O Estado Penal tem por maior força e clara característica a criminalização das relações sociais. Este é o caso da Lei de Organização Criminosa e que logo em seu artigo primeiro, inciso um, traz o tipo penal:
Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional.
O texto não tem o objetivo debater a lei em si, mas sim este direcionamento do atual Estado de Direito em direção à crescente criminalização das relações sociais e, em suma, quer dizer que na incapacidade de enfrentar os mais graves problemas sociais, ambientais, coletivos, o Estado age por meio da mera edição de nova tipologia penal.
Como é absolutamente incapaz de debelar as graves contradições do capitalismo que se espraiam por toda sorte de esquizofrenia social, (re)produzindo anomias sociais e jurídicas, o atual Estado de Direito só conhece o caminho mais curto da promulgação de leis penais cada vez mais severas: da corrupção como crime hediondo ao projeto do Senado para uma Lei Antiterrorismo. Esta última, aliás, deverá ter o processo de promulgação acelerado.
Não vemos, por exemplo, o mesmo empenho em punir os gestores, parlamentares ou juízes e desembargadores que se negam – por qualquer motivação – a efetivar a Justiça Social. Por que se faz varredura nos casebres de morros, como se todos os moradores fossem criminosos associados ao variado ramo do tráfico, mas nem se supõe bater às portas dos palácios residenciais que acobertam “adolescentes insatisfeitos e associados para o crime”?
A própria corrupção pública – na verdade um fato social/cultural endêmico, com vias de pandemia – não recebe um tratamento eficaz, porque não se rastreia o capital escuso. O próprio capital escuso se imiscui às atividades chamadas lícitas de exploração da força de trabalho. O que há de licitude ou de ética nos ganhos do sistema financeiro? Os bancos e financeiras praticam margens superiores em expropriação, comparativamente à agiotagem definida nas ruas como criminosa.
Ainda que em épocas diferentes e por razões políticas diversas – o PCC e o CV foram criados pelo Estado nacional, em resposta às mais torturantes formas de restrição da dignidade nos presídios brasileiros. Hoje, associados como conglomerado, espalham-se pela América do Sul, mas o que foi feito em termos de responsabilização de seus verdadeiros gestores, que são as autoridades públicas?
O desmatamento na Amazônia é associado a vários grupos criminosos, contudo, o Estado esbarra nas burguesias locais/estaduais e o crime ambiental não é apurado. Este mesmo capital, muitas vezes, financia as elites políticas, e estas em seguida se ocupam do Estado.
O trabalho escravo ou em condições análogas à escravidão é visto a olhos vivos no Norte/Nordeste, mas também em São Paulo, inclusive construindo obras públicas. A exploração e o abuso sexual infantil também são praticados por autoridades públicas que deveriam preservar suas vidas, e o que se faz com essas “caixas pretas”? Por que há tanta reserva ou medo em se falar – quiçá investigar – a corrupção do Poder Judiciário e do Ministério Público?
Será que a criação jurídica de mais crimes sociais irá modificar a realidade que nos mastiga diariamente? Só os ingênuos e os oportunistas creditam à lei uma capacidade de modificar a realidade.
Infelizmente, do passado da ditadura, mantemos a mentalidade brutal em que os casos de política se convertem em casos de polícia.