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Dois estudos de sociologia jurídica no Espírito Santo e sua atualidade

01/02/2002 às 01:00
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Apesar da dificuldade que representa o tentar uma definição para o que seja Sociologia Jurídica, não se pode afastar da constatação de que esta se deve ocupar, grosso modo, do estudo do Direito como fato social, ou seja, dos fenômenos jurídicos – valores, normas jurídicas integrados na estrutura social – e seu efeito sobre o grupo social ao qual se destinam ditas normas e sobre o qual estas atuam.

De alguma maneira apreendida unanimemente hoje a idéia de que o conhecimento do Direito pelo prisma da norma positivada pura e simples resta incompleto sem o conhecimento do grupo social que a cria – afinal, o Direito é um fato social – os próprios operadores do Direito, em maior ou menor grau, têm-se ocupado do estudo sociológico da comunidade sobre que atua a norma de que se utilizam no desempenho de suas funções. Com muito mais razão o Juiz de Direito, responsável pela aplicação da norma ao caso concreto, num trabalho de "pacificação" das relações sociais.

Nesta linha de pensamento é interessante resgatar dois trabalhos na área da Sociologia Jurídica elaborados por Juízes de Direito capixabas, que então atuavam no interior do Espírito Santo, e usaram como material para suas observações e reflexões as próprias comunidades em que atuavam. A constatação da grande diversidade cultural que ocorre na população do Espírito Santo (introduzindo-a como variável a ser juridicamente considerada) e o levantamento do papel do Juiz de Direito na redução de desigualdades pela aplicação indistinta de uma norma comum (positivada, que reflete os valores vigentes no grupo social dominante) foi o objeto dos dois estudos que hora pretendemos resgatar e que se apresentam de interesse não só da área de investigação específica, a Sociologia Jurídica, mas também no estudo da Geografia Humana e da Sociologia produzidas no Espírito Santo.


I – Os sub-grupos culturais

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Como se sabe no Espírito Santo a ocupação da terra e a exploração de atividades econômicas pelas levas de imigrantes europeus que começaram a chegar ao estado a partir de meados do século XIX resultou também na formação (e manutenção através do tempo) de sub-grupos culturais, formados por descendentes de alguns grupos desses imigrantes, não integrados à cultura nacional.

O fato da existência desses grupos populacionais diferenciados no território do estado e as conseqüências decorrentes deste fato não passa desapercebida aos Juízes de Direito que atuam junto às comunidades. Observa-se, mesmo, uma noção, não muito bem individualizada, é verdade, da necessidade de um tratamento não-comum para uma situação incomum, na atividade diária de aplicação da lei.

Trabalho de levantamento histórico acerca da forma como esta consciência foi se desenvolvendo no aplicador da lei está por ser feito, o que vem a ser dificultado pelo estado em que se encontram atualmente os arquivos judiciários. Ao menos temos descrição do processo judicial por infanticídio instaurado em 2 de outubro de 1889 contra a descendente de imigrantes alemães Guilhermina Lübke na Comarca de Santa Leopoldina. A ação criminal foi presidida pelo então Juiz Distrital Graça Aranha, que posteriormente fez uso do tema em seu romance "Canaã", publicado em 1901, saudado como o primeiro romance a manifestar idéias socialistas na literatura brasileira.


II – A atitude dos sub-grupos culturais perante a lei brasileira:

A preocupação revelada em seu romance por Graça Aranha ante a problemática da integração de sub-grupos culturais (abordada por ele sob o aspecto das dificuldades de miscigenação dos descendentes de imigrantes alemães), parece ter sido compartilhada no Espírito Santo em maior ou menor grau por quantos se ocuparam da aplicação da lei junto a essas comunidades diferenciadas. Já em 1961 RENATO PACHECO fez publicar no nº 21 da Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo estudo intitulado "Atitudes perante a lei, em uma sub-cultura brasileira", planejado como preliminar de uma pesquisa mais ampla acerca da socialização dos alemães no Estado do Espírito Santo. Identificando-se inicialmente como Juiz de Direito, e partindo da constatação de que o direito é produto da cultura, o breve estudo procurava examinar "algumas atitudes de imigrantes teutos, que se fixaram, em meados do século passado nas montanhas centrais do Espírito Santo, perante a lei brasileira".

PACHECO começa por definir sub-cultura, dizendo ser, da definição de Carlos Wagley, parte anômala de determinada cultura, constituindo-se de grupo de pessoas "que por motivos étnicos, religiosos e de vária natureza, não se subordina à força da autoridade, quando da aplicação da norma jurídica que vige, no momento, para o todo social".

Prossegue dizendo que na área focalizada existe intensa desorganização social (no sentido de entrechoque de culturas), decorrente "de lento processo aculturativo, em região isolada", perfilhando idéias de W. I. Thomas e Florian Znaniecki contidas em "The Polish Peasant in Europe and America", de 1920. Esclarece terem os pomeranos origem subdesenvolvida em relação aos demais imigrantes de origem alemã, e acabaram por se isolar, ao chegar ao estado, nas montanhas centrais do território, apresentando elevada taxa de fertilidade, "quase decuplicaram em cem anos". Arremata com a constatação de que, "quanto mais isolados mais puros os padrões culturais originários e mais agressiva a atitude perante a lei brasileira".

Os problemas levantados pelo autor do estudo podem ser listados em tópicos:

a)Faz menção ao elevado índice de alcoolismo entre os colonos, inclusive do sexo feminino, como "prova de sua desorganização". Acrescenta que o problema do alcoolismo já fora anteriormente reconhecido em sentença do Juiz João Lordelo, prolatada em Santa Leopoldina em 31.1.1947, que diz: "Os contendores estavam embriagados, e, não é demais repetir que o álcool é, incontestavelmente, o fator preponderante na criminalidade entre os colonos" (reconhece também, no entanto, ser o álcool de fato o móvel de grande parte dos delitos violentos cometidos em todo o Brasil);

b)Faz menção ao problema do descompasso entre a lei sucessória brasileira e o costume do morgadio (diga-se, praticado ainda hoje em dia), constatando que as verdadeiras "deserdações excusas" tinham a "prestimosa" colaboração de tabeliães;

c) A problemática dos delitos sexuais: partindo da constatação fática de que o conceito de valor de virgindade vigente naquelas comunidades é diverso do luso-brasileiro, narra que a experiência sexual pré-marital da moça quase nunca vem a conhecimento da autoridade brasileira, salvo em caso de engravidamento, quando então se prefere um acordo com o indigitado ofensor;

d) O medo que têm os colonos de todo aquele detentor de qualquer parcela de autoridade brasileira, a partir – ou, principalmente - do soldado (policial militar).

Conclui dizendo que só através da aplicação da lei na área colonial objeto do estudo é que se conseguirá uma mais rápida assimilação da comunidade, que chamou, sem qualquer conotação pejorativa, de "pseudo-brasileiros". Mas reconhece, encampando Elgin Hunt, que cita, que quando a lei entra em choque com crenças estabelecidas na população local pouca oportunidade de êxito tem seu aplicador, motivo pelo qual não devem os magistrados esmorecer na sua atividade.

Vê-se do exposto a preocupação do autor com a integração do sub-grupo investigado - cuja diferenciação e isolamento cultural reconheceu - ao grupo social dominante, ou seja, à população nacional. Para o autor, magistrado de carreira, esta integração haveria de se dar, no dia-a-dia, pela aplicação da lei vigente ao sub-grupo, de molde a fazê-lo paulatinamente sujeito, em efetivo, ao ordenamento jurídico dominante.

Aprofundando essa idéia PACHECO pregou posteriormente em seu "Juiz e Mudança Social" a atuação do Juiz de Direito como verdadeiro pensador social, como sociólogo em ação, ante a constatação da inadequação da lei em face das modificações surgidas, com tanta velocidade nos dias de hoje, mas de maneira desigual entre as diversas regiões do país.


III – A Atividade do Juiz de Direito no Interior:

O Juiz de Direito JOÃO BAPTISTA HERKENHOFF apresentou à Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro sua tese de mestrado intitulada A Função Judiciária no Interior, publicada em 1977 pela Editora Resenha Universitária de São Paulo, que parte da idéia central da convivência, no interior do Brasil, do direito formal, emanado da produção legislativa, com um direito não formal, "marcado por peculiaridades locais, consagrado pelo costume" e que tem o respaldo da "autoridade local". Procurou então, de forma empírica, investigar o papel do Juiz de Direito na "mediação" entre a cultura da capital e a cultura do interior, partindo do pressuposto de ser este um agente de integração pela operação da diminuição do desequilíbrio entre a realidade social do interior e o sistema jurídico do país.

Tomando como ponto de partida pesquisa antropológica realizada por Robert Shirley no município de Cunha/SP,HERKENHOFF admite a pluralidade de ordenamentos jurídicos, vale dizer, das fontes materiais do direito, representadas a) pelo direito legislado; b) por um direito "dos coronéis" e c) um direito "do camponês", conforme identificara aquele pesquisador. Passa a investigar o comportamento do Juiz de Direito perante essas três ordens jurídicas na sua atividade de aplicação da lei e, para isto, toma como amostra o Estado do Espírito Santo.

Utilizando-se de entrevistas com colegas e populares como meio de pesquisa, HERKENHOFF partiu de cinco hipóteses de trabalho, sendo que ao final do levantamento algumas dessas hipóteses foram confirmadas, outras somente em partes. As conclusões a que chegou, em síntese:

a)no interior as pessoas tendem a distinguir mais entre Juiz e Justiça, sendo que o Juiz de Direito é, nessas comunidades, a autoridade máxima; como liderança local só fica atrás do Prefeito Municipal, e tem exacerbada a extensão do seu papel político e social além do balizado pela lei;

b)a maioria dos Juízes tem uma posição de conservadorismo moderado, e são conscientes da necessidade de se adaptar o Direito nacional e os valores culturais em que se baseiam à vida interiorana;

c)em alguns temas, as comunidades interioranas estão à frente dos Juízes em termos de reforma social, o que põe em relevo, por uma lado, a detectada tendência conservadora destes e por outro, seu papel de mediação nas relações entre classes.

HERKENHOFF estava preocupado com a inserção e interação dos grupos sociais na comunidade e sob este aspecto a atividade de aplicação da lei faria daquele que dela se desincumbe – o Juiz de Direito – o mediador dos conflitos inevitáveis nessa convivência entre classes sociais. Essa idéia foi aperfeiçoada e posteriormente utilizada por ele em seu "Como Aplicar o Direito" em que propõe a atividade de aplicação sob três perspectivas, a axiológica (levando em conta os valores éticos de que o julgador deve impregnar a decisão), a fenomenológica (levando o julgador a tentar compreender o homem posto a julgamento e o seu mundo) e a sociológico-política (a investigação dos valores da comunidade em que atua, desempenhando o julgador uma função progressista e renovadora).

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IV – Conclusão:

Considerando-se em conjunto os dois trabalhos examinados, sua importância direta está – já se deixou claro na introdução - no levantamento de característica típica da população do Espírito Santo, qual seja, sua diversidade cultural, a introdução dessa característica como variável relevante no âmbito da Sociologia Jurídica e a análise do papel do Juiz de Direito como fator determinante na integração desses grupos diferenciados ao universo jurídico dominante.

De fato, embora o trabalho de HERKENHOFF tenha se ocupado da interação entre classes sociais (camponeses, donos da terra), seu levantamento demonstrou empiricamente a disposição dos Juízes de Direito em atuação no Espírito Santo de impregnar suas decisões dos valores vigentes nas comunidades em que atuam, promovendo verdadeira interação entre o direito positivo (nacional) e as normas costumeiras (locais), de uma maneira geral.

Assim, a proposta formulada por PACHECO em seu trabalho, da integração dos sub-grupos culturais pela via da atividade de aplicação da lei, é preocupação que efetivamente ocupa, mesmo que inconscientemente, o operador do Direito no Espírito Santo, que se vê em contato com uma realidade social diferenciada e específica. Obviamente a concretização desta integração é desejável na medida que assim restarão a final reduzidos focos de tensões sociais resultantes dessa gritante diferença de costumes da população inserida no interior de um mesmo espaço político-jurídico, que é o caso do Estado do Espírito Santo.

Neste sentido, o trabalho de levantamento do problema e o apontar uma sugestão para resolvê-lo; a posterior detecção de uma tendência que se verifica no trato deste problema pelos operadores que dele devem se ocupar, em suma, estes dois estudos ora examinados trazem contribuição real à Sociologia Jurídica nacional, em geral, na medida que neste aspecto particular o que se verifica no Espírito Santo verifica-se também em maior ou menor grau por todo o país. Num outro plano de análise, pode-se notar a importância de cada dos estudos na formação do pensamento de seus respectivos autores, sem dúvida dois dos maiores nomes da Sociologia Jurídica no Espírito Santo.

Por último, a importância prática dos estudos vem da atualidade do objeto de ambos. Este fato foi constatado junto a colegas Juízes de Direito em exercício por Comarcas do interior do Espírito Santo e demonstrado em dissertação de mestrado que apresentei à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, intitulada "Aplicação da Lei Penal num Ambiente Multicultural – o Caso do Estado do Espírito Santo", servindo as conclusões dos dois autores de ponto de partida para as conclusões a que ali cheguei.

Praia da Costa, outubro/2001

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Sobre o autor
Getúlio Marcos Pereira Neves

juiz de Direito em Vitória (ES), mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Lisboa

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NEVES, Getúlio Marcos Pereira. Dois estudos de sociologia jurídica no Espírito Santo e sua atualidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 54, 1 fev. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2690. Acesso em: 4 nov. 2024.

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