A JUSTIÇA E A PUNIÇÃO
O sentido de uma punição atribuída a algum indivíduo, é o de ser uma resposta a uma agressão pelo mesmo praticada. Tal ofensa pode ser material ou imaterial, pessoal ou coletiva. A punição estava, no passado, vinculada a idéia de vingança. O progresso humano, ao longo da história, foi alterando essa lógica e o que era a vingança pessoal, ou do clã, passou a ser a vingança do corpo social: uma resposta à agressão que agora era sentida por toda a sociedade, por vezes representada apenas por um indivíduo, ao ser desrespeitada uma norma de conduta.
Contudo o ato de desrespeito a uma regra aceita por todos que vivem na sociedade, ensejador de punição, precisava ser medido, avaliada sua veracidade, as dimensões de sua repercussão, o seu potencial ofensivo, daí criando-se a medida do próprio castigo a ser aplicado. Tudo isso foi canalizado para uma figura que deveria ocupar uma terceira posição, em relação ao agressor e ao agredido ou, o eu e a vítima.
Nas revoluções do século XVIII apareceu a figura da justiça popular. Na Revolução Francesa, o Tribunal Popular funcionou durante um período como uma terceira instância, bem determinada socialmente. Ele representava uma linha intermediária entre a nova classe social no poder, e a plebe, o povo em geral.
Essa instância judiciária, ocupava, tal qual no Antigo Regime, uma posição mediana. Era o lugar onde se mediavam os conflitos de classe baseados em uma ideologia moral, convenientemente moldada pelas circunstâncias. Nela estava plenamente estabelecida a noção do que era o certo e o errado.
Foi durante a Idade Média que um conjunto de instituições estáveis, específicas e que intervinham de maneira autoritária e dependente do poder político, se estabeleceu como “justiça”, no lugar dos Tribunais Arbitrais. Essa transformação apoiou-se em dois mecanismos, conforme Foucault: o primeiro baseado na fiscalização da justiça e o segundo baseado na força policial ou militar.
Primeiramente a fiscalização da justiça era algo muito lucrativo. Havia uma economia política da justiça, baseada nas multas, nos confiscos, nos sequestros de bens. Nas mãos dos senhores feudais a justiça tornou-se um meio de apropriação e de coerção, ou seja, uma fonte de riqueza; era considerada parte da renda do senhor feudal e um direito seu, herdado.
Nesse aspecto o funcionamento da justiça, quando comparado ao período antigo, inverte-se: antes para aqueles que estavam sob sua jurisdição, era considerado um direito, o de pedir justiça, e dever para os árbitros, ao distribuir a justiça a partir de seu poder ou conhecimento. Na Idade Média observa-se a inversão dessa lógica: o direito torna-se lucrativo para quem detém o poder e oneroso para quem está subordinado a ele.
No segundo mecanismo, a justiça está vinculada totalmente ao poder bélico que apenas o suserano possui. A justiça da paz é a do senhor feudal, imposta por ele. É, também, um meio de onde ele retira seus proventos, seus benefícios e aumenta sua riqueza.
De acordo com Foucault “foi sobre este pano de fundo de guerra social, de extração fiscal e de concentração das forças armadas que se estabeleceu o poder judiciário”. (FOUCAULT, 1979, p.43) É por isso, em seu entendimento, que a lógica da justiça popular, da época da revolução, é totalmente anti-judiciária, contrária à forma tradicional dos tribunais do Antigo Regime.
Portanto, a justiça adquiriu um caráter de instrumento de classe, de dominação de classe. Explicam-se dessa maneira algumas práticas que foram comuns durante a Revolução Francesa na punição dos agentes do estado, como por exemplo, no assalto e no incêndio da Bastilha, ou, ainda, na exposição pública da cabeça decepada de um representante do Rei.
Revivem-se velhos rituais ancestrais, típicos das práticas populares de justiçamento e punições que ocorrem por fora da lógica formal das instâncias judiciárias. Nas palavras de Foucault:
“Parece-me que a história da justiça como aparelho de Estado permite compreender porque, pelo menos na França, os atos de justiça realmente populares tendem a escapar ao Tribunal e por que, ao contrário, cada vez que a burguesia quis impor à sedição do povo a coação de um aparelho de Estado, se instaurou um tribunal: uma mesa, um presidente, assessores e dois adversários em frente. Assim reaparece o judiciário.”(FOUCALT, 1979, p. 44)
Michel Foucault diferencia drasticamente dois tipos de justiça: uma, a dos Tribunais, outra, a Justiça Popular, ambas lidando com a questão da punição. No primeiro encontram-se presentes os elementos básicos daquilo que está cristalizado na cultura, pelo menos do Mundo Ocidental, o segundo baseia-se em outra lógica de justiça.
A simples forma do Tribunal já deduz seus princípios norteadores. Uma mesa, atrás dela um terceiro que está eqüidistante das partes adversárias. Aquele terceiro é a parte neutra, o Juiz, o responsável por dar a sentença, neutra, desinteressada, fundamentada em valores de justo e injusto, numa noção de verdade, cuja opinião não pode ser predeterminada antes das alegações.
No outro lado está a justiça popular: nessa não há três lados, tampouco mediação. Nessa concepção, as massas apenas identificam seus inimigos e os punem ou reeducam. Baseados não em um princípio moral de justo e injusto, de certo e errado mas orientados pela agressão que sofreram, ou pela maneira como foram lesados, ou pela perseguição de que foram objeto. Nessa forma de justiça, as massas não precisam se apoiar em um aparelho do Estado, ou numa instituição. Apenas executam suas formas de punição orientadas pela sua idéia de justiça ou vingança.
A partir das transformações ocorridas no século XVIII, os novos tribunais ganharam novas características que bem mais tarde se consolidaram e os caracterizam atualmente. Não seria mais uma das partes que controlaria a instância judiciária e esta não teria, como finalidade, educar.
Atualmente o sistema penal apresenta-se como anti-sedicioso, ao tentar opor as classes baixas proletarizadas aos que estão fora das relações de trabalho. A burguesia procurou criar meios de garantir sua segurança contra as classes proletárias. Uma maneira de realizar esse projeto, foi através da justiça, criando mecanismos de separação entre as massas, sendo que as relações de trabalho serviram a esse fim. Uma das principais formas foi através das prisões.
A burguesia, através da justiça, introduziu uma grande separação entre o proletariado e a plebe, ou entre os que estão inseridos no processo produtivo e os que estão excluídos desse processo. Os aparelhos jurídicos assim montados têm efeitos ideológicos específicos sobre cada uma das classes sociais dominadas.
Variadas noções burguesas de justo e injusto, certo e errado, propriedade, roubo, crime e criminoso, foram incutidas na moral proletária. Entretanto essas classes dominadas foram-se moldando ao longo do tempo, sendo absorvidas pelos projetos históricos da burguesia. A plebe sempre foi sendo colocada diante de alternativas morais feitas pela burguesia: prisão ou exército; prisão ou colônia; prisão ou polícia. Todas quesitações tinham um fundo moral e uma alternativa punitiva.
Diante de todas essas construções ideológicas da burguesia acerca da justiça, Foucault constrói uma posição crítica. Em sua posição, todas as idéias da burguesia servem para que essa classe exerça o poder, fazendo a SUA justiça. Em razão disso ele é contrário à idéia de um Tribunal Popular para a realização da justiça.
Afinal, é através dos juízes, dos procuradores e, sobretudo dos intelectuais, que a burguesia tem espalhado e imposto os seus temas ideológicos. Qualquer forma de justiça que funcione à semelhança da justiça burguesa deve ser vista com desconfiança. Foucault desconfia especialmente, do aparelho judiciário e da burocracia do Estado. Em sua opinião o tribunal é a burocracia da justiça.
As formas de punição baseadas na prisão dos corpos, estão fortemente influenciadas pela problemática da justiça burguesa. Os tribunais que têm, consigo, a ideologia da justiça burguesa e as formas de relação entre juiz e julgado, juiz e parte, juiz e pleiteante, e aplica essa justiça, têm um papel fundamental na dominação de classe.
O fato de haver um tribunal, onde o litígio das partes estará suspenso e submetido a uma força superior e maior é o suporte necessário para que o estado burguês ganhe a aparência de justo. Segundo o Pensador, é tudo o que a burguesia quer e precisa para impor seus valores, suas crenças, suas opiniões, de forma legitimada e pacífica.
Nesse passo, conclui Foucault que essa forma de justiça deve ser alvo de um duro e incansável embate ideológico por parte das classes dominadas. Uma nova forma de justiça popular deve estar completamente afastada das características da velha justiça burguesa.
Foucault fala abertamente da criação de uma justiça revolucionária uma justiça popular, contraposta à idéia de tribunal popular que remete à lógica dos tribunais tradicionais da burguesia. Uma justiça revolucionária deve ser baseada em novos padrões ideológicos de moralidade que se distanciem da ideologia imposta pela burguesia e elaborada pelos seus serviçais históricos do aparelho judiciário-estatal.
CONCLUSÃO
Após uma análise detida de parte significativa da produção intelectual de Michel Foucault é possível proceder a uma avaliação a respeito de sua idéia sobre o conceito de punição.
Em primeiro lugar é fundamental situar o momento histórico da Revolução Francesa, do final do Século XVIII em que as teorias dos pensadores iluministas que o filósofo trata como “reformadores”, ganham uma grande amplitude e sua voz é propagada para fora da Europa e além de seu tempo..
Havia uma intensa necessidade de se encontrar novas maneiras de se fazer justiça, que se afastassem das tradicionais práticas punitivas baseadas nos odiosos suplícios físicos. Essa forma de punição estava demasiadamente vinculada à crueldade, à tirania, enfim, à sede de vingança do soberano.
Buscava-se uma forma, no séc. XVIII, de se respeitar a condição humana do criminoso. O ideário Iluminista não mais aceitava as práticas punitivas medievais que tinham os corpos como objeto central de produção de dor e sofrimento. Nesse sistema o próprio criminoso tornava-se uma vítima.
Clamava-se por uma nova justiça criminal que não tivesse como norte a vingança quando fosse aplicar a punição. Por outro lado, também se buscava afastar do poder a tirania do soberano. Este deveria ter outra conduta em relação à prática do poder que lhe havia sido conferido pelo povo.
Na lógica de punir-se sem o uso de métodos sádicos que agredissem os corpos e fossem baseados na lógica do suplício, Foucault identifica uma medida ideal. Esta é o homem, o modelo limite da punição chamado de “homem-limite”. O homem como parâmetro para todas as formas de castigo, na melhor tradição iluminista.
Nesse mesmo momento histórico aparece uma lógica, tipicamente burguesa, de produzir uma maneira mais eficiente de se conduzir as punições: seria uma “economia política dos castigos”.
Outra mudança, que aparece no mundo dos delitos, apresentada por Foucault foi a diminuição das incidências de “crimes de sangue”, em relação a crimes contra a “propriedade”. Em decorrência deste fato a legislação criminal é renovada várias vezes, inclusive, no período da Revolução Francesa, destaca-se o debate sobre a reforma penal.
Essas discussões apontam no sentido de alterar-se a própria estrutura da justiça, ao mesmo tempo em que se procura extinguir o uso arbitrário do poder do soberano na distribuição da justiça.
Num segundo momento procedeu-se a um levantamento histórico baseado nos estudos realizados por Foucault, a respeito das diferentes táticas punitivas utilizadas por diferentes sociedades em distintos momentos históricos em que se identificam quatro formas elementares de táticas punitivas utilizadas em distintas sociedades como as práticas de banimento, resgate, marcagem e, por último, característica das sociedades contemporâneas, o encarceramento.
Esta última tática punitiva sempre esteve à margem dos sistemas punitivos até o século XVIII. Depois começou a ganhar relevância, a ponto de tornar-se predominante, senão exclusiva, nas sociedades contemporâneas.
Ao mesmo tempo em que se teoriza a respeito da natureza dos crimes e de suas possibilidades de punição, conceituando o criminoso como um inimigo de todo o corpo social, o novo sistema punitivo calcado nas prisões, também é objeto de intensa crítica.
Nesse momento de transformação das práticas de punição baseadas no aprisionamento dos corpos, ocorridas após o séc. XVIII destacam-se duas problemáticas. Uma refere-se à questão da delinqüência produzida dentro dos próprios sistemas prisionais, realidade sentida profundamente nos dias de hoje, e objeto de acirrados debates.
Outra inovação do sistema punitivo prisional foi a criação do sistema Panóptico, modelo criado por Jeremy Bentham, jurista inglês, no final do século XVIII. Apesar de toda essa discussão as formas de penalidades surgidas no final do século XVIII não inovaram na direção de uma mudança de valores morais.
Foucault conclui que a sociedade punitiva moderna é baseada na vigilância generalizada. Ela se estende a setores e instâncias de vigilância. Uma vigilância preventiva do ato delituoso que tem como conseqüência a necessidade da punição do delinqüente, inimigo da sociedade.
Por fim, o Pensador aborda a evolução da punição como uma resposta a uma agressão feita à sociedade que buscava antes a vingança, e agora busca a justiça. Nesse intento ele discute o papel do Estado como o responsável a dizer o que é o justo, fazendo isto através de suas instituições, sendo a mais característica a do tribunal.
Michel Foucault reflete intensamente sobre o papel que os Tribunais desempenharam ao longo do tempo nas diferentes sociedades. Pauta, inclusive seus limites e distorções e contrapõe a essas instituições a idéia de Justiça Revolucionária, denunciando as limitações burocráticas e institucionais da justiça burguesa.
Para o Filósofo, uma verdadeira justiça popular deve fundamentar-se numa nova moralidade, em novos valores, diversos da moralidade burguesa.
Evidencia-se, pois que a substituição da lógica da vingança pela resposta justa da agressão sofrida por toda a sociedade, pelo ato ilegal criminoso é um esforço nascido no alvorecer da classe burguesa, no Ocidente, e praticado pelas diversas sociedades, ao longo do tempo, até os dias de hoje.
Apesar do discurso ideológico burguês, acentuando o processo de humanização e de mitigação das punições, na postura moderna das teorias da pena, como obra de uma moralidade que valoriza os direitos humanos, Foucault ressalta a dimensão utilitária, por assim dizer, mais funcional ao sistema, o caráter de classe dos processos de punição e de julgamento, mediante os conceitos de “economia política do crime”, de “homem-limite”, e de “justiça”, enquanto aparelho judiciário, como instrumento de dominação da classe burguesa. Assim consolidaram-se os novos sistemas penais que se ergueram após as reformas do século XVIII.
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