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Rediscutindo os fins da pena

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01/02/2002 às 01:00
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6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A sociedade e a comunidade jurídica reclamam resultados ainda não alcançados pelo Direito Penal brasileiro, e um dos principais caminhos para o estudo e compreensão do tema é identificar o fim, ou os fins, da pena, já que o Direito Penal tem sido avaliado por aquilo que se entende deva ser seu resultado, que é buscado, lato sensu, com a pena.

Tem se entendido e proclamado que o Direito Penal, através da imposição de penas, deve conter a criminalidade, os índices de reincidência, e resolver as graves distorções que envolvem a segurança pública.

Conforme já anotamos acima, em linhas de considerações finais, há quem vislumbre o predomínio da função retributiva da pena. Nesse sentido é o pensar de Élio Morselli,[43] para quem: "A pena é integradora, ou melhor, reintegradora dos valores fundamentais da vida coletiva, somente quando for considerada em função retributiva, ou seja, como correspondente do mal infligido pelo réu à sociedade. Se perder de vista este necessário significado de decorrência de um malum actionis, considerando, assim, a pena como um instrumento de política criminal, então, não mais será possível conseguir a neutralização do alarme social, nem, por conseguinte, a reconstituição do equilíbrio intrapsíquico individual e coletivo. Conseqüentemente, nem o sentimento de Justiça nem a consciência jurídico-social encontrarão a necessária satisfação e consolidação".

O conceito de retribuição é um conceito ético. A propósito, na lição de Giuseppe Bettiol:[44] "No estágio atual do desenvolvimento cultural, qualquer sofrimento infligido ao culpado além da exigência retributiva é realmente um mal; e é sentido também como mal insuportável todo sofrimento infligido nos limites formais da retribuição quando esta não for entendida como adequada ao conceito de retribuição. O verdadeiro conceito de retribuição é um conceito ético que deve ter presente a natureza moral do homem. É com base na idéia de retribuição que o critério da proporcionalidade ingressou no Direito Penal, já que a pena retributiva deve ser estritamente proporcionada ao comportamento anterior. A força real da pena está, realmente, em sua justiça, ou seja, em sua proporcionalidade. Quando se desvia dessa diretriz termina-se por remover do Direito Penal sua base ética e por negar-se ao réu toda garantia substancial de liberdade. Entre o ente homem e o ente pena deve existir perfeita correlação, porque o homem enquanto pessoa moral tem ‘direito’ à pena, não podendo ser violado em sua natureza para ser submetido a medidas profiláticas, que dizem respeito apenas ao aspecto ‘zoológico’ da personalidade humana. O homem somente se salva salvando a idéia retributiva da pena".

Também comporta destaque a lição de Eduardo Correa,[45] para quem "a retribuição impõe o estabelecimento do quantum máximo de pena que é justo que o delinqüente sofra. Mas, sendo assim, logo se vê que a retribuição pode sempre conciliar-se com o quantum de pena exigido pelas necessidades de prevenção geral - a pena que seja necessária e suficiente para intimidar a generalidade das pessoas, afastando-as da prática de crimes: ponto é que a prevenção seja justa. Retribuir significa ainda, porque a retribuição supõe e se liga à culpa do agente, estimular o sentido de auto-responsabilidade do delinqüente: é essencial dar-lhe a idéia de que está nas suas mãos o corrigir-se; que, portanto, esta tarefa não pode pertencer ao sistema de execução das penas (o qual só lhe pode fornecer os meios para tanto) mas a ele próprio. Assim, se consegue, por esta via, um sistema monístico que não exclui, antes envolve, a possibilidade de realização de fins éticos, afastando ou evitando, por outro lado, as críticas da prevenção geral".

De qualquer forma, seja qual for o suporte filosófico que se adote, cremos que é inafastável a utilidade da pena. Conforme asseverou Marco Antonio de Barros em excelente artigo: "Incogitável a desvinculação da pena de um sentido útil. A utilidade lhe é inerente (e aqui vamos sempre enfocar a pena privativa de liberdade). Além do Estado visar fortalecer a repressão preventiva por meio do traço intimidativo que a sanção penal possa exprimir na consciência do indivíduo, do ponto de vista estrutural, permite-se tripartir as funções da pena em retributiva, humanitária e ressocializadora".[46]

Com efeito, na prática, salta aos olhos no Direito Penal brasileiro uma enorme antinomia entre o desejo do legislador e a realidade evidenciada. Os fundamentos filosóficos determinantes da prática legislativa (cominação das penas) não alcançam a finalidade pretendida, não se concretizam na aplicação e execução das penas.

Na maioria dos processos criminais submetidos à apreciação do Poder Judiciário inexiste uma correta avaliação da culpabilidade, das circunstâncias que influenciam na aplicação das penas, que quase sempre muito pouco se distanciam do mínimo legal, e raríssimas vezes se aproximam do limite oposto.

Até porque inexistentes elementos suficientes, porquanto não investigados adequadamente, não há uma correta aferição da culpabilidade, da conduta social, da personalidade do agente, dos motivos, das circunstâncias e conseqüências do crime, de maneira que a individualização da pena torna-se falha, desatendendo o espírito do legislador infraconstitucional e também a regra constitucional asseguradora de tal direito público subjetivo.

O Estado revela-se absolutamente incompetente diante da questão penitenciária.

É preciso anotar, ainda, que, modernamente, para punir os crimes mais graves a pena aplicada com maior freqüência é a de prisão, e, "ingressando no meio carcerário, o sentenciado se adapta, paulatinamente, aos padrões da prisão. Seu aprendizado nesse mundo novo e peculiar, é estimulado pela necessidade de se manter vivo e, se possível, ser aceito no grupo. Portanto, longe de estar sendo ressocializado para a vida livre, está, na verdade, sendo socializado para viver na prisão. É claro que o preso aprende rapidamente as regras disciplinares na prisão, pois está interessado em não sofrer punições. Assim, um observador desprevenido pode supor que um preso de bom comportamento é um homem regenerado, quando o que se dá é algo inteiramente diverso: trata-se apenas de um homem prisionizado".[47]

A conclusão a que chegou Marco Antonio de Barros[48] no artigo precitado é a de que "nos dias atuais a pena privativa de liberdade não espelha a justa punição filosoficamente inspirada pelo legislador. Teoricamente a pena tem como características, além da função repressiva, os fins retributivo, humanitário e ressocializante do condenado. Todavia, da forma como as coisas caminham, hoje a pena é de ser tida apenas e tão-somente como expiação. Castigo severíssimo para determinadas infrações de menor gravidade. Portanto, de pouco sentido útil, já que desobediente aos dogmas ético, humano e ressocializador".

Para uma singela conclusão a respeito dos fins da pena nos dias atuais, ousamos estabelecer e adotar um paralelo com o raciocínio de que se vale a doutrina do direito penal de intervenção mínima, para quem o direito penal só deve intervir nas questões essencialmente penais.

Adotando tal critério e considerando que a formação moral do homem e da sociedade não depende de qualquer punição, na essência, e que deve ser alcançada através de outros estímulos éticos-sociais, temos que a finalidade primeira da pena é somente punir. Punir é retribuir uma violação da norma de conduta, com a conseqüência legal que a própria sociedade houve por bem estabelecer, direta ou indiretamente. A essência é a retribuição.

Se o legislador deve estabelecer como delito somente aquilo que interessa ao Direito Penal, usando o mesmo raciocínio conclui-se que a pena não pode ter outra finalidade que não a punição com sentido retributivo; não se presta, de forma principal, a corrigir, educar ou fincar preceitos éticos-sociais, em curto ou longo espaço de tempo, na personalidade deformada, ou não, do criminoso. Se só interessa ao Direito Penal o que é de Direito Penal, só cabe à pena a adequada e justa retribuição do mal: a punição. Se por ser adequada e justa ela terminar por surtir outros efeitos educativos, secundários, de prevenção especial ou geral, melhor ainda. Todavia, não quer dizer que não surtindo estes outros efeitos educativos não estaria alcançando seus fins.

Não é com a pena que se irá educar aquele que durante mais de dezoito anos de convivência social não conseguiu se autodeterminar para a vida ordeira.

Agregada a idéia de retribuição, não como finalidade primeira, segue a idéia de estímulo a que o criminoso se autodetermine em conformidade com os padrões vigentes de conduta social. Assim, a prevenção especial é secundária e não deve integrar, na essência, os fins da pena.

A prevenção geral é apenas uma ambição remota.

A autodeterminação é da essência do ser humano. No mais das vezes a pena não serve de contra-estímulo ao criminoso que a recebe, até porque ao se autodeterminar para o crime já conhece a existência da possibilidade de punição, e até a possibilidade de ser morto em eventual reação da parte ofendida, de terceiros ou policiais, e mesmo assim não se demove de seu desiderato. Por óbvio, servirá menos ainda a outro qualquer criminoso potencial. A parcela ordeira da sociedade, distante da realidade criminosa, ínfimo ou mesmo nenhum reflexo sofrerá da apenação imposta a outrem, na sua particular formação e personalidade. Um homem de bem não deixa de cometer crimes porque um certo e determinado criminoso fora condenado. Fosse o inverso, campeando a impunidade, toda a sociedade ordeira se voltaria para a prática de crimes os mais variados, e não é isso que ocorre.

Após avaliadas as diversas teorias e doutrinas que acima se expuseram, a conclusão a que chegamos é no sentido de que o fim da pena é a retribuição.


NOTAS

1.HART, Herbert. L. A. O conceito de direito. 2. ed. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian, 1994. p. 18.

2.RáO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. São Paulo : Ed. RT, 1997. p. 48-49.

3.LISZT, Franz von, Tratado de derecho penal. Madrid : Reus, 1927. p. 2.

4."Alternativas para o direito penal e o princípio da intervenção mínima". RT 757/402.

5.SAUER,Guilhermo. Derecho penal - Parte general. Barcelona : Bosch. 1956. p. 7.

6.WELZEL, Hans. Derecho penal alemán. 4. ed. Santiago : Editorial Jurídica de Chile, 1997. p. 1.

7.WESSELS, Johannes. Direito penal - Parte geral. Trad. Juarez Tavarez. Porto Alegre : Fabris, 1976. p. 3.

8.Op. cit., p. 5.

9.DOTTI, René Ariel. Bases e alternativas para o sistema de penas. 2. ed. São Paulo : Ed. RT, 1998. p. 31.

10.MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Fundamentos da pena. São Paulo : Juarez de Oliveira, 2000. p. 2.

11.FROMM, Erich. Anatomia de destrutividade humana. Trad. Marco Aurélio de Moura Matos. Rio de Janeiro : Zahar, 1975. p. 366. Apud MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Fundamentos da pena. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2000. p. 3.

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12.GOULART, Henny. Penologia I. 1. ed. São Paulo : Editora Brasileira de Direito, 1975. p. 25.

13.Op. cit., p. 31.

14.Op. cit., p. 27.

15.CARRARA, Francesco. Programa de Derecho Criminal, Parte general, Bogotá, Temis, vol. II, § 601, p. 44-47

16.LYRA, Roberto. Novíssimas escolas penais. Rio de Janeiro : Borsoi, 1956. p. 6.

17.Op. cit., § 584, p. 34.

18.Op. cit., § 610, p. 62.

19.ARAGÃO, Antonio Moniz Sodré de. As três escolas penais. Rio de Janeiro : Freitas Bastos, 1938. p. 263.

20.CATTANEO, Mario A. Francesco Carrara e la filosofia del diritto penale, Torino, G. Giappichelli, 1988, p. 105

21.LYRA, Roberto. Expressão mais simples do direito penal. Rio de Janeiro : Ed. Rio, 1976. p. 28.

22.CALÓN, Cuello. La moderna penología. Barcelona : Bosch, 1958. t. 1/26. Apud JESUS, Damásio E. de. O novo sistema penal. São Paulo : Saraiva, 1977. p. 34.

23.JESUS, Damásio E. de. O novo sistema penal. São Paulo : Saraiva, 1977. p. 34.

24.PIMENTEL, Manoel Pedro. "Ensaio sobre a pena". RT 732/769-778, out. 1996.

25.BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de direito penal. São Paulo : Saraiva, 1999. p. 99.

26.SAUER, Guilhermo. Derecho penal - Parte general. Barcelona : Bosch, 1956. p. 18.

27.ASHTON, Peter Walter. "As principais teorias de direito penal, seus proponentes e seu desenvolvimento na Alemanha", RT 742/444.

28.BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão – Causas e alternativas. São Paulo: Ed. RT, 1993. p. 103.

29.Idem, ibidem.

30.SCHECAIRA, Sérgio Salomão; CORRêA JUNIOR, Alceu. Pena e Constituição. São Paulo : Ed. RT, 1995. p. 99.

31.ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de direito penal. Lisboa : Vega, 1986. p. 19-20.

32.SCHECAIRA, Sérgio Salomão; CORRêA JUNIOR, Alceu. Op. cit., p. 100.

33.BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão – Causas e alternativas. São Paulo : Ed. RT, 1993. p. 115.

34.Op. cit., p. 22-23.

35.HUNGRIA, Nélson. Novas questões jurídico-penais. Rio de Janeiro : Jacintho, 1940. p. 132.

36.SAUER, Guilhermo. Op. cit., p. 56.

37.BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de direito penal - Parte geral. São Paulo : Ed. RT, 1999. p. 112.

38.MIR PUIG, Santiago. Introducción a las bases del derecho penal. Barcelona : Bosch, 1976. p. 70.

39.MAURACH, Reinhart. Derecho penal - Parte general. Buenos Aires : Astrea, 1995. p. 761.

40.MIR PUIG, Santiago. Función de la pena y teoría del delito en el Estado Democrático de Derecho. Barcelona : Bosch, 1982. p. 70.

41.Op. cit., p. 21.

42.Op. cit., p. 100.

43.MORSELLI, Élio. "A função da pena à luz da moderna criminologia". IBCCrim 19/45-46. São Paulo, Ed. RT, ano 5, jul./set. 1997.

44.BETTIOL, Giuseppe. Direito penal. Trad. Paulo José da Costa Jr. e Alberto Silva Franco. São Paulo : Ed. RT, 1976. v. III. p. 102.

45.CORREA, Eduardo Direito criminal. Coimbra : Almedina, 1999. p. 65-66.

46.BARROS, Marco Antonio de. "Abalos à dignidade do Direito Penal". RT 747/489.

47.PIMENTEL, Manoel Pedro. O Crime e a pena na atualidade. São Paulo : Ed. RT, 1983. p. 158.

48.BARROS, Marco Antonio de. "Abalos à dignidade do direito penal". RT 747/492.

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Sobre os autores
Bruno Marcon

acadêmico de Direito na Universidade Paulista

Renato Marcão

Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Mestre em Direito. Professor convidado no curso de Pós-Graduação em Ciências Criminais da Rede Luiz Flávio Gomes. Membro da Association Internationale de Droit Pénal (AIDP), do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), do Instituto de Ciências Penais (ICP) e do Instituto Brasileiro de Execução Penal (IBEP). Autor dos livros: Tóxicos (Saraiva); Curso de Execução Penal (Saraiva); Estatuto do Desarmamento (Saraiva); Crimes de Trânsito (Saraiva); Crimes Ambientais (Saraiva); Crimes contra a Dignidade Sexual (Saraiva); Prisões Cautelares, Liberdade Provisória e Medidas Cautelares Restritivas (Saraiva); dentre outros.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARCON, Bruno ; MARCÃO, Renato. Rediscutindo os fins da pena. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 54, 1 fev. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2661. Acesso em: 18 abr. 2024.

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