Família brasileira

Ou a família no Brasil.

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18/03/2014 às 09:26
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Discutir sobre a família brasileira significa adentrar a primeira entrada para melhor compreender a sociedade brasileira.

Discutir sobre família que representa a porta de entrada para melhor compreensão da sociedade, já principia com intrigante questionamento sobre o significado real sobre o termo “família” e mais sobre seu conteúdo teórico e prático. 

Afinal de contas, o que é família? Em particular, a família brasileira.

Refere-se a um grupo concreto de certo número de pessoas ligadas por consanguinidade ou aliança e que ocupam lugares diferentes numa hierarquia interna de poder e de funções.

É uma representação social que os diversos grupos e sociedades fazem das relações de união e consanguinidade, sendo, nesse sentido, não são uma realidade positiva e visível, mas uma realidade simbólica e construída, um dado cultural que expressa, produz e reproduz valores, legitimando-os e que transcendem ao perímetro do grupo, e impõe certa mentalidade e maneira de se situar na vida.

Discutir o conteúdo teórico de família fatalmente nos remete aos dados empíricos e a inserção desses numa perspectiva histórica, conforme já foi feito por diversos estudiosos.

Cogitar de família no Brasil implica necessariamente em rever a formulação clássica que nos relaciona com a família patriarcal bem descrita por Gilberto Freyre em sua obra “Casa Grande e Senzala [1]”.

O perfil de família delineado do tipo patriarcal é tipicamente presente no período colonial brasileiro e mesmo nos posteriores períodos em sua outra obra notável “Sobrados e mucambos [2]“.

A verdade é que o modelo retratado por Gilberto Freyre, enquanto modelo de organização familiar, só encontrável entre os senhores de engenhos [3] nordestinos todo-poderosos, com suas mulheres submissas e preguiçosas em suas redes, as filhas castas, filhos amamentados e embalados por negras de boa saúde, amados pelas escravas jovens, os moleques, as crias ilegítimas, os agregados, os afilhados, os parentes, os amigos, o padre e, etc... “como se fossem da família”.

A relativização do modelo freyriano que o transformaria numa crônica peculiar de algumas famílias recifenses e um mito para o restante do Brasil colonial fora muito úteis para estudos sociológicos e mesmo antropológicos.

Tal mito construído no contexto das décadas de vinte e trinta, lembrando que a obra “Casa grande & senzala” é datada de 1933 e nos induz a questionar se o referido modelo patriarcal não seria uma construção ideológica e sem base empírica histórica.

No entanto, a acepção da família patriarcal descrita e narrada por Gilberto Freyre foi aceita por diferentes setores da intelectualidade enquanto que as demais invenções como a sociedade democrática e antiautoritária por mais que difundidas desde o século XIX através de José Bonifácio nunca galgaram a mesma aceitação e nunca foram eficazes. (esse, aliás, foi um questionamento feito em debate por Roberto Da Matta).

De fato, a construção ideológica de seu perfil patriarcal fora constituída de traços básicos do comportamento familiar e serviu de referência para os padrões de relações afetivas, sexuais, de solidariedade e de hostilidade que podemos perceber até hoje presentemente.

Assim o modelo de Gilberto Freyre não é uma descrição da família brasileira, mas apenas uma representação. Sendo vista como grupo estruturado numa hierarquia, que embora forte – “todo mundo conhece seu lugar” e está a cada momento sendo subvertida, real ou aparentemente, por força de favores entre as pessoas hierarquizadas.

Sendo uma estrutura de relações entre desiguais [4]: pais e filhos, homem e mulher, branco e negro, senhor e escravo, senhor e agregado e, assim por diante.

Assim apesar de viés ideológico o modelo freyriano sintetizou a lógica das decisões familiares no tocante aos processos de perfilhamento, divórcio, herança, alforria, processos exemplares para se perceber a distinção entre o bem e o mal, ou seja, entre o legítimo e o ilegítimo.

Enfim, Freyre conseguiu resumir o arquétipo do “pensar familiar” englobando a ética social e a política da época. Assim conhecemos o interior da vida privada e pública do Brasil.

As situações de não-atualização do modelo são, em referência a Freyre, definidas negativamente: não ser poderoso, não ter amigos poderosos, ser solteirona, ser mãe solteira, mulher abandonada, a mulher que sustenta a casa e todas essas situações de pura infelicidade: implícita ou explícita por oposição dos valores tidos como positivos.

Essas relações entre desiguais [5] encobrem (até hoje) um forte grau de exploração e subordinação existente na sociedade brasileira. A pseudobrandura advinda pela intimidade entre superiores e inferiores, de maneira que todos manuseiam dois códigos a um só tempo: todos são desiguais mas simultaneamente aparecem como iguais.

A pseudobrandura mencionada abrandava o conflito advindo da aguda desigualdade social e escamoteava preconceitos. A família apresentou-se sob as diversas formas de organização ao longo dos tempos, nas diferentes regiões e segmentos sociais.

O que nos faz aportar na relativização que é bem expressa pelo jargão “cada caso seria um caso”, e tal postura materializa o esquivamento de explicar a diversidade e a mudança histórica de construir um fio que conecte a diversidade e a história.

Outra questão é que o modelo de Freyre nos remete a uma representação social de família que está sob a influência ideológica e, com o advento do capitalismo ocidental transformou o homem e sua força de trabalho livre em objeto para o mercado, e traz a noção de indivíduo para quem a sociedade existe como espaço de plena realização uma vez banidos os entraves pessoais.

Pelo menos em tese, todas as oportunidades passam a ser possíveis para todos e todos têm acesso a estas, independentemente de linhagem ou vassalagem. Pena, que seja tão somente em tese e muito menos no plano real.

Assim, a linhagem, o grupo, a nação cedem lugar ao indivíduo enquanto sujeito da história.

Tal noção de indivíduo como valor social, livre do destino que lhe seria imposto por uma linhagem ou classe social, está associada a uma determinada visão de família: a família nuclear burguesa representada como espaço privado e atomizado da vida social.

Por constituir um espaço reservado à intimidade, onde se realizam a afetividade, a sexualidade, a família nuclear burguesa desfrutou de um peso privilegiado na configuração do indivíduo e no processo de construção de sua subjetividade [6]?

Tal questionamento nos faz pensar sobre o conceito de indivíduo e subjetividade e se tais conceitos só são possíveis nas sociedades ocidentais que bem conhecem o processo de individualização da força do trabalho e do consumo.

Mas a antropologia refuta e aduz que mesmo em outras sociedades culturais onde o coletivo tem primazia sobre o particular, pode-se ainda constatar uma percepção de indivíduo.

O mesmo argumento vige para a subjetividade embora esteja vinculada ao indivíduo, só existência não é exclusiva da modernidade sua percepção é diferenciada historicamente.

Admite-se que, embora não exclusiva, a família é agência privilegiada no processo de construção de subjetividade. Esta afirmação, em geral, está focada numa determinada concepção de família, a nuclear burguesa, constituída do pai-mãe-e-filhos.

 Novamente, esta interpretação nos conduz às novas indagações. De um lado, pode-se perguntar se esse papel de agência privilegiada não deve ser relativizado ao abordarmos sociedades anteriores à emergência do capitalismo, em que o trinômio pai-mãe-e-filhos era ofuscado por ampla e densa rede de relações sociais que o extravasavam.

Cogitamos ainda se a família não sofreu amenização de seu papel na sociedade contemporânea onde a família nuclear é complementada ou até mesmo secundarizada por relações com amigos, vizinhos e criados.

Convém ainda lembrar que nas sociedades tribais nas quais as relações triangulares não seriam intituintes da subjetividade. Cogitando assim na formulação triangular edipiana de construção da subjetividade, onde a representação da família nuclear é a mais abrangente e abarca diversas perspectivas que não são necessariamente excludentes.

É notório que ultimamente as pesquisas sobre família e matrimônio vêm merecendo especial atenção por parte das Ciências Humanas e das Ciências Sociais aplicadas e, em particular, o Direito.

A facilitação de uniões civis, matrimoniais, bem como de sua dissolução (por via extrajudicial mediante certos requisitos legais) visa legitimar e tutelar maior número de entidades familiares que possível, onde não só os laços biológicos são prestigiados mas também os laços socioafetivos.

E onde o bem estar da família e as escolhas jurisdicionais em face das crianças e adolescentes, são tomadas em prol do melhor interesse desses que contam não só com especial estatuto, mas com o maior amparo por ser um ser humano em formação, devendo sua dignidade ser preservada e cultivada.

A redescoberta da família, como objeto de investigação principalmente com a preocupação de verificar suas tendências contemporâneas no Brasil, pretende decifrar a sede dos relacionamentos (que é família) e traduz interessantes dados estatísticos tem tido por parte dos historiadores uma aplicação tímida e restrita principalmente em razão da dispersão das fontes documentais e a falta de quadro conceitual adequado.

Assim para a nova geração de estudiosos, a família é uma instituição fundamental e duradoura, de cujas contribuições dependem outras instituições e passou a significar melhor entendimento da estrutura das sociedades e do desenvolvimento econômico, cultural e político.

A história da família com evidente interdisciplinaridade passou utilizar dado demográfico recorrendo aos modelos pertinentes à Antropologia, Sociologia e Psicologia que se mostraram válidos e ampliaram em muito os recursos tecnológicos e metodológicos do pesquisador da família.

A relação entre família e organização social [7] já nos primeiros séculos da nossa história foi claramente apreendida em trabalhos pioneiros como o de Gilberto Freyre e Oliveira Vianna [8] bem como Alcântara Machado.

Sob o aspecto da solidariedade familiar, a vingança e as relações entre família e Estado ainda na década de quarenta, temos a análise pontual de Luiz de Aguiar Costa Pinto [9], onde o público e o privado se confundem conferindo à nossa sociedade colonial características bastante peculiares de organização.

A retomada decisiva da família deu-se enfim na década de setenta quando novas pesquisas tiveram o intuito rever as propostas feitas buscando novas perspectivas.

No plano conceitual se apresenta outra séria dificuldade que se liga ao próprio conceito da família brasileira e da necessidade de revisão para abarcar toda a complexidade social do Brasil em particular da Colônia ao Império.

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E, de acordo com a literatura e família séria o resultado de transplantação e adaptação da família portuguesa ao ambiente colonial tendo gerado modelos patriarcais com tendências conservadoras em sua essência.

Confundiram-se os conceitos o de família brasileira que passou ser sinônimo de patriarcal e, esta como sinônimo de família extensa. Era a vasta parentela que se expandia verticalmente principalmente através da miscigenação e ainda horizontalmente pelos casamentos entre a elite branca.

No entanto pesquisas recentes evidenciam que as famílias extensas e do tipo patriarcal não foram predominantes, especialmente no sul do país nos séculos XVIII e XIX, onde eram mais comuns as estruturas mais simplificadas e com menor número de componentes.

Mas se percebe diversas formas de organização familiar, e tal pluralidade de modelos tais como a família paulista do século XIX na qual as extensas e do tipo patriarcal não chegavam a 26% dos domicílios. Portanto, nos 74% restantes vigiam outras formas de composição, o que significa que as famílias extensas representavam apenas segmento minoritário da população.

De fato, família é um conceito plural significando por vezes, o núcleo doméstico e, para outros, no entanto, apenas o do grupo de sangue. E ainda temos que considerar o que outrora era chamada de ilegítima.

E, no caso brasileiro esse é um ponto crucial já que as uniões consensuais permeavam toda a sociedade e de nada adiantavam as argumentações da Igreja e a punição ao pecado para que vivessem em concubinato.

Aliás, persiste no plano jurídico a diferença entre união estável (onde os participantes são desimpedidos para casar) e concubinato (união eventual onde os participantes são impedidos de casar-se). Mas efetivamente evoluímos em tutelar todos os filhos indistintamente, independentemente de sua origem, se da família matrimonializada, se advindo de união estável ou mesmo concubinato.

O termo família dotada de pluralidade de organização e representativa do casamento que era opção de apenas de parcela da população.

Outra questão era a bastardia, dos concubinatos, das uniões eventuais que revelam imagens mais realistas do comportamento humano e do modo de vida da população no passado.

O contraste de imagens era grande de um lado o casamento e a moral e a própria submissão e castidade da mulher, e de outro lado, o expressivo índice de ilegitimidade das famílias, a falta de casamentos e insatisfação feminina revelada nos testamentos e nos processos de divórcio.

Obcecados pelo recato e pureza, os historiadores e romancistas exageravam ao narrar esse quadro criando estereótipo presente até hoje. De qualquer modo, reconhecemos que o padrão de família descrito por Gilberto Freyre deixou fortes resquícios na sociedade brasileira, mesmo no sul do país.

Em São Paulo, no final do período colonial os estudos realizados recentemente mostraram imagens femininas que divergem dos parâmetros convencionais. E nos faz questionar se realmente existiu o ideal da passividade feminina. Ou se seria apenas um mito criado pela literatura?

Com a saída frequente da população masculina (para guerras e outros intentos), o que sem dúvida alterava o quadro do número de mulheres como chefes de família e colocava em cheque o comportamento feminino e a sua condição de submissão.

Através de testamentos, dos processos de divórcio e outros documentos públicos oficiais verificamos que mulheres de diferentes níveis sociais trouxeram tensões para o casamento, seja por sua rebeldia ou por insatisfação.

Identificamos ainda inúmeras mulheres com efetiva [10] participação ativa quer na família, quer na sociedade, gerindo seus negócios e propriedades (de maior ou menor vulto), assumindo a chefia da família e trabalhando para a sobrevivência de sua prole.

Há ainda adultérios [11] confessados nos testamentos e as solteiras e viúvas com filhos ilegítimos, tidos por fragilidade humana como estas mesmas confessavam. O que torna evidente outros moldes familiares coexistentes ao lado da família fundada pelo casamento.

Pelo menos no século XIX, há divergências no ideal de castidade e submissão da mulher, mostrando que na prática os valores tradicionais estavam sendo afetados ainda permanecessem nas mãos do sexo masculino.

A existência de aparato jurídico que reforça a dominação masculina garantia os seus privilégios, mas não perpetuava a sua manutenção. E, hoje constitucionalmente no Brasil podemos apontar a isonomia entre o cônjuge mulher e o varão em todos os aspectos, até mesmo, na assunção do sobrenome por conta do matrimônio.

A partir de meados do século XVIII casamentos arranjados pelas famílias eram desfeitos e mulheres divorciadas conseguiam a tutela e guarda dos filhos e a parte que lhes competia no patrimônio, o que nos remete a um distanciamento entre a norma e a realidade.

A família patriarcal é apenas um ponto de partida, mas é necessário ir além das versões consagradas, seja a da geração de Freyre, seja a dos viajantes, seja a dos meios acadêmicos.

Estes viram a família colonial com a ótica dos novos padrões de família nuclear burguesa que se tornou dominantes no século XIX em França, enquanto que Freyre observou e analisou a família do senhor de engenho, mas guiado pela angustiante busca de identidade nacional, obcecado em demonstrar que éramos uma democracia racial [12].

Apontou também a poligamia do homem branco da classe dominante, e plantou as sementes para o mito da inexistência de preconceito racial no Brasil o que fora desbancado recentemente pela ação do movimento negro.

E quando nos referimos à família intimista, ou seja, a família nuclear burguesa que age ou circula em espaço limitado no privado que se opõe ao espaço público; e que não corresponde a uma unidade de produção, mas apenas a unidade de consumo que corresponde exatamente à base de toda construção psicanalítica, a base do triângulo edipiano [13].

A ideia de família está intimamente relacionada com a mística da natureza feminina que só recentemente passou a ser contestada.

A família patriarcal é, portanto, o ponto de partida como já mostrou Sérgio Buarque de Holanda, tem seu modelo muito mais calcado na Antiguidade, aquela cujo nome se originou de famulus, ou seja, escravo. Por essa razão, um dos traços fundamentais do padrão ideal da família patriarcal é o pátrio-poder ilimitado do pater famílias, um poder de proprietário. Enquanto a família católica adotava a monogamia formal.

Atualmente até terminologicamente o pátrio-poder adotou outra denominação que é poder familiar, restando bem claro que a direção desse poder-dever caberá tanto ao pai como à mãe.

Coube a Freyre desvendar e enfatizar o caráter poligâmico da família patriarcal, a expectativa ideal de que o macho branco tivesse todas as relações heterossexuais e ativas possíveis, com tudo que lhe passasse pela frente, das frutas às árvores, dos animais aos moleques, das escravas à esposa.

A dupla moral no casamento não é especificamente brasileira, ao contrário, é fenômeno generalizado e correspondente à opressão da mulher, mas assumiu entre nós em caráter peculiar.

Cumpre destacar que a moral dominante entre os colonizadores era a reinante na Contra Reforma fixada pelo Concílio Trento (1545-1563) estava longe de admitir tais liberalidades.

Existe outro elemento da moral dominante entre os colonizadores, que embora não explícito, poderá abrir maior luz sobre o caminho que levou à aceitação e exaltação da poligamia: a ética da desvalorização do trabalho manual e a integração harmônica da escravidão. À desvalorização do trabalho correspondia um ideal de vida ociosa, bem própria da aristocracia, e, uma valorização das profissões não mecânicas, das que exigiam uma inteligência verborrágica, o bem falar, as formas.

Desde o século XVI, os negros eram utilizados em Portugal para todos os serviços e o humanista flamengo Nicolau Clenardo espantava-se de ver a cidade de Évora coalhada de negros que faziam tudo, ao mesmo tempo em que os portugueses consideravam uma desonra aprender uma profissão mecânica.

Dessa forma, a escravidão pôde ter desde o primeiro momento, uma presença total na sociedade colonial permeando todos os aspectos da vida, e ultrapassando a bipolaridade senhores-escravos, para se incrustar na existência dos próprios homens livres.

A “doçura” do senhor para com o escravo significava a estruturação de toda a vida social sobre o favor, recaindo sobre os subalternos favorecidos e privilegiados, enquanto para os outros sobrava a violência.

Os subalternos – escravos e homens livres – habituaram-se apostar no favor e a desacreditar da luta organizada, aprenderam a utilidade de ser “um ser do coronel Fulano de Tal”, como membro de uma grande família, elemento que está na origem da “sociedade relacional” a que se refere Roberto Da Matta (In: Carnavais, malandros, heróis – Para uma sociologia do dilema brasileiro, Rio de Janeiro: Zahar, 1983; e A casa e a rua, São Paulo: Brasiliense, 1985).

Essa referida “doçura” ramificou-se também pela sexualidade, como forma de estruturação de poder. O homem branco pater famílias era dono prepotente da mulher, dos filhos e dos escravos, mas também pai generoso e carinhoso amante. Distribuindo uns privilégios, favores e doçura, enquanto que aos outros, devotava ciosos castigos e brutalidade, ele estabelecia esta forma sui generis de “democracia” pela qual os de baixo sabem que podem suplantar os do meio.

A virilidade colonizadora do português (segundo a dicção de Freyre) criava uma grande intimidade entre o branco, suas escravas, e os moleques, muitos deles seus filhos. As crianças escravas funcionavam tanto como bichos de estimação, ou como afilhados (quase parentes), ou ainda como objeto sexual.

As mulheres negras, por sua vez, eram todas potencialmente objeto sexual, mas algumas atingiam aquele status de relativo respeito da “mãe negra”, não apenas amamentando a própria cria, mas também os filhos legítimos da família, mas criando-os e formando-os.

A mulher branca, no entanto, aquela típica da genealogia da família brasileira seria ancestral da esposa da família conjugal (enquanto a escrava seria a mulher da rua, a puta) aparece na mentalidade da família patriarca como uma figura esvaziada (dotada de castidade e fidelidade e de guardiã da honra do pai e do marido).

Concluímos que a família brasileira não significa apenas um modo de resolver a questão sexual ou um mecanismo de reprodução física. A família também é banco, escola, agência de serviço social, igreja, consultório médico, partido político, e máquina de controlar o tempo e o lugar onde temos a cidadania perpétua, restaurante de luxo e local onde sabemos sermos amados incondicionalmente.

A família é valor que resiste mesmo ante a contradição entre a casa e a rua, e a globalização dos relacionamentos, e diante da lei e os elos familiares que sempre nutrem os motivos de virtude e de esperança de preservação da dignidade humana.

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Sobre a autora
Gisele Leite

Gisele Leite, professora universitária há quatro décadas. Mestre e Doutora em Direito. Mestre em Filosofia. Pesquisadora-Chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Possui 29 obras jurídicas publicadas. Articulista e colunista dos sites e das revistas jurídicas como Jurid, Portal Investidura, Lex Magister, Revista Síntese, Revista Jures, JusBrasil e Jus.com.br, Editora Plenum e Ucho.Info.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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