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Como um cão!

16/02/2014 às 16:22
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Partindo de uma passagem do livro O Processo, de Franz Kafka, o autor debate a justiça no Processo Penal e suas sutilezas para quem a opera.

Em uma das passagens do livro O processo, de Franz Kafka[i], em que retrata a visita ao pintor (ateliê), muitas coisas vêm à mente, ou simplesmente se faz uma leitura literal.

No entanto, uma reflexão sobre justiça torna-se, a meu ver, pertinente, ilustrada com algumas citações do texto. A começar pelo arremate, quando K. reflete que “parecia ser uma regra básica do comportamento de um acusado estar sempre preparado, não se deixar nunca colher de surpresa, não olhar desprevenidamente para direita quando o juiz estava à esquerda, ao seu lado”.

O Processo Penal, sem dúvidas, é um caminho sombrio e solitário para o réu. Por isso, quando não respeita suas regras, facilmente se perde e se transforma em um objeto de uso. Mas, principalmente, se perde por não reconhecer a existência de certas garantias. Como? Ora, “Há muitas sutilezas em que a justiça se perde! Sempre termina por descobrir um grande delito onde de modo algum o havia.” Foi Kafka quem narrou que deveria ser um equivoco, uma calúnia... mas ao processo K. foi chamado, de nada importava seus dizeres, e quando a faca ardeu nele, que era acusado, esbravejou contra o sistema, que lhe põe longe do juiz que não se vê, e distante um alto Tribunal a que não se consegue chegar. A sutileza pela qual se perde a justiça, não tem graça e nem leveza.

Mas, para poucos, talvez alguém se permita chegar ao ouvido “— O senhor quer comprar quadros ou pintar o seu retrato?”.

Quem é esse que pode reger o destino de um processo (pintar ou vender quadros)? Por certo alguém influente, pintor da Justiça. “— Ah, sim! agora eu a reconheço — exclamou K. —; aqui está a venda sobre os olhos, e aqui a balança. Mas não são asas essas que se vêm nos calcanhares? E não está representada em atitude de corrida?”

Justiça, o que é isso. De que forma deve ser retratada. Qual é a justiça que se espera, que se vê e que se faz? Bom, “disse o pintor —, encarregaram-me de pintá-la assim. Para dizer a verdade, trata-se da justiça e da deusa da vitória em uma só imagem”. Seria a justiça uma busca pela vitória? De quem, e para quem?

A justiça, de maneira alguma busca uma vitória, pois é, contrario sensu, feita sem necessidade de vencer ou perder. Na verdade, uma das partes pode ter um espírito de sair vencedor ou perdedor, mas à justiça não cabe tal comiseração. É dizer, ao processo não se espera a vitória de ninguém, mas somente que sejam respeitadas as suas regras, princípios e garantias. Por certo que há um equívoco do que seja justo. “— O que não forma nenhuma boa combinação — observou K., sorrindo. — A justiça tem de estar quieta porque do contrário a balança vacila, com o que se torna impossível um juízo exato”.

Mas todos somente fazem o que creem que deva ser feito, irracionais, como operários, trabalham naquilo ao que são encarregados. Não lhes cabe refletir ou contrariar. Mesmo que a figura pintada não seja conforme a realidade, a verdade para o pintor é aquela que se busca, e não aquela que se vê. Isto, pois, muitos pintores (julgadores), nem sempre veem o que há na realidade, e se perdem nas sutilezas de que existe uma possível vitória do justo.

“— Fiz assim atendendo aos desejos do juiz — explicou o pintor —; oferecê-lo-á a uma senhora.”

Todavia, o que se está focando? Se não lhes é permitido observar o que deve ser pintado, impondo-se retratos criados ao léu daquele que encomenda a pintura, possível se faz questionar que justo, não é sinônimo desta justiça. Ora, pois, “Em troca, ao redor da figura da justiça tudo era de tonalidades claras e delicadas, em meio das quais a figura se destacava fortemente; já nem sequer recordava a deusa da justiça muito menos a da vitória. Antes parecia agora a deusa da caça.”

Por isso, Kafka é bravo quando reconhece que para justiça o quadro é o pedido que lhe é feito, e não o que se julga. “— Sem dúvida, você conhece a justiça melhor do que eu; dela não sei muito mais do que escutei falar a certas pessoas, além do mais de condição muito diversa. Mas todos estão de acordo em que a acusação mais insignificante não fica anulada sem mais nem menos, senão que a justiça, uma vez que formulou a acusação, está firmemente convencida da culpabilidade do acusado e em que dificilmente se pode alterar tal convicção”.

Então, a acusação se desvela como a verdade a ser pintada, a obra a ser vendida, o destino já traçado, e cabe ao réu ser caçado, não pelo justo, nem mais pela vitória, mas por esta justiça. “— Nunca a justiça abandona tal convicção. Se eu pintasse aqui sobre uma tela todos os juízes reunidos, e você se defendesse diante dessa tela, não alcançaria melhor resultado do que frente à justiça real.”

Melhor não seria o desfecho: “como um cão – disse K.”, pois não se reservam direitos, voz, ou se respeitam regras. Aquele que é acusado existe e sente dor, mas como um cão, seu destino fica nas mãos dos outros, não lhe cabe esperar modificar o quadro que lhe foi encomendado. “— Não valem as provas que são apresentadas diante dos tribunais — replicou o pintor, elevando o dedo indicador como se pretendesse fazer notar a K. uma sutil diferença. — Coisa muito diferente, em troca, é o que acontece quando se tramita algo às costas da própria justiça, por exemplo na sala de deliberações, nos corredores ou mesmo aqui, em meu estúdio”.

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Nota

[i] KAFKA, Franz. O Processo. Trad. e posfácio de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

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Sobre o autor
Frederico Cattani

* Sócio da Frederico Cattani Advocacia, que atua com foco no Direito Penal Econômico e Crimes Financeiros * Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS (Porto Alegre, RS) * Especialista em Direito Empresarial pela FSG (Caxias do Sul, RS) * Professor de Graduação e Pós-Graduação

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CATTANI, Frederico. Como um cão!. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3882, 16 fev. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26690. Acesso em: 28 mar. 2024.

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