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A incolumidade moral do indiciado, em virtude do princípio constitucional da inocência presumida

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01/02/2002 às 01:00
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5 PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA INOCÊNCIA PRESUMIDA

Conjugando a natureza do Inquérito Policial e a situação do indiciado, que deve ter preservado seus direitos fundamentais, temos o quadro formado para a análise do princípio constitucional da inocência presumida, este que deve garantir a proteção da moral do investigado.

O surgimento do princípio da presunção de inocência pode ser verificado na Roma Antiga, onde existia a "innocens praesumitur cujus nocentia non probatur", vindo este princípio aparecer efetivamente mais tarde, como princípio do in dubio pro reo e do favor rei.

Estas expressões foram utilizadas pelos sistemas jurídicos posteriores, encontrando-se referência a esta presunção, inclusive na Magna Carta, de 1250, e E, igualmente, no Act of Habeas corpus, de 1679, e em 1681, no Bill of Rights.

Com a Revolução Liberal do século XVIII e os "processos reformados" do século XIX, em reação às conseqüências do sistema inquisitório, adquire relevo o princípio da presunção de inocência.

A partir do século XIX, por influência da Escola Clássica, a presunção de inocência passou a dogma fundamental do direito repressivo.

Entre os principais autores que se preocuparam em analisar esse princípio como forma das arbitrariedades do Estado, Beccaria[20] trouxe uma grande contribuição, dizendo que "um uomo non può chiamarsi reo prima della sentenza del giudice né la societá può toglieri la pubblica protezione se non quando sai deciso che egli abbia violado i patti, com quagli gli fu accordata".

Igualmente, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 em seu artigo 11 dispõe: "Toda pessoa acusada de um delito tem o direito de ser presumidamente inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua de defesa".

Também a Convenção Européia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, bem como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, introduziram dispositivos semelhantes.

A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), subscrita pelo Brasil, adotou o princípio de que: "toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência até que não se comprove legalmente sua culpa".

Várias críticas surgiram ao referido princípio, entretanto, atualmente, o princípio é acolhido por todos os Estados Democráticos.

Antes da promulgação da Constituição de 88, não existia em nosso ordenamento a presunção da inocência como direito fundamental. A questão era tratada pela doutrina e pela jurisprudência no princípio do in dubio pro reo, acolhido pelo Código de Processo Penal no artigo 386, inciso V.

Pela primeira vez no direito pátrio, a presunção de inocência passa a ter status constitucional. Uma vez consagrada constitucionalmente, converte-se em um direito fundamental que, no direito brasileiro, é de aplicação imediata.

Sua importância é tamanha que para seu reconhecimento prescindiria de previsão legal.

Entre nós foi consagrado no artigo 5° , inciso LVII, da Constituição Federal de 1.988: "Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória".

Assim, a Constituição Federal consagra a presunção de inocência como um dos princípios basilares do Estado de Direito como garantia processual penal, visando à tutela da liberdade pessoal.

Dessa forma, há a necessidade do Estado comprovar a culpabilidade do indivíduo, que é constitucionalmente presumido inocente, sob pena de voltarmos ao total arbítrio do estatal.

Então, o referido princípio é uma garantia atribuída ao cidadão de ver respeitada sua liberdade e não sofrer qualquer medida constritiva de liberdade, a não ser nos casos estritamente necessários ditados por evidente cautela.

Ligado de forma íntima à presunção da inocência, quase com ela se confundindo, está o princípio do in dubio pro reo, significando que após o devido processo legal, a prova colhida na instrução criminal, insuficiente para a formação plena da culpabilidade do acusado. Pelo que, deve esse ser declarado inocente, através de uma sentença absolutória, não bastando o arquivamento do feito, visto que é direito fundamental do indivíduo, o estado de inocência, ou seja, o Estado tem o dever de fazer cessar qualquer dúvida que paire sobre o indivíduo, em relação ao fato investigado.

Então, tal princípio tem incidência processual e extra judicial, enquanto o in dubio pro reo somente incidirá processualmente.

A falta de certeza, que é o denominador comum entre os dois princípios, representa a impossibilidade do Estado tratar como culpado aquele contra quem inexiste sentença penal condenatória definitiva.

O Doutrinador Antônio Magalhães Gomes Filho[21] assevera que sob determinados prismas confunde-se "o princípio da presunção da inocência com o in dubio pro reo, que é postulado comum a todos os sistemas processuais", ao passo que sob outro aspecto o princípio da presunção de inocência expressaria "outras garantias fundamentais no âmbito do direito probatório".

Conforme doutrina de Alexandre Moraes[22]: "Pode-se concluir no sentido de que a previsão do in dubio pro reo é um dos instrumentos processuais previstos para a garantia de um princípio maior, que é o princípio da inocência".

Disso se extrai que o âmbito da presunção não se limita à disciplina probatória. O princípio da presunção da inocência parte do devido processo legal, mas se irradia por todo o sistema da intervenção estatal de natureza penal sobre uma pessoa. Daí alcança, também, a investigação do cidadão e o tratamento a ele dispensado em toda a trajetória que visa, no final, à aplicação ou não de uma pena.

Assim, constitui o princípio informador de todo o processo penal, fundamentalmente relacionado com os valores inerentes à dignidade da pessoa humana, deve servir de pressuposto e parâmetro de todas as atividades estatais referentes à repressão criminal.

Como assevera Fernando Luiz Ximenes Rocha[23]: "A presunção da inocência não só é válida para os termos do processo, como também para os trâmites do inquérito policial, pois se não há qualquer indício de autoria do delito pelo indivíduo, não há como fundamentar-se juridicamente um decreto de prisão, a não ser que o texto constitucional seja relegado a terceiro plano em nome do arbítrio".

Uma demonstração clara de plena absorção deste princípio, foi revelada no anteprojeto do Código de Processo Penal, sobre a investigação policial, preocupado com a questão teminológica, substitui o termo "indiciamento" pela atribuição formal de "status" de suspeito ao investigado, para que a partir daí, após a reunião de elementos informativos tidos como suficientes pela autoridade policial, lhe se sejam asseguradas as garantias constitucionais.

É importante salientar, que não se pode levar à máxima, a interpretação do dispositivo, pois poderia acontecer de serem passíveis de Ações Declaratória de Inconstitucionalidade, as Medidas Cautelares e Investigatórias em desfavor de um indiciado, além de ocorrer proibição de suspeitar-se da culpabilidade de certa pessoa, pois o Poder Público tem por obrigação investigar o fato, para desvendar o ocorrido, identificar, localizar, e formalizar a acusação contra o suspeito, não sendo possível, a este mesmo suspeito, através da presunção do estado de inocência, postular o impedimento do Estado, face o mesmo poder desconfiar de sua inculpabilidade.

Embora alguém só possa ser tido por culpado no término de um processo, o fato é que, para que o poder investigatório do Estado se exerça, é necessário que ela recaia mais acentuadamente sobre certas pessoas, vale dizer, sobre aquelas que vão mostrando seu envolvimento com o fato apurado.

Daí surge uma suspeição que obviamente não pode ser ilidida por medida judicial requerida pelo suspeito, com fundamento na sua presunção de inocência. Esta não pode, portanto, impedir que o Poder Público cumpra sua tarefa, qual seja, a de investigar, desvendar o ocorrido, identificar o culpado e formalizar a acusação.

É fato incontroverso que não mais se admite qualquer espécie de prisão automática (salvo flagrante), exigindo-se para tanto uma decisão fundamentada da autoridade judicial.

Diversamente, porém, o lançamento do nome do acusado no rol dos culpados viola o princípio constitucional proclamado pelo art. 5°, inc. LVII, da Carta Política, consagra, pois em nosso sistema jurídico a presunção juris tantum de não-culpabilidade daqueles que figurem como réus nos processos penais condenatórios.


6 CONSEQÜÊNCIAS DAS OFENSAS À MORAL DO INDICIADO

Por tudo o que foi dito, o inquérito se for realizado de maneira errada, somada a intervenção da mídia, pode causar danos às pessoas, objetos da investigação policial, pois com a veiculação de notícias sobre o suposto crime ou suposta participação daquela pessoa, muitas vezes com a divulgação de sua imagem, esta terá prejuízos, tanto materiais como profissionais e morais.

Não raro são veiculados nos meios de comunicação, principalmente nos programas sensacionalistas, a imagem das pessoas, supostamente autoras de condutas delituosas. Essas pessoas têm uma vida, um convívio social, a honra, esta entendida não apenas no sentido social, o bom nome e a boa fama, como o sentimento íntimo, consciência da própria dignidade pessoal.

Assim sendo, a divulgação de matéria, que envolva o nome e/ou a imagem, de um suspeito, sem que esse tenha sequer autorizado, influi no conceito de sua pessoa junto aos seus amigos e parentes, colegas de trabalho, é sem dúvida, ato que deva gerar imediata responsabilidade civil e penal.

Como assevera Edilsom Pereira de Farias, [24]: "... fotografar ou filmar pessoas detidas ou suspeitas de perpetrarem infrações à lei, sem o consentimento das mesmas, além de constituir violação do direito à imagem daquelas pessoas, expõe ainda à execração pública cidadãos que geralmente não foram julgados e condenados por sentença transitada em julgada, sendo, pois, presumivelmente inocentes (CF, art. 5°, LVII)".

Como já mencionado quando tratado o assunto do sigilo, quando trazido a baila os ensinamentos do Doutrinador Fernando da Costa Tourinho Filho, há situações em que o interesse público prevalece, quando realizada a divulgação de fotografias de pessoas autoras de crimes, que se evadem do distrito da culpa, antes ou depois da condenação, sendo necessária tal divulgação, objetivando a prisão provisória ou definitiva, sempre com base em mandado de prisão, decorrente de ordem fundamentada da autoridade judiciária, revelando nesta o interesse público.

Conforme observa Guilherme de Souza Nucci[25]: "Ao arrepio das garantias mínimas de autodefesa e do direito ao silêncio, esses jornalistas enriquecem à custa da ignorância do povo, da ânsia de vingança, consciente ou não, que muitos carregam consigo diante da criminalidade crescente – fenômeno peculiar ao ser humano. Assim, tão logo ficam sabendo da ocorrência de uma prisão – quando não acompanham a atividade policial, relatando e filmando todos os passos, tal como se fosse um seriado barato –, seguem para o distrito e passam a entrevistar o detido, com agressividade e prejulgamentos ímpares, buscando extrair dele a "confissão". Insistem, fazem perguntas capciosas, chegam a ofender o suspeito, contam com a complacência de muitos maus policiais e, enfim, por uma razão ou por outra, acabam conseguindo arrancar do indivíduo uma admissão de culpa, que é gravada e transmitida em rede nacional para todo o país".

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A manifestação do pensamento é livre e garantida em nível constitucional, não aludindo a censura prévia em diversões e espetáculos públicos. Os abusos, porventura ocorridos no exercício indevido da manifestação do pensamento, são passíveis de exame e apreciação pelo Poder Judiciário com a conseqüente responsabilidade civil e penal de seus autores, decorrentes inclusive de publicações injuriosas na imprensa, que deve exercer vigilância e controle da matéria que divulga.

6.1RESPONSABILIZAÇÃO CRIMINAL

No contexto da investigação policial, no cartório de uma Delegacia de Polícia, prevalece a idéia de que o ambiente é de acesso limitado, principalmente pela característica de procedimento sigiloso que é o Inquérito Policial. Ali só tem acesso, quem recebe autorização do Delegado de Polícia, por isso a gravação de imagens é ação proibida, pelos próprios preceitos conceituais e legais do Direito Processual Penal, se há autorização neste sentido, poderá haver responsabilização do gerente inquisitorial, através da Lei de Abuso de Poder.

Nesse sentido, vêm-se adotando várias medidas para coibir a violação do direito à própria imagem das pessoas envolvidas com transgressões à lei, por exemplo, a Secretaria de Justiça e da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro expediu resolução proibindo que as pessoas presas em flagrante ou suspeitas de praticar ato delituoso fossem fotografadas ou filmadas contra a vontade das mesmas. Igualmente, o governo do Estado do Paraná elaborou o Decreto n.° 465, de 11 de junho de 1992. Em São Paulo, a Corregedoria dos Presídios e da Polícia Judiciária de Santos, em Portaria de n.° 3/92, determina que os presos só poderão ser entrevistados ou apresentados à imprensa com autorização prévia de um juiz daquela Corregedoria. O Estado de Santa Catarina optou pela elaboração da Lei n.° 4596, de 29 de novembro de 1991, que proíbe a exposição compulsória de indiciados autuados em flagrante delito ou presos provisórios por ordem judicial sem a anuência dos mesmos. O Estado do Piauí também aprovou lei, que estabelece essencialmente o seguinte: "Art. 1° - Os indiciados autuados em flagrante delito ou presos provisoriamente por ordem judicial em qualquer unidade de polícia judiciária não poderão ser constrangidos a participar ativa ou passivamente de ato de divulgação de informações aos meios de comunicação social, vedada especialmente sua exposição compulsória a fotografia ou a filmagem. Art. 2° - A autoridade competente da respectiva Unidade de Polícia Judiciária providenciará, tanto quanto o consinta a lei, para que a informação sobre a vida e a intimidade de vítimas e testemunhas sejam mantidas sob reserva e adotará medidas objetivando a que, no recinto da unidade ou durante a prática de ato procedimental, a imagem de vítimas e testemunhas sejam preservadas. Art. 3° - Nenhuma restrição se oporá às iniciativas de acesso à informação por parte dos profissionais da imprensa, salvo as hipóteses legais ou regulamentares de sigilo – que devem ser rigorosamente observadas – e os casos de conveniência da investigação".

O já citado Doutrinador Edilsom Pereira de Farias[26] escreve sobre o tratamento da autoridade que preside quando ocorre abuso no inquérito: "Ademais, quando a imagem de pessoas envolvidas com a prática de delitos for violada com o concurso de autoridade pública, estar-se-á diante de caso de abuso de autoridade. O art. 4°, alínea "b" da Lei n° 4898, de 9 de dezembro de 1965, que regula o direito de representação e o processo de responsabilidade administrativas, civil e penal, nos casos de abuso de autoridade, diz que constitui abuso de autoridade "submeter pessoas sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei". Assim, a autoridade policial, v.g., que efetuar a prisão não deve permitir que o preso (que está sob sua custódia) seja fotografado ou filmado contra a vontade do mesmo, sob pena de abuso de autoridade."

Então, os agentes policiais que realizarem tais agressões a integridade moral do indiciado, comete ato de abuso de autoridade, descrito no artigo 4°, alínea b da Lei n.° 4.898, de 9-12-65. Segundo o mesmo texto legislativo, em seu artigo 6°, tal ato sujeita o seu autor à sanção administrativa, civil e penal. No âmbito criminal, respondem pelo delito definido no artigo 350, inciso III do Código Penal[27], com pena de detenção que varia de 1 (um) mês a 1 (um) ano.

A responsabilização penal se opera de forma diferenciada para os jornalistas que participam do linchamento moral do suspeito.

O jornalismo investigativo e a denúncia fundamentada têm a blindagem da seriedade e da verdade. Se o meio de comunicação apurou e investigou antes de publicar, combaterá quem processá-lo. Se mentiu, distorceu, inventou, caluniou, difamou ou injuriou, impôs dolosamente danos morais e materiais a alguém, deve temer o embate no tribunal. Numa democracia não existe "delito de opinião", existe calúnia, difamação, injúria e outras práticas delituosas, punidas pelos tribunais muito antes de surgir o primeiro jornal.

Cabe salientar, que o jornalista ao cometer estes crimes contra a honra não estará sujeito as penas determinadas nos artigos 138, 139 e 140 do Código Penal, e sim, nos termos dos artigos 20, 21 e 22 da Lei n° 5250, de 9-2-1967, que, salvo no crime de difamação, prevê penas mais severas.

No que tange a punição dos causadores deste tipo de dano, ou seja, da calúnia, escreve Cesare Beccaria[28]: "Contudo, todo governo, seja republicano ou monárquico, deve aplicar ao que calunia a pena que infligiria ao acusado se fosse culpado".

Assim, não existe qualquer dúvida de que a divulgação de fotos, imagens ou notícias apelativas, injuriosas, desnecessárias para a informação objetiva e de interesse público que acarretem injustificado dano à dignidade humana autoriza a responsabilização penal.

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Sobre a autora
Raquel Costa de Souza

acadêmica da Faculdade de Direito de Curitiba

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Raquel Costa. A incolumidade moral do indiciado, em virtude do princípio constitucional da inocência presumida. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 54, 1 fev. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2678. Acesso em: 26 abr. 2024.

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