsideração no Processo civil e o incidente previsto no anteprojeto do novo Código de Processo Civil.

4.1 – Aspectos processuais.

Duas correntes existem a respeito da aplicação da teoria da desconsideração da pessoa jurídica, uma que entende ser necessária a propositura de ação autônoma e outra que sustenta ser suficiente o mero incidente para a aplicação da mesma.

Essas duas correntes visam o respeito ao princípio constitucional do contraditório, sendo que a segunda possui visão, uma observação maior à dar cuidado, a fim da resolução da questão ser célere. E esta última é que deve receber todo o apoio para sua aplicação, porque não há razão ou justificativa plausível para se pensar em ser necessária a propositura duma ação para o interessado ao final alcançar o deferimento da desconsideração da personalidade jurídica. É suficiente decretar a desconsideração da personalidade jurídica independente da propositura de ação, vale dizer, poderá o magistrado decretá-la no curso da própria ação, pois é corrente que, na maioria dos casos, a necessidade em se decidir por sua incidência só surge no momento em que se descobre a ausência de bens suficientes da pessoa jurídica para a realização da penhora – poucas são as ações de cognição a ensejar o ingresso dos sócios da pessoa jurídica naquelas em virtude da aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica -, quer na ação de execução quer no cumprimento de sentença.

Deveras a Constituição Federal, em seu art. 5º, inc. XXXV, assegura a todos o acesso à justiça, a qual tem por finalidade última, não apenas uma garantia formal, e sim para que se dê o efetivo acesso à justiça, o real, em grau alto, para ser conferido à qualquer do povo o direito a uma tutela jurisdicional adequada, tempestiva e eficaz e assim assegurar a Constituição Federal; portanto não se justifica o pensar em ser necessária a propositura de ação para a decretação da desconsideração da personalidade jurídica, na medida em que se criaria obstáculos desnecessários para aqueles fins almejados.

O art. 5º, inc. LV, da Constituição Federal assegura o direito ao contraditório, pois obriga o julgador dar conhecimento à parte contrária dos atos praticados no processo, permitindo que se manifeste a respeito dos fatos e do direito que consta no processo. Assim sendo, esse fundamental, indispensável princípio deve ser cumprido, ainda que diferido no tempo, pois algumas vezes se faz necessário esse diferimento sob pena da decisão se tornar inócua a medida, em detrimento do credor; ainda assim aquele princípio deve ser cumprido.[27].

Ao se respeitar o princípio do contraditório, estar-se-á também respeitando o princípio da ampla defesa, facultando que os sócios atingidos possam se defender no incidente que decidirá pela desconsideração da pessoa jurídica. Aqueles deverão ser considerados como parte no processo, uma vez que foram os sócios, ou um único sócio, alcançado ao ter bens penhorados pela decisão que determinou a desconsideração da personalidade jurídica, sofrendo, pois, os atos de execução; e se antes eram considerados como terceiros, ao ser atingido por aquela decisão judicial fará que se dê o ingresso na ação agora como parte.[28]

Como o sócio da pessoa jurídica teve bem penhorado na fase de execução, necessário se faz seja ele citado para poder exercer o direito do contraditório e de ampla defesa. Assim, deverá o sócio ser citado para se defender (art. 5º, inc. LIV e LV, da Constituição Federal), na própria ação, possibilitando então apresentar seus argumentos e fundamentos a respeito dos efeitos do ato constritivo, onde será proferida decisão a respeito, não se justificando a necessidade em ser proposta para tal fim ação de cognição.

É de ser notado ainda que os efeitos da coisa julgada, quer para o processo de cognição como de execução, não poderá impedir o alcance dos sócios da empresa cuja personalidade jurídica foi superada em razão da existência de fraude ou abuso do direito ou desvio de personalidade, uma vez que o art. 592, inc. II, e o art. 596, ambos do atual Código de Processo Civil, admitem a penhora de bens dos sócios e do mesmo modo será aplicado o art. 475-R desse Código, sofrendo então os sócios os efeitos reflexos da sentença ou do título executivo extrajudicial, porque os limites subjetivos da coisa julgada são ampliados, dilatados e o comando da decisão judicial os alcança e não poderão se opor ao julgado. É que não se pode olvidar permitir a lei responda os bens particulares dos sócios pelas dívidas da sociedade só após terem sido executados todos os bens da sociedade, aplicando-se o que dispõe o art. 596, § 1º, do Código de Processo Civil, de forma a evidenciar àquele possa indicar os bens daquela em tempo oportuno (art. 652, CPC), não sofrendo assim a constrição judicial dos bens particulares quando indicar aqueles bens e permitir a continuidade da execução tão-somente em face da pessoa jurídica, o que tornará desnecessária a decisão que ordenou a desconsideração da personalidade jurídica.

Por outro lado o sistema atual possibilita para a defesa do terceiro, a oposição de embargos de terceiro, objeção de pré-executividade e a interposição de agravo de instrumento contra a decisão interlocutória. O sócio que teve o bem penhorado é juridicamente interessado em recorrer, mas a pessoa jurídica não pode interpor esse recurso, por lhe faltar legitimidade e interesse, pois a decisão não lhe causa prejuízo e não há sequer nexo de interdependência para ser admitido o recurso como se de terceiro prejudicado fosse, nos termos do art. 499, § 1º, do Código de Processo Civil.

4.2 – No anteprojeto do novo Código de Processo Civil.

As dúvidas e as incertezas com relação a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, estão por diminuir, porque no anteprojeto do novo Código de Processo Civil, os doutrinadores que o elaboraram tiveram a cautela de criarem um incidente específico para essa questão. Essa cautela encontra coerência no todo desse anteprojeto, o qual está voltado para ampliar a aplicação do princípio do contraditório, da ampla defesa e da celeridade do processo com um tempo razoável para a entrega da prestação da tutela jurisdicional.

Dispõe o art. 62 do anteprojeto do Código de Processo Civil: Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado na forma da lei, o juiz pode, em qualquer processo ou procedimento, decidir, a requerimento da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou dos sócios da pessoa jurídica.

E o art. 64 desse anteprojeto dispõe: Requerida a desconsideração da personalidade jurídica, o sócio ou terceiro e a pessoa jurídica serão intimados para, no prazo comum de quinze dias, se manifestarem e requerer as provas cabíveis.

Claro está não poder o juiz agir de ofício para a decretação da desconsideração da pessoa jurídica, tendo o anteprojeto observado o princípio dispositivo, de modo que para se dar a desconsideração será necessário que a parte interessada ou o órgão do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo, formulem esse pedido ao juiz.

Pleiteada a desconsideração da personalidade jurídica de forma incidental, nos próprios autos, sem pagamento de custas, nos termos do que prevê o art. 294 do anteprojeto do novo Código de Processo Civil, deverá o juiz intimar o sócio ou terceiro para, no prazo de quinze dias, se manifestar a respeito desse pedido e poderá produzir provas a respeito, uma vez que necessário é a instauração de incidente (art.719, § 4º). Em seguida, terminada a instrução desse incidente, decidirá o juiz pela decretação ou não da desconsideração da personalidade jurídica.

Nessa perspectiva, claro ficou que de fato o sócio, o administrador ou eventual terceiro, serão considerados como parte no processo e irão exercer de forma plena a aplicação dos princípios do contraditório e da ampla defesa. A menção referente a pessoa jurídica no dispositivo, está a evidenciar a hipótese da denominada desconsideração inversa (art. 63, parágrafo único), permitindo então possa a mesma responder ao incidente.

Não há restrição, redução para que os sócios, administradores, ou a pessoa jurídica, possam, em comparecendo ao processo, instaurar o incidente criado pelo anteprojeto e exercerem as garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa, sendo que, ao final, e de maneira célere, em tempo razoável, deverá o magistrado acolher eventual existência de razão para determinar a desconsideração da personalidade jurídica, ou rejeitar o pedido em virtude dos fundamentos e das provas ofertadas pelos interessados. Dessa decisão interlocutória será cabível o recurso de agravo de instrumento (art. 65) para a impugnação da mesma.

Apenas após a decisão acolhendo aquele pedido ser proferida estará autorizada a penhora em bens dos sócios e não antes, a menos que tenha o credor apresentado elementos, ainda que indiciários, para a concessão de medida acautelatória, a permitir a penhora, deferindo-se a desconsideração da personalidade jurídica antes da instauração do incidente, evitando-se outras fraudes em detrimento do credor, podendo deste ser exigida caução para tal fim, caso seja necessário. Essa decisão antecipada, liminar, não acarretará ofensa àqueles princípios constitucionais, porque a qualquer tempo do processo poderá ser revista pelo julgador e só se tornará definitiva quando decidido o incidente instaurado, ao menos nessa fase, visto não ter o projeto de lei previsto o efeito preclusivo das decisões.

Percebe-se assim que se em vigor essa nova legislação processual, estará encerrada a questão atinente a necessidade da propositura de uma ação de cognição para o acolhimento da desconsideração da personalidade jurídica; como também estará encerrada a dúvida em poder ou não o juiz agir de ofício para a decretação dessa desconsideração. De forma que essas circunstâncias também denotam que se acentua ser um dever do juiz decretar a desconsideração da personalidade jurídica em estando presentes os pressupostos necessários para tal fim, não se cuidando, portanto, de uma faculdade conferida ao juiz. Logo, havendo demonstração da prática de abuso da personalidade, abuso do direito por parte do sócio, deverá o juiz, por cuidar do poder-dever, decretar a desconsideração da personalidade jurídica, respondendo pela obrigação os bens dos sócios, nos termos da lei, como também prevê o art. 719 desse anteprojeto do novo Código de Processo Civil.

Observa-se ainda que o incidente referente a desconsideração da personalidade jurídica criado pelo anteprojeto para o novo Código de Processo Civil, dispõe também da possibilidade da decretação da denominada desconsideração inversa, afastando também a dúvida referente a essa possibilidade. Pela desconsideração inversa, é possível atingir o patrimônio da sociedade, seus bens, em virtude da prática abusiva por parte do sócio daquela sociedade, que a ela transfere o patrimônio pessoal importante que possua, de maneira a não ter como responder por obrigações assumidas, isso em virtude do pequeno patrimônio que restou ou nenhum patrimônio.[29]

De relevância a inovação criada pelos doutrinadores e responsáveis pelo anteprojeto para o novo Código de Processo Civil, uma vez que o incidente para o exame do pedido referente a desconsideração da personalidade jurídica, vem em respeito a observância dos princípios do contraditório, da ampla defesa e da celeridade do processo, em tempo razoável, previstos na Constituição Federal, a qual deve ser cumprida, dando-lhe o verdadeiro sentido, assim apropriando-se e alcançando a toda a gente, que é a base, o fulcro da razão de sua existência.

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Sobre o autor
Nelson Jorge Junior

Juiz de Direito Substituto em Segundo Grau no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Doutorando em Direito Processual Civil na Pontifícia Universadade Católica de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JORGE JUNIOR, Nelson. Do incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3866, 31 jan. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26578. Acesso em: 25 abr. 2024.

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