“…soñar con tu libertad me hizo soñar con la mía.
Y tuve esperanza por ti y por mí. Seguí adelante, tumbando muros [...] peleando con los míos y contra los míos para recuperar tu dignidad robada,mi dignidad al fin”.
M. P. MENDOZA
É possível que o alto e descontrolado índice de criminalidade, violência e insegurança de que tem sido vítima a sociedade brasileira seja um fenômeno que não tenha a dimensão e a transcendência que parece. É possível! Também pode ser o contrário: que por razões nada difíceis de imaginar nossas instituições públicas não estejam dando a devida importância à tarefa de garantir a liberdade e a segurança dos cidadãos. Sem menosprezar o papel útil, em termos de utilidade mediática e de interesse pessoal, dos discursos proferidos por nossos governantes toda vez que surge uma vítima inocente da barbárie que vivenciamos em nosso cotidiano, temos a sensação de que o atual modelo de Estado deveria tomar outro rumo completamente distinto.
Algo passa com o Estado brasileiro e com seus governantes. Em tema de segurança pública, o Brasil se encontra – e sobre isso parece que há certo consenso - em um estado deplorável. E é já um tanto ridículo a esta altura seguir pregando o esquizofrênico evangelho de desesperação do tipo “redução da maioridade penal”, “estadualização da legislação penal”, “multiplicação de leis em matéria criminal”, “rapidez da justiça”, “endurecimento das penas”, etc., na medida em que tais especulações encontram-se profundamente arraigadas em posturas que estão fora de lugar; quer dizer, são parte do problema e não parte da solução. E uma vez que não é necessário ser nenhum lince para dar-se conta da impostura, da futilidade e do farisaísmo da maioria desses discursos, temos o dever ético e cívico de desviar-nos dessas necedades da melhor forma possível.
Qualquer discurso malévolo que use argumentos, imagens ou eventos como camuflagem para dissimular um problema real deveria pesar muito na consciência de todos os que se dizem governantes. Enquanto nossos dirigentes não atuem rápida e explicitamente na solução do problema da criminalidade, da impunidade, da violência e da insegurança pública, são todos eles cúmplices. Episódicas expressões de consternação não somente não são (definitivamente) suficientes, senão que já não há mais tempo e nem motivos para este tipo de comportamento: a “pusilanimidade”, a “passividade”, a “indiferença” – chame-se como queira – de nossas instituições é fenômeno pravo que deveria fazer-nos reflexionar vivamente sobre o ponto de estancamento a que estas chegaram.
E o que salta à vista, por mais que insistam em negar as autoridades e as instituições responsáveis pela segurança cidadã, é a evidência de que, já faz algum tempo, alcançamos sobre essa questão uma situação de stress, reprovável e feia. E que isso esteja sucedendo de forma desenfreada supõe algo de tanta gravidade que deveria inquietar a todos. Porque é a própria sociedade em concreto a ameaçada e constantemente violada, com bem negras perspectivas no horizonte do futuro.
Mas não somente isso. As consequências dessa situação de quebra do Estado brasileiro se comprova sem mais que folhear qualquer jornal, ver a televisão ou passear por qualquer cidade brasileira. Notícias e números que gritam e inflam a larga e degradante estatística da criminalidade brasileira e que, por si sós, já deveriam ser suficientes para caracterizar o circular, vicioso e atroz desprezo estatal pelo reconhecimento e garantia dos direitos (e deveres) assegurados a todo e qualquer cidadão brasileiro. Também deveria ser útil para perceber o aberrante e desmesurado fracasso que cada dia suporta a dignidade dos cidadãos.
De fato, qualquer parecido com o que caberia chamar um verdadeiro Estado republicano brilha de maneira clamorosa por sua ausência. Vivemos em um contexto em que as idéias de liberdade e segurança parecem ter perdido qualquer sentido de valor. E isto porque não existe propriamente liberdade sem segurança. A insegurança implica ela mesma uma falta de liberdade, tanto mais profunda quanto mais dramática seja essa insegurança.
Porque falta de liberdade (de eleger, de decidir, de fazer e ainda de rechaçar e resistir) é a que tem o cidadão que apenas chega ao fim do dia e não sabe se amanhã conservará a sua vida; é a que sofrem todas as mães (e pais) que dependem da exígua caridade dos assaltantes e seqüestradores de seus filhos. Falta de liberdade é a que sofrem as famílias brasileiras porque necessidades e desejos vitais para elas já não dependem de instituições que dão suporte a uma vida digna e segura. Falta de liberdade, enfim, é o que padece aquele que vive (ou sobrevive) com a permissão de delinqüentes. Já não se trata somente do “direito à vida”, senão do “dever de viver a vida”, livre de qualquer interferência arbitrária. (J. L. Sampedro)
Por onde se vê, a sociedade brasileira, porque vive sob o manto pervertido de um Estado impotente e ineficaz (que continua a distribuir de forma tão grosseiramente desigual recursos, oportunidades e riqueza), padece de um profundo e crônico problema de falta de liberdade.
Assim as coisas, caberia então perguntar: Sabem nossos governantes governar? A resposta mais sincera disponível diante do alarmante índice de criminalidade, violência, impunidade e insegurança pública diz que não. Mas, sabem ao menos em que consiste governar? Repetir a negativa seria tremendo e espantoso. Não obstante, parece ser essa a impressão que dão à sociedade.
Talvez seja bom recordar a respeito algumas trivialidades. A primeira, que se governa sobretudo por meio de uma participação e um compromisso integral dos dirigentes das instituições públicas estatais. A segunda, que somente por meio de instituições permanentemente atuantes, vigilantes e eficazes é possível viabilizar o florescimento e o crescimento de comunidades éticas. A terceira, que a ausência de segurança por detrás da apatia política e/ou desinteresse institucional condena a liberdade cidadã à ruína e à miséria. Enquanto olvidemos essas verdades, o fracasso do Estado brasileiro estará garantido.
E se continuarmos a dar essa situação por normal, se não fazemos nada para corrigi-la, talvez já seja hora de economizar os gastos que se investem em segurança pública porque, de uma maneira ou outra, não servirão de grande coisa. Assim que deveria preocupar a atitude de nossas instituições e governantes quando continuam a insistir em um modelo de Estado incapaz e que não trata de defender nossa liberdade, de proteger-nos frente aos abusos, a corrupção e a inércia dos poderes públicos, de prevenir e condenar com eficácia a ação delitiva, de inviabilizar qualquer forma de existência indigna ou de criminalidade, de promover a igualdade material entre os indivíduos, de tutelar e garantir a inviolável segurança de todo cidadão, de educar e formar bons cidadãos, de pôr fim a um modelo de sociedade que se encontra a mercê de uma violência descontrolada...; enfim, de atuar como agente construtor de uma comunidade de homens livres e iguais, unidos por uma comum e consensual adesão ao Direito e em pleno e permanente exercício da cidadania.
Mas, podem nossos governantes ter ainda a pretensão de não olvidar a vinculação necessária entre suas atuações e a dignidade humana? Parece que sim, desde que considerem que a atividade de governar deve estar permeada pela pretensão de que suas atuações sejam moralmente corretas, justas e sem solução de continuidade. A ela (atividade) lhe corresponde à intenção e o dever de agir pronto e corretamente, de que não é suficiente para resolver o atual, alarmante e desconcertante problema da criminalidade, da impunidade, da violência e da insegurança pública o recurso a “ocasionais” acontecimentos trágicos, sempre matizados por uma retórica de cosmética, descarnada, inoportuna e vazia de conteúdo.
Neste caso, o ato de governar carrega consigo a virtuosa intenção e disposição de mudar um estado de coisas de conformidade com algo que se pretenda justo, isto é, com o imperativo categórico de que todo cidadão brasileiro, ao invés de converter-se em objeto de estatísticas estatais, deve ser respeitado como um fim em si mesmo e não como instrumento de fortuitos e distorcidos discursos políticos. Somente sob essa perspectiva poderá vir o Estado brasileiro a afirmar-se como instituição preocupada com a injustiça e com a Constituição da República, não somente controlando toda a desregrada maquinaria estatal em suas funções administrativas e legais, senão também assegurando de forma efetiva os princípios, direitos e garantias constitucionais. Em resumo, como diria John Rawls, do que “deve ser” próprio da atividade de uma instituição justa.
É preciso reconhecer que enquanto houver indivíduos vivendo sob o terror gerado pela total falta de segurança e com a permissão de outros (na pressuposição de que isso é o pior “no pior de todos os mundos possíveis”), liberdade, dignidade e igualdade não são para eles sequer meras possibilidades humanas. Depois de tudo, para ser um bom governante não basta com ter capacidade argumentativa (“de palanque eleitoral”), senão que é necessário também ter outras virtudes como o sentido da justiça, o compromisso ético, a compaixão e a valentia.
Contudo, se em realidade nada disso importa, pior para todos. Do contrário, a mensagem que há que enviar àqueles que estão governando é que não é insignificante ou “sem sentido” o que está sucedendo: que o desprezo, a covardia e a falta de uma adequada atuação e vigilância estatal não são (e não devem ser) a regra. Que a simples suspeita de que algo vai mal (e vai!) já constitui razão suficiente para ficar atento, pressionar as instituições públicas até solucionar o que efetivamente está ocorrendo e, sendo o caso, atuar em conseqüência.
Afinal, o ato de governar não é apenas uma questão instrumental; é, acima de tudo, reflexo do imperativo moral (e constitucional) de que capacitar o ser humano para o exercício pleno e virtuoso da cidadania, como valor primeiro. O homem somente se afirma a partir do respeito incondicional por sua vida, sua liberdade e sua dignidade: não somente do cidadão como objeto de interesses e oportunismos meramente políticos, senão como ser humano com plena aptidão para sentir, reagir, amar, eleger, decidir, cooperar, dialogar e de ser, em última instância, capaz de autodeterminar-se livremente no âmbito de sua secular e peculiar existência.
Parafraseando a Charles Darwin, se a miséria de nossos cidadãos não é causada por leis da natureza mas por nossas próprias instituições, imenso é o nosso pecado.
O resto é mitologia.