Artigo Destaque dos editores

Rediscutindo os fins da pena

Exibindo página 2 de 3
01/02/2002 às 01:00
Leia nesta página:

5. PRINCIPAIS TEORIAS SOBRE OS FINS DA PENA

5.1 Teorias absolutas ou de justiça. Pena retributiva e expiatória

Foram defensores das teorias absolutas, entre outros, Carrara, Petrocelli, Maggiore e Bettiol na Itália, Binding, Maurach, Welzel e Mezger na Alemanha, mas, principalmente, Kant e Hegel. Para Kant a fundamentação é de ordem ética, para Hegel é de ordem jurídica.

Para as teorias absolutas a pena é a retaliação e a expiação, uma exigência absoluta de justiça, com fins aflitivos e retributivos, opondo-se a qualquer finalidade utilitária.

Na lição de Cezar Roberto Bitencourt,[25] "segundo o esquema retribucionista, é atribuída à pena, exclusivamente, a difícil incumbência de realizar a Justiça. A pena tem como fim fazer Justiça, nada mais. A culpa do autor deve ser compensada com a imposição de um mal, que é a pena, e o fundamento da sanção estatal está no questionável livre arbítrio, entendido como a capacidade de decisão do homem para distinguir entre o justo e o injusto".

As chamadas teorias absolutas, diz Sauer,[26] melhor chamadas teorias da pena conforme a Justiça, apóiam-se na filosofia do idealismo alemão, especialmente em Kant e Hegel. A pena encontra seu fundamento somente em sua referência ao delito; segundo sua gravidade determina-se sua quantia como que se satisfazem as exigências do ordenamento jurídico e a Justiça. Assim como a boa ação merece reconhecimento, a má ação requer reprovação e compensação.

É conhecido o exemplo apontado por Kant no sentido de que: "Se a sociedade civil resolver autodissolver-se, com a concordância de todos os seus cidadãos, mesmo assim, caso esta sociedade habitar uma ilha e resolver abandoná-la espalhando-se pelo mundo, o último assassino condenado e preso teria que ser executado, antes do abandono final da ilha pelo último membro do povo. Isto deverá assim acontecer para que cada um receba a punição equivalente aos seus atos e a dívida de sangue não permaneça vinculada ao povo".[27]

Em síntese, Kant entende que o réu deve ser castigado apenas por ter delinqüido, Não estabelece nenhuma consideração sobre a utilidade da pena para ele ou para a sociedade, retirando toda e qualquer função preventiva - especial ou geral - da pena. "A aplicação da pena decorre da simples infringência da lei penal, isto é, da simples prática do delito".[28]

Hegel também é partidário de uma teoria retributiva da pena. Sua tese resume-se em sua conhecida frase: "A pena é a negação da negação do Direito".[29] Em verdade, Kant e Hegel atribuem à pena um conteúdo talional.

O fundamento da pena em Hegel é jurídico, já que ela se destina à restabelecer a vigência da vontade geral, que é a lei, negada que fora pela vontade do delinqüente. "Ela é uma exigência de Justiça e se funda na pura retribuição. É um fim em si mesma e não serve a qualquer outro propósito que não seja o de recompensar o mal com o mal (fundamento metafísico Kantiano). Não tem, pois, uma finalidade, se considerada objetivamente".[30]

No escólio de Claus Roxin,[31] são três os inconvenientes que podem ser apresentados na análise da teoria da retribuição. O primeiro decorre do fato de que a referida teoria pressupõe já a necessidade da pena, que deveria fundamentar. E assevera: "Pois se o seu significado assenta na compensação da culpa humana, não se pode com isso pretender que o Estado tenha de retribuir com a pena toda a culpa. Cada um de nós considera-se culpado perante o próximo de muitas maneiras, mas não somos por isso puníveis. E, igualmente, a culpa jurídica acarreta conseqüências de tipos diversos, como por exemplo, um dever de indenização por danos, mas apenas em raras ocasiões a pena. A teoria da retribuição, portanto, não explica em absoluto quando se tem de punir, mas apenas refere: ‘Se impuserdes - sejam quais forem os critérios - uma pena, com ela tereis de retribuir um crime’. O segundo, nos seguintes termos: A liberdade humana pressupõe a liberdade de vontade (o livre-arbítrio), e a sua existência, como os próprios partidários da idéia da retribuição concordam, é indemonstrável. Por fim, o terceiro argumento é no sentido de que, mesmo quando se considere que o alcance das penas estatais e a culpa humana se encontram suficientemente fundamentadas com a teoria da expiação, colocar-se-ia sempre uma terceira objeção, a saber: a própria idéia de retribuição compensadora só pode ser plausível mediante um ato de fé. Pois, considerando-o racionalmente, não se compreende como se pode pagar um mal cometido, acrescentando-lhe um segundo mal: sofrer a pena. É claro que tal procedimento corresponde ao arraigado impulso de vingança humana, do qual surgiu historicamente a pena; mas considerar que a assunção da retribuição pelo Estado seja algo qualitativamente distinto da vingança, e que a retribuição tome a seu cargo ‘a culpa de sangue do povo’, expie o delinqüente etc., tudo isto é concebível apenas por um ato de fé, que, segundo a nossa Constituição, não pode ser imposto a ninguém, e não é válido para uma fundamentação, vinculante para todos, da pena estatal".

Feitas, em síntese, tais considerações, conclui o jurista: "A teoria da retribuição não nos serve, porque deixa na obscuridade os pressupostos da punibilidade, porque não estão comprovados os seus fundamentos e porque, como profissão de fé irracional e além do mais contestável, não é vinculante. Nada se altera com a substituição, que amiúde se encontra em exposições recentes, da idéia de retribuição (que recorda em demasia o arcaico princípio de talião), pelo conceito dúbio de ‘expiação’, na medida em que, se com ele se alude apenas a uma ‘compensação da culpa’ legitimada estatalmente, subsistem integralmente as objeções contra uma ‘expiação’ deste tipo. Se, pelo contrário, se entende a expiação no sentido de uma purificação interior conseguida mediante o arrependimento do delinqüente, trata-se então de um resultado moral, que por meio da imposição de um mal mais facilmente se pode evitar mas que, em qualquer caso, se não pode obter pela força".

Embora entendendo que a retribuição compensadora não é condizente com o Estado Democrático de Direito por não respeitar o princípio da dignidade humana, o que não nos parece correto, Sérgio Salomão Shecaira e Alceu Correa Junior[32] destacam que a teoria retributiva apresenta uma grande qualidade quando propõe a idéia de medição da pena, que atende ao princípio da proporcionalidade, "dado informativo de qualquer moderna legislação penal".

5.2 Prevenção geral

Intimidação de todos os membros da comunidade jurídica pela ameaça da pena.

Destacam-se entre os defensores da teoria da prevenção geral da pena, entre outros, Beccaria, Bentham, Feuerbach, Filangieri e Schopenhauer.

Anselm v. Fueurbach foi quem formulou a teoria da coação psicológica, expressão jurídico-científica da prevenção geral, segundo a qual "é através do Direito Penal que se pode dar uma solução ao problema da criminalidade".[33]

Claus Roxin,[34] entretanto, contraria a teoria da prevenção geral nos seguintes termos: "Em primeiro lugar, permanece em aberto a questão de saber face a que comportamentos possui o Estado a faculdade de intimidar. A doutrina de prevenção geral partilha com as doutrinas da retribuição e da correção esta debilidade, ou seja, permanece por esclarecer o âmbito do criminalmente punível. A ela se acrescenta uma ulterior objeção: assim como na concepção da prevenção especial não é delimitável a duração do tratamento terapêutico-social, podendo no caso concreto ultrapassar a medida do defensável numa ordem jurídico-liberal, o ponto de partida da prevenção geral possui normalmente uma tendência para o terror estatal. Quem pretender intimidar mediante a pena tenderá a reforçar esse efeito, castigando tão duramente quanto possível. Outro argumento reside no fato de que, em muitos grupos de crimes e de delinqüentes, não se conseguiu provar até agora o efeito de prevenção geral da pena. Por fim, uma última objeção: Como pode justificar-se que se castigue um indivíduo não em consideração a ele próprio, ma em consideração a outros? Mesmo quando seja eficaz a intimidação, é difícil compreender que possa ser justo que se imponha um mal a alguém para que outros omitam cometer um mal". E conclui: "A teoria da prevenção geral encontra-se, assim, exposta a objeções de princípio semelhante às outras duas: não pode fundamentar o poder punitivo do Estado nos seus pressupostos, nem limitá-lo nas suas conseqüências; é político-criminalmente discutível e carece de legitimação que esteja em consonância com os fundamentos do ordenamento jurídico".

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Na precisa compreensão de Mezger, como instrumento de prevenção, a pena deve "atuar social e pedagogicamente sobre a coletividade" (prevenção geral) e deve "proteger a coletividade ante o condenado e corrigir a este" (prevenção especial).

Ameaça que é, a pena constitui, como assinala Nélson Hungria, "um poderoso meio profilático da fames peccati" e "um freio contra o crime" que, se de um lado, "reafirma o princípio da autoridade, que o criminoso afrontou", de outro representa "um indireto contramotivo aos possíveis criminosos de amanhã".[35]

5.3 Prevenção especial

Postulado da moderna política criminal, cuida-se da prevenção do delito por atuação sobre o autor. Dirige-se exclusivamente ao delinqüente, para que este não volte a delinqüir.

Segundo Sauer,[36] não oferece ao juiz na medição da pena nenhum ponto de apoio e não oferece tampouco referências de valoração adequadas.

Conforme Jescheck, citado por Cezar Roberto Bitencourt,[37] várias correntes defendem uma postura preventivo-especial da pena. Na frança, por exemplo, pode-se destacar a teoria da Nova Defesa Social, de Marc Ancel; na Alemanha, a prevenção especial é conhecida desde os tempos de Von Liszt, e, na Espanha, foi a Escola Correcionalista, de inspiração Krausista, a postulante da prevenção especial. Independentemente do interesse que possa despertar cada uma destas correntes, foi o pensamento de Von Liszt que deu origem, na atualidade, a comentários de alguns penalistas sobre um "retorno a Von Liszt", conforme leciona Mir Puig[38].

Na lição de Maurach,[39] em seu conjunto, a prevenção especial está orientada a desenvolver uma influência inibitória do delito no autor. A sua vez, esta finalidade se subdivide em três fins da pena: intimidação (preventivo individual), ressocialização (correção) e asseguramento. Neste sentido, a intimidação e a ressocialização podem ser concebidas como objetivos positivos, enquanto elas buscam reincorporar o autor à comunidade jurídica, ou bem mantê-lo nela; busca assegurar a recuperação do autor para a comunidade.

A prevenção especial não busca a intimidação do grupo social nem a retribuição do fato praticado, visando apenas àquele indivíduo que já delinqüiu para fazer com que não volte a transgredir as normas jurídico-penais. Os partidários da prevenção especial preferem falar de medidas e não de penas, como assinala Mir Puig.[40]

Para Claus Roxin,[41] a teoria da prevenção especial tende, mais que um Direito Penal da culpa retributivo, a deixar o particular ilimitadamente à mercê da intervenção estatal. Outra objeção consiste no fato de que, nos crimes mais graves, não teria de impor-se uma pena caso não existisse perigo de repetição, e esclarece: "O exemplo mais contundente é constituído, neste momento, pelos assassinos dos campos de concentração, alguns dos quais mataram cruelmente, por motivos sádicos, inúmeras pessoas inocentes. Tais assassinos vivem hoje, na sua maioria, discreta e socialmente integrados, não necessitando portanto de ressocialização alguma; nem tampouco existe da sua parte o perigo de uma reincidência ante o qual deveriam ser intimidados e protegidos. Deverão eles, então permanecer impunes?" E arremata afirmando: "A teoria da prevenção especial não é capaz de fornecer a necessária fundamentação da necessidade da pena para tais situações". Coloca a última objeção nos seguintes termos: "O que legitima a maioria da população a obrigar a minoria a adaptar-se aos modos de vida que lhe são gratos? De onde vem o direito de poder educar e submeter a tratamento contra a sua vontade pessoas adultas? Porque não hão de poder viver conforme desejam os que fazem à margem da sociedade. Será a circunstância de serem incômodos ou indesejáveis para muitos dos seus concidadãos causa suficiente para contra eles proceder com penas discriminatórias? Tais perguntas parecem levemente provocadoras". E conclui: "Exprimindo numa só frase: a teoria da prevenção especial não é idônea para fundamentar o Direito Penal, porque não pode delimitar os seus pressupostos e conseqüências, porque não explica a punibilidade de crimes sem perigo de repetição e porque a idéia de adaptação social coativa, mediante a pena, não se legitima por si própria, necessitando de uma legitimação jurídica que se baseia noutro tipo de considerações".

Entre nós, Sérgio Salomão Shecaira e Alceu Correa Junior[42] entendem que a prevenção especial "pode representar uma idéia absolutista, arbitrária, ao querer impor uma verdade única, uma determinada escala de valores e prescindir da divergência, tão cara às modernas democracias. Suas qualidades, por outro lado, são inescondíveis. Esta teoria tem um caráter humanista, pois põe um acento no indivíduo, considerando suas particularidades, permitindo uma melhor individualização do remédio penal. Além disso, sua atuação específica permite o aperfeiçoamento do trabalho de reinserção social".

5.4 Teoria mista ou unificadora da pena

Sem desprezar os principais aspectos das teorias absolutas e relativas, como é intuitivo, as teorias mistas ou unificadoras buscam reunir em um conceito único os fins da pena. A doutrina unificadora defende que a retribuição e a prevenção, geral e especial, são distintos aspectos de um mesmo fenômeno que é a pena.

Em resumo, as teorias unificadoras acolhem a retribuição e o princípio da culpabilidade como critérios limitadores da intervenção da pena.

5.5 Teoria da prevenção geral positiva

As teorias unificadoras não obtiveram o êxito desejado junto aos doutrinadores da época, que continuaram os estudos e pesquisas para uma perfeita teoria sobre os fins da pena.

Da insatisfação reinante, dos estudos e pesquisas que nunca cessaram, surge a teoria da prevenção geral positiva, que se apresenta com duas subdivisões: prevenção geral positiva fundamentadora e prevenção geral positiva limitadora.

A primeira não visa a intimidação ou a proteção de bens jurídicos. Busca, apenas, a afirmação de vigência da norma perante a sociedade.

Para a segunda, a prevenção geral deve expressar-se com sentido limitador do poder punitivo do Estado.

Assuntos relacionados
Sobre os autores
Bruno Marcon

acadêmico de Direito na Universidade Paulista

Renato Marcão

Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Mestre em Direito. Professor convidado no curso de Pós-Graduação em Ciências Criminais da Rede Luiz Flávio Gomes. Membro da Association Internationale de Droit Pénal (AIDP), do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), do Instituto de Ciências Penais (ICP) e do Instituto Brasileiro de Execução Penal (IBEP). Autor dos livros: Tóxicos (Saraiva); Curso de Execução Penal (Saraiva); Estatuto do Desarmamento (Saraiva); Crimes de Trânsito (Saraiva); Crimes Ambientais (Saraiva); Crimes contra a Dignidade Sexual (Saraiva); Prisões Cautelares, Liberdade Provisória e Medidas Cautelares Restritivas (Saraiva); dentre outros.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARCON, Bruno ; MARCÃO, Renato. Rediscutindo os fins da pena. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 54, 1 fev. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2661. Acesso em: 29 mar. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos