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Considerações sobre a doutrina do dolus generalis e dos desvios causais

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07/03/2014 às 13:03
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3.Próprio entendimento

3.1.As premissas

Segundo defende este escrito, a solução deste tipo de problema deve partir de algumas premissas:

3.1.1 Rejeição do plano do autor como critério referencial.

É preciso considerar a realidade dos fatos, isto é, orientar-se de acordo com uma visão concreta e objetiva. Em primeiro lugar, porque o subjetivismo do critério jungido ao plano do autor teria, se levado a cabo de forma coerente, necessariamente, repercussões desastrosas no aumento do âmbito da punibilidade em outras temáticas, como a do crime impossível. Em segundo lugar, derivar uma solução subjetivista do atual ordenamento jurídico-penal demandaria um artificial esforço interpretativo, uma vez que o ordenamento não faz menções explícitas acerca de eventual referencial subjetivo no âmbito da tentativa ou do crime impossível. Pelo contrário, o referencial tende a ser objetivo, nada obstante possíveis opiniões divergentes.Em terceiro lugar, é de se abandonar o referencial do plano do autor porque o Direito Penal deve estar ligado à realidade, sob pena de retirar-se do réu a possibilidade de refutação empírica do fato[29] que lhe é imputado e, também, para evitar perplexidades, não raro, geradas pelo puro normativismo.Em quarto lugar, a prova do plano do autor é algo deveras complexo, permitindo, não raro, presunções indevidas por parte do Judiciário. Além disto, o referencial do plano do autor, caso adotado, faz a resposta penal depender do subjetivismo do autor, em última instância. Não se deve punir a intenção, mas sim o fato concreto.

3.1.2        O dolo, sua presença ao longo de toda a execução do tipo de delito e o conceito de conduta para fins penais.

É preciso considerar que o dolo deve estar presente durante todo o desdobramento da conduta, sua execução, bem como deve visar ao resultado pretendido. Mais do que isto, é preciso considerar que o dolo só existe enquanto relacionado a um tipo penal específico como corolário de um conceito dogmático-penal de conduta. Conforme defende este trabalho, conduta é toda atividade (operação), impulsionada pela vontade, de determinação seletiva realizada por um sujeito, atividade esta consistente na atualização de uma possibilidade no mundo da vida. Tal atualização de possibilidades exprime uma determinação seletiva, que não só encerra certo valor ou desvalor, mas também encerra um resultado verificável. A noção de resultado aqui quer significar, justamente, uma determinação seletiva operada pelo sujeito no mundo da vida, determinação esta que deve corresponder a algum tipo penal específico.Consoante restará claro em linhas posteriores, a conduta penalmente relevante deve estar ligada a um tipo penal específico, que exprime um determinado resultado. Não é possível falar em uma espécie de dolo geral apenas levando-se em conta uma intenção primeira do agente que pode, afinal, sequer ter se consumado no plano dos fatos. O sujeito que atira na vítima e, na suposição de que esta já morreu, arremessa seu corpo de um penhasco, não pratica uma única conduta, mas, a rigor, duas condutas[30]. O dolo da segunda conduta ou segunda parte do fenômeno já não é mais um dolo de matar. Isto, contudo, conforme se verá, não releva tanto para afirmar o homicídio consumado ou a tentativa.

3.2.3. Âmbito da imputação objetiva

É preciso examinar se o primeiro ato do agressor é, por si só, idôneo a levar a vítima à morte, ainda que com uma sobrevida rarefeita, na esteira do que apregoa Schroeder, como se verá.Consoante exposto no fim do último tópico, a imputação ou não do resultado nesses casos é algo a ser definido no âmbito de uma imputação objetiva, e não subjetiva. Trata-se de perquirir, destarte, os pressupostos do processo de imputação.

3.3              Casos de estudo

Para melhor visualização da solução proposta, vejamos alguns casos:

Caso I: “A”, com intuito de matar “B”, puxa o gatilho de seu revólver. O projétil, contudo, (i) sequer atinge a vítima, que desmaia de susto, apresentando sinais aparentes de morte, ou (ii) o projétil até atinge a vítima, mas em lugar não letal (por exemplo, o ombro ou a perna). A vítima, porém, com o impacto do tiro e a dor, desmaia, apresentando os mesmos sinais aparentes de morte. Tanto na primeira variação como na segunda, o autor dos disparos se convence da morte e procede à ocultação, enterrando a vítima, afogando-a ou mesmo arremessando-a de uma ribanceira.

O primeiro ato consiste claramente em uma tentativa de homicídio. O segundo ato é uma espécie bem peculiar de erro de tipo, que dá azo, no caso, a uma imputação por homicídio culposo, caso se considere que o erro na apreciação dos sinais de vida fosse vencível, ou mesmo a nenhuma imputação, se se considerar que o erro na apreciação dos sinais de vida fosse absolutamente invencível. No caso de restar um erro vencível, é ainda preciso verificar se o resultado era previsível ou não de acordo com a ação executada pelo agressor de acordo com um juízo baseado na experiência. O juízo de previsibilidade não pode ser orientado conforme o que o autor representava ou não como previsível, mas à luz de um juízo baseado na experiência e no estádio atual do conhecimento disponível. Ademais, apesar de poder soar estranho de início, há claramente a não observância de um dever legal de não ofender bens alheios que, em geral, a doutrina chama de inobservância de dever de cuidado, mas que, a rigor, deve ser entendida como não observância de um dever mais amplo de causar dano a terceiros. Quem pratica um crime doloso contra terceiros também age em desrespeito a este dever legal de evitar ofensas a terceiros. Apenas o faz de modo deliberado e intencional.

Caso II: Consideremos o mesmo exemplo acima, mas com a diferença de que o autor atira duas vezes, atingindo o crânio e o peito da vítima. Consideremos, ainda, que ao ser enterrada a vítima ainda estertorava, mas fatalmente morreria caso o agressor esperasse mais alguns parcos minutos ou mesmo segundos antes de proceder à ocultação. Neste caso em específico, haverá um homicídio doloso, pois o primeiro ato do agressor já é idôneo a provocar o resultado pretendido (a morte). Esta parece ser a posição de Schroeder: “Se a vítima já estava ferida mortalmente, então a aceleração da morte por meio do enterro ou imersão não pode excluir o dolo; tenha sido o primeiro ato, ao revés, não concretamente idôneo a gerar o resultado, então falta o dolo no fato”[31].

Naturalmente, em boa medida existe uma questão de prova neste ponto. No entanto, caso se confirme que os projéteis atravessaram o crânio e o coração da vítima, é correto dizer que o meio escolhido e concretizado pelo autor é objetivamente idôneo à consecução do resultado morte. Noutras palavras, o curso causal posto em marcha imaginado e concretizado pelo autor é objetivamente adequado, bem como pode ser imputado ao autor como obra (dolosa) sua. O autor pôs em marcha atuação suficiente para gerar o resultado visado logo no primeiro ato. Neste caso, responderá o autor por homicídio doloso consumado e ocultação de cadáver.

Caso III: Consideremos que o intento seja o mesmo dos exemplos acima, com a presente peculiaridade: o autor atira na vítima, mas os ferimentos não são, contudo, letais. A vítima ainda tem sobrevida razoável; poderá ser salva caso tenha auxílio médico. Não é o caso que ela vá morrer em alguns minutos. O autor põe a vítima em seu carro. Ele crê que ela esteja morta, mas ela está apenas desmaiada e ferida. O autor dirige o automóvel para um lago profundo, uma ribanceira ou para outro local ermo. No meio do caminho, porém, há colisão por culpa de um caminhão em alta velocidade na contramão. A vítima morre pelo traumatismo.

Neste caso, há claramente uma tentativa de homicídio, apenas. Não se pode imputar a morte ao autor. Poder-se-ia imputar a morte, contudo, caso o acidente estivesse no âmbito de uma atuação culposa do agressor. Tal daria azo à responsabilidade por tentativa de homicídio em concurso com homicídio culposo.


4. Considerações finais

Postas todas essas considerações, resta evidenciado que o problema das hipóteses fáticas tratadas é menos a solução do que o critério para se chegar a uma resposta. As soluções baseadas no plano do autor, no caráter direto ou eventual do dolo para afirmar a relevância do desvio do curso causal ou construídas a partir da doutrina do ‘dolo geral’ são, em verdade, um ranço de uma postura subjetivista da concepção do injusto penal. A rigor, a hipótese é um problema situado no âmbito do tipo objetivo.

A afirmação do delito consumado exige a concorrência do que a doutrina chama de desvalores da conduta e do resultado. A tentativa punível, conforme já salientamos noutro escrito[32], exige a afirmação do desvalor subjetivo e objetivo da conduta. O desvalor subjetivo da conduta do delito doloso consiste, basicamente, no dolo. Dolo é a vontade consciente atualizada no mundo dos fatos e juridicamente qualificada pela dirigibilidade à correspondência idônea com os elementos de um tipo objetivo específico.O desvalor objetivo da conduta, seja do crime doloso ou culposo é o mesmo: a idoneidade da conduta voluntária para, consoante um juízo de lesividade ex ante, baseado nos conhecimentos científicos disponíveis e na experiência, gerar um desvalor de resultado, consistente na ratificação do potencial lesivo afirmado ex ante e na lesão ao bem jurídico. Neste ponto, é ainda necessário um esclarecimento acerca das condições deste juízo. Ora, se o agressor atira no coração e no crânio da vítima, ainda que esta ainda ensaie as últimas respirações quando é enterrada pelo autor (o qual crê que a vítima já está morta), haverá um homicídio doloso consumado, desde que, é claro, a vítima venha efetivamente a morrer depois de enterrada. Ainda que o soterramento e as partículas sólidas que penetram em suas vias aéreas abreviem os segundos ou parcos minutos que lhe restavam, este ‘desvio causal’ é irrelevante. E por quê? Não por ocasião do teor direto ou eventual do dolo, mas porque a execução dos tiros já foi idônea a gerar um desvalor de resultado, isto é, a pôr em marcha um processo natural irreversível. Isto, porém, nada tem que ver com o plano do autor. A execução desta conduta, por si só, já é idônea a gerar um desvalor do resultado, por mais que a vítima tenha sido enterrada ainda viva.

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Por outro lado, se o autor do crime acerta um tiro em uma região não letal, mas a vítima cai e desmaia, apresentando até sinais verossímeis de morte aparente, e o autor procede à ocultação e, por conta do ato de enterrar a vítima, esta morre de asfixia, e não do tiro, então há claramente uma tentativa de homicídio doloso em concurso com o crime de homicídio culposo.

Fora os casos em que o resultado morte é uma questão de parcos minutos ou segundos antes de a vítima ser descartada, tal vontade consciente atualizada não logra correspondência total aos elementos objetivos do tipo específico de homicídio. Falta o resultado morte. A atuação fica presa à fase da tentativa, justamente porque a execução não foi idônea o suficiente para gerar a morte. Tampouco o segundo momento, em que a vítima ainda com vida é enterrada e morre por asfixia pode gerar uma punição por homicídio doloso. Afirma-se o dolo quando há correspondência entre a vontade do autor, fruto de sua representação da realidade, e a hipótese abstrata contida no tipo penal específico. Se o autor representa um cadáver onde há, em verdade, uma pessoa, esta correspondência inexiste. Este segundo ato, resguardadas as proporções, equivale ao exemplo do sujeito que, por odiar muito uma pessoa que, a seus olhos, já é um cadáver, atira inúmeras vezes contra o corpo desta. Em sua representação, o autor apenas descarrega os projéteis de sua pistola, por raiva, em um determinado corpo, cujas circunstâncias indicam ser um cadáver. Em verdade, contudo, o agente determina a morte da pessoa, que ainda vivia quando dos tiros. Se esta pessoa estendida no chão estiver repleta de feridas, sem pulso detectável e com outros sinais de morte aparente, não se poderá punir o agente por homicídio doloso, e tampouco culposo, se toda a situação for bastante verossímil, o autor dos disparos contra o que este imaginava ser um cadáver. Neste ponto vale o mesmo para o grupo de casos aqui desenvolvidos.

Destarte, o grupo de casos investigados, ainda que de modo não exaustivo, revela que soluções distintas podem e devem ter vez de acordo com as circunstâncias apresentadas. O presente estudo defende, à guisa de síntese, a importância da verificação: a) da idoneidade da execução atualizada pelo primeiro ato para que se possa apontar um homicídio consumado doloso ou a mera tentativa, a depender da idoneidade desde uma perspectiva objetiva da atuação para gerar o resultado típico, enquanto condição suficiente, independente de um ato ulterior; b) caso o primeiro ato não seja idôneo nos termos acima aduzidos, haverá, invariavelmente, ao menos, uma tentativa de homicídio, a qual pode ou não vir ao lado de um homicídio culposo, a depender da satisfação dos requisitos da própria estrutura típica culposa.


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Sobre o autor
Marco Antonio Santos Reis

Advogado. Professor. Mestre em Direito pela UERJ

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

REIS, Marco Antonio Santos. Considerações sobre a doutrina do dolus generalis e dos desvios causais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3901, 7 mar. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26854. Acesso em: 6 mai. 2024.

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