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A supremacia constitucional como garantia do contribuinte

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01/03/2002 às 00:00
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4. Exemplos do Amesquinhamento de Princípios Fundamentais

4.1. O princípio da irretroatividade

4.1.1. Os dispositivos de nossa Constituição Federal

Nossa Constituição Federal coloca o princípio da irretroatividade das leis entre os direitos e garantias fundamentais, estabelecendo que a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada18. E como se isto não bastasse, no capítulo em que trata do sistema tributário, estabelece que sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, cobrar tributos em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado19.

Temos, portanto, na Carta Magna, consagrado o princípio da irretroatividade das leis como um direito fundamental do cidadão, e ainda, em dispositivo específico, a garantia ofertada ao contribuinte de que, de que é vedada a cobrança de tributo instituído ou aumentado depois de ocorrido o fato tomado pela lei como signo presuntivo de capacidade contributiva. E nem podia deixar de ser assim, em face dos sólidos fundamentos doutrinários em que se apoia esse importantíssimo princípio jurídico.

4.1.2. Os fundamentos doutrinários da irretroatividade

Sabemos todos que a irretroatividade das leis é um princípio jurídico fundamental. Faz parte da própria essência do Direito, de sorte que a sua preservação é indispensável à própria integridade, e utilidade do sistema jurídico. Um sistema de leis retroativas seria a própria negação do que há de mais essencial no Direito. A negação da própria essência do jurídico.

O Direito corporifica e realiza os valores da humanidade, entre os quais se destaca o da segurança, indispensável mesmo para a realização de todos os demais. Indispensável à própria idéia de Estado de Direito, sendo certo que "a retroatividade da lei poderia ser encarada como contradição do Estado consigo próprio, pois que, se de um lado ele faz repousar a estabilidade das relações e direitos sobre a garantia e proteção das leis que ele próprio emana, de outro lado ele mesmo não pode retirar essa estabilidade com a edição de leis retroativas."20

Na primorosa lição de José Luís Shaw, transcrita e traduzida por Maria Luiza Pessoa de Mendonça em sua excelente monografia sobre o tema:

"Se nos perguntamos porque e para que os homens estabelecem o Direito e tratamos de descobrir o sentido germinal do Direito a fim de apreendermos a sua essência, dar-nos-emos conta de que a motivação radical que determinou a existência do Direito não deriva das altas regiões dos valores éticos superiores, senão de um valor de categoria inferior, a saber: da segurança na vida social. O Direito surge, precisamente, como instância determinadora daquilo que o homem tem que se ater em suas relações com os demais: certeza, mas não só certeza teórica (saber o que deve fazer) senão também certeza prática, quer dizer, segurança, saber que isto tenderá forçosamente a ocorrer porque será imposto pela força, se preciso for, inexoravelmente."21

Cuida-se, aliás, de um princípio da mais fácil compreensão. Se o legislador pudesse editar leis retroativas, ninguém saberia mais como se comportar porque deixaria de confiar na lei, que a qualquer momento poderia ser alterada com reflexos nos fatos já ocorridos, tornando-se desta forma praticamente inexistente o padrão do certo e do errado.

Pode-se por isto mesmo, com Vicente Ráo, sustentar que o princípio da irretroatividade atende a necessidade essencial do próprio ser humano:

"A inviolabilidade do passado é princípio que encontra fundamento na própria natureza do ser humano, pois, segundo as sábias palavras de Portalis, o homem, que não ocupa senão um ponto no tempo e no espaço, seria o mais infeliz dos seres, se não se pudesse julgar seguro nem sequer quanto a sua vida passada. Por essa parte de sua existência, já não carregou todo o peso de seu destino ? O passado pode deixar dissabores, mas põe termo a todas as incertezas. Na ordem do universo e da natureza, só o futuro é incerto e esta própria incerteza é suavizada pela esperança, a fiel companheira da nossa fraqueza. Seria agravar a triste condição da humanidade querer mudar, através do sistema da legislação, o sistema da natureza, procurando, para o tempo que já se foi, fazer reviver as nossas dores, sem nos restituir as nossas esperanças."22

Por isto os sistemas jurídicos dos países civilizados consagram o princípio da irretroatividade das leis. "As leis, como regra fundamental, não retroagem, porque só assim os direitos e situações gerados na vigência delas gozam de estabilidade e segurança."23

Como forma de garantir a estabilidade das relações jurídicas, o princípio da irretroatividade há de ser universal. Editada uma lei, sem referência expressa a sua aplicação ao passado, certamente só ao futuro será aplicável. E se o legislador pretender disciplinar fatos já ocorridos, o que excepcionalmente pode fazer, terá de respeitar o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada, que no Brasil constitui expressa determinação constitucional.

4.1.3. Exemplos de amesquinhamento do princípio da irretroatividade

Não obstante a importância do princípio da irretroatividade das leis, e talvez em razão da existência de norma constitucional específica que enseja interpretação literal limitadora, esse princípio tem sido entre nós freqüentemente amesquinhado pelo fisco. E o Poder Judiciário nem sempre tem sabido amparar o direito do contribuinte, admitindo às vezes a prevalência da interpretação literal que reduz significativamente a sua utilidade.

Entre os muitos exemplos que poderiam aqui ser arrolados, de amesquinhamento do princípio da irretroatividade, vamos examinar apenas dois. Um, já apreciado pelo Supremo Tribunal Federal, que infelizmente não lhe deu o alcance que efetivamente tem para alcançar sua real finalidade que é a preservação da segurança jurídica, diz respeito ao imposto de importação. O outro, ainda objeto de disputa judicial, e sobre o qual ainda vai decidir a Corte Maior, sendo razoável esperar-se que desta vez faça valer o princípio, diz respeito ao efeito retroativo de decisão que declara a inconstitucionalidade de lei.

4.1.3.1. A irretroatividade e o imposto de importação

Já por várias vezes foram elevadas alíquotas do imposto de importação, e o fisco cobrou o imposto correspondente mediante aplicação das alíquotas majoradas, mesmo em relação a produtos que se encontravam já no território nacional no momento da majoração.

A alíquota do imposto de importação para automóveis foi elevada pelo menos duas vezes recentemente. Na primeira delas, ficou dito expressamente que o aumento seria cobrado apenas em relação às importações que ainda não estivessem em curso. Na segunda, porém, de maior expressão econômica, nenhuma ressalva se fez e a cobrança do aumento alcançou automóveis já desembarcados nos portos brasileiros, simplesmente porque não se dera ainda o respectivo desembaraço aduaneiro.

O Judiciário, infelizmente, limitou-se à interpretação literal do art. 150, inciso III, alínea "a". Afastou-se, porém, da literalidade do art. 19, do CTN, que praticamente desconsiderou, para admitir que o fato gerador do imposto de importação é o desembaraço aduaneiro dos bens importados, e assim decidiu a final a favor do fisco, validando a cobrança do imposto com alíquota elevada, mesmo em relação aos automóveis que se encontravam já no pátio da repartição aduaneira na data do aumento.

A propósito do assunto já escrevi:

"Quando se tenha de resolver questão de direito intertemporal, a entrada da mercadoria no território nacional não pode ser vista como fato isolado. Ela decorre de um conjunto de outros fatos que não podem ser ignorados, para que se faça efetiva a irretroatividade das leis como manifestação do princípio da segurança jurídica.

Obtida a guia de importação, ou forma equivalente de autorização da importação, se necessária, ou efetuado o contrato de câmbio, e efetivada a aquisição do bem no exterior, o importador tem direito a que a importação se complete no regime jurídico então vigente. Se ocorre redução de alíquota do imposto de importação antes do desembaraço aduaneiro, é razoável admitir-se que o imposto seja pago pela alíquota menor. Se ocorre aumento, devem ser respeitadas as situações jurídicas já constituídas. O art. 150, inciso III, alínea "a", combinado com o art. 5o, inciso XXXVI, da Constituição Federal o determinam.

Se o importador já está juridicamente vinculado a situação cujo desfazimento lhe causará prejuízo significativo, evidentemente está incorporado a seu patrimônio o direito de ter consumada a importação à luz do regime jurídico, inclusive tributário, então vigente. Salvo se as alterações desse regime jurídico o favoreçam, pois neste caso não se aplica o princípio da irretroatividade.

Com efeito, a não ser assim, estaria inviabilizada a importação, como atividade empresarial. O governo poderia levar à ruína qualquer importador com um simples ato de elevação de alíquota do imposto de importação, o que efetivamente não é compatível com o Estado de Direito que assegura a livre iniciativa econômica."24

Muitos importadores já haviam vendido vários dos automóveis e ficaram em situação difícil, forçados a arcar com o prejuízo decorrente do aumento da alíquota do imposto de importação. Daí em diante, ao efetuarem venda de automóveis ainda não recebidos, passaram a fazer constar dos contratos correspondentes cláusula estabelecendo que o preço respectivo seria reajustado na hipótese de aumento do imposto. Tal solução, porém, apenas em parte resolve o problema. Ampara o importador vendedor, mas deixa desprotegido o comprador, que a final poderá ter que pagar um preço que, se conhecido na data da compra, teria motivado decisão diversa. Seja como for, deixa evidente a insegurança jurídica, que o contrato apenas consegue transferir do importador vendedor para o comprador.

4.1.3.2. A irretroatividade e a declaração de inconstitucionalidade da lei tributária

Geralmente a lei tributária que é declarada inconstitucional é lei mais gravosa. Sua retirada do ordenamento jurídico, assim, favorece o contribuinte com uma redução do ônus tributário. Aliás, também em outras áreas do Direito, os dispositivos de lei declarados inconstitucionais geralmente são detrimentosos para o cidadão. Afinal, a garantia de que as leis devem ser elaboradas de acordo com a Constituição é uma garantia do cidadão, que tem exatamente a finalidade de livrá-lo de leis arbitrárias, que lhes imponham restrições ou ônus incompatíveis com os preceitos da Constituição.

É justo, pois, que a decisão que declara a inconstitucionalidade de uma lei produza efeitos retroativos, e em defesa dessa tese tem sido invocada a doutrina de Kelsen. Colhe-se isoladamente a afirmação do Mestre de Viena, segundo a qual uma lei dita inconstitucional "não é sequer uma lei, porque não é juridicamente existente e, portanto, não é possível acerca dela qualquer afirmação jurídica."25 O equívoco, porém, é evidente. Na verdade, segundo Kelsen, a afirmação de que uma lei é inconstitucional é contraditória porque todas as leis devem ser de conformidade com a Constituição. Entretanto, Kelsen explica que a afirmação de que uma lei é inconstitucional significa dizer que a lei assim qualificada "pode ser revogada não só pelo processo usual, quer dizer, por uma outra lei, segundo o princípio lex posterior derogat priori, mas também de um processo especial, previsto pela Constituição. Enquanto, porém, não for revogada, tem de ser considerada válida; e, enquanto for válida, não pode ser inconstitucional."

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Realmente, a doutrina de Kelsen é a que melhor explica o controle concentrado de constitucionalidade, atribuindo à declaração de inconstitucionalidade, nesse campo, efeitos de verdadeira produção normativa, que se operam para todos e para o futuro, como em princípio deve ocorrer com toda norma jurídica. Por isto é que no dizer de SPISSO "el efecto erga omnes de las sentencias anulatorias de las leys, residuo de su concecpción como decisión legislativa, les da a tales sistemas estrechas vinculaciones com el modelo kelseniano"26

Realmente, segundo a teoria pura do direito, a declaração de inconstitucionalidade de uma lei eqüivale a sua revogação. Tem, portanto, a natureza de ato legislativo e assim, tal como acontece com os atos legislativos em geral, não pode produzir efeitos retroativos, salvo em favor do cidadão. E esta é a doutrina que melhor preserva a segurança, e assim melhor realiza o objetivo fundamental de toda ordem jurídica democrática.

Esta é, aliás, a diretriz seguida pelo moderno constitucionalismo europeu. A Constituição da Itália, por exemplo, estabelece: "Quando a Corte declara a ilegitimidade constitucional de uma norma de lei ou de um ato com forma de lei, a norma perde a sua eficácia a partir do dia sucessivo à publicação da decisão." (art. 136)

Depois de fazer profunda análise do sistema europeu de controle de constitucionalidade, assevera Villalón:

"En este punto cabe afirmar que la tendencia general de la época es la atribución de efectos ex nunc o pro futuro a las declaraciones de inconstitucionalidad, sobre la base - ello va implícito en el "sistema europeo" - de que se trata de efectos generales o erga omnes. Absolutamente consecuente, sin embargo, sólo aparece el ordenamiento austríaco, quien habla expresa e inequívocamente de "derogación" e incluso admite una "vacatio" primero de seis meses, luego de un ano, para la entrada en vigor de dicha derogación."27

Sabemos todos que o direito austríaco muito deve ao Mestre de Viena, especialmente no que diz respeito ao tema que estamos analisando. Seja como for, verdade é que não se pode negar a adequação da tese que atribui efeitos normativos à declaração de inconstitucionalidade, com as conseqüências daí decorrentes, como instrumento de proteção da segurança jurídica.

Ressalte-se, finalmente, a lição de Paulo Bonavides, inegavelmente o grande expoente da doutrina do Direito Constitucional no Brasil, a demonstrar o ajustamento da doutrina estrangeira no caso de que se cuida. Mestre Paulo Bonavides, que em seu excelente Curso de Direito Constitucional examina com propriedade a doutrina do controle de constitucionalidade, manifesta-se decididamente contrário à aplicação pura e simples da doutrina das nulidades no campo do controle concentrado de constitucionalidade, e preconiza, como temos feito, a atribuição de efeitos ex nunc à declaração de inconstitucionalidade neste proferida, assevera com incontestável razão:

"Não se contraponha que as considerações copiosamente expendidas acerca dessa nova direção jurisprudencial se prendem a sistemas jurídicos diferentes, ao direito de outros países e que são de todo inúteis para a nossa ordem de instituições. A uma assertiva desse jaez, notoriamente inane e descabida, basta, para desvanecê-la, não perder de memória que todo o Direito Constitucional brasileiro durante a Primeira República evolveu doutrinariamente atado a clássicos do direito público norte-americano e a juizes célebres da Suprema Corte dos Estados Unidos, cujas lições sobre "judicial control" , por exemplo, foram aqui acolhidas em razões forenses, arestos, artigos de doutrina, bem como a inumeráveis publicações que opulentaram nossas letras jurídicas."28

Manifestou-se já o Supremo Tribunal Federal no sentido de que "A declaração de inconstitucionalidade de uma lei alcança, inclusive, os atos pretéritos com base nela praticados, eis que o reconhecimento desse supremo vício jurídico, que inquina de total nulidade os atos emanados do Poder Público, desampara as situações constituídas sob sua égide e inibe - ante a sua inaptidão para produzir efeitos jurídicos válidos - a possibilidade de invocação de qualquer direito. - A declaração de inconstitucionalidade em tese encerra um juízo de exclusão, que, fundado numa competência de rejeição deferida ao Supremo Tribunal Federal, consiste em remover do ordenamento positivo a manifestação estatal inválida e desconforme ao modelo plasmado na Carta Política, com todas as conseqüências daí decorrentes, inclusive a plena restauração de eficácia das leis e das normas afetadas pelo ato declarado inconstitucional.29

Manifestou-se também o Supremo Tribunal Federal no sentido de que o deferimento de medida liminar, em ação direta declaratória de inconstitucionalidade, produz efeitos "ex nunc". O ato normativo cuja constitucionalidade é discutida fica com sua vigência suspensa até o julgamento definitivo.30

Pode-se, portanto, afirmar que a jurisprudência da Corte Maior é no sentido de que a declaração de inconstitucionalidade produz efeitos "ex tunc", ou efeitos retroativos.

Isto, porém, não quer dizer que seja sempre assim. Uma decisão judicial deve ser interpretada tendo-se em vista a questão posta em apreciação. Como assevera Ganuzas, com fundamento na jurisprudência do Tribunal Constitucional espanhol, o direito à tutela jurisdicional, garantido pela Constituição daquele país, da mesma forma que é pela nossa Constituição, inclui o direito de obter uma decisão na qual se ofereça resposta judicial adequada às questões postas pelas partes.31

Assim, somente quando seja colocada perante o Supremo Tribunal Federal a questão dos efeitos retroativos prejudiciais ao contribuinte que vinha cumprindo a lei declarada inconstitucional é que se terá uma decisão que vai definir essa questão. Por enquanto, tem-se jurisprudência afirmando a produção de efeitos retroativos, ou ex tunc, mas com certeza a questão posta não foi a de saber se tais efeitos retroativos se operam contra o cidadão para favorecer o Estado. Afinal, além de ser a supremacia constitucional uma garantia do cidadão, responsável pela produção de lei inconstitucional não é este, mas o Estado.

E tudo nos leva a acreditar que o Supremo Tribunal Federal, tendo de examinar essa questão, decidirá pela preservação da segurança jurídica. Neste sentido, aliás, já o legislador cuidou de deixar aberto o caminho. Embora tenha estabelecido que a decisão em tela produz efeitos ex tunc, deixou clara a ressalva, como a seguir se verá.

A Lei nº 9.868, de 11 de novembro de 1999, que dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, estabelece que

"Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado."32

Assim, não obstante tenha consagrado implicitamente a posição que vinha sendo adotada pelo Supremo Tribunal Federal, atributiva de efeitos ex tunc às declarações de inconstitucionalidade, o legislador expressamente autorizou a Corte Maior a dispor de modo diverso, para preservar a segurança jurídica e o excepcional interesse social.

Embora desnecessária, porque na verdade o próprio Supremo Tribunal Federal já podia ter definido em sua jurisprudência tais efeitos, a edição do dispositivo legal em tela tem o mérito de contribuir para a superação de posições excessivamente cautelosas, para não dizer tímidas, da Corte Maior, que não se tem adiantado na construção do sistema jurídico.

Resta saber qual o alcance dessa prescrição legislativa, posto que a referência a razões de segurança jurídica e de excepcional interesse social na verdade não o definem. Embora tenha o indiscutível mérito de abrir caminho para o Supremo Tribunal Federal construir, como se espera, uma jurisprudência que a final preserve a supremacia constitucional, garantindo o direito fundamental à segurança jurídica, enseja também, o que se espera não venha a ocorrer, a prestação de eventuais homenagens ao autoritarismo, com o indesejável amesquinhamento da segurança jurídica.

Oportuno, portanto, é insistirmos em que uma declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, da qual resulta o restabelecimento de norma mais gravosa para o contribuinte, lesiona a segurança jurídica da mesma forma que o faz a edição de leis retroativas criando ou majorando tributos. Na verdade a segurança jurídica somente será preservada com a garantia da irretroatividade das leis e demais atos normativos, como princípio, posto que a irretroatividade garantidora dos direitos faz parte da própria essência do jurídico.

Essa irretroatividade, que há de ser garantida, não diz respeito apenas à edição de leis pelo parlamento. Ela abrange, também, os demais atos estatais que impliquem aplicação de qualquer norma a fatos do passado, e da qual decorra um detrimento para o cidadão.

4.1.3.3. A irretroatividade e a declaração de inconstitucionalidade da lei tributária

No presente momento importante questão está sendo colocada sob a apreciação do Judiciário. As empresas agroindustriais deveriam pagar sua contribuições sobre a folha de salários, relativamente ao setor industrial, e sobre a produção, relativamente ao setor agrícola ou pastoril. Ocorre que empresas cujo processo produtivo é totalmente automatizado, e por isto mesmo a mão de obra é de valor diminuto em relação à produção, provocaram, por intermédio da Confederação respectiva, o Supremo Tribunal Federal, e este declarou inconstitucional o dispositivo de lei que estabelecia aquela forma de calcular a contribuição das agroindústrias para a Seguridade Social. E em face dessa decisão o INSS passou a exigir das agroindústrias que, em relação ao setor agrícola ou pastoril tem folhas de salários elevadas e haviam pago contribuições sobre a produção, a diferença entre o valor destas e o valor das contribuições calculadas sobre as folhas de salários.

Tal exigência é incompatível com a segurança jurídica. A empresa agro-industrial praticou suas operações sob o regime jurídico de uma lei que se presumia constitucional. Formulou o seu plano de atividades com fundamento nesse regime jurídico. Estabeleceu os preços de seus produtos com base na lei vigente, presumidamente constitucional. Em face da declaração de sua inconstitucionalidade, não é razoável submetê-la a regime tributário mais gravoso.

É razoável, pois, esperar-se que o Supremo Tribunal Federal prestigie o princípio da segurança jurídica e decida que os efeitos da declaração de inconstitucionalidade operam-se retroativamente apenas a favor do cidadão, não podendo implicar gravame para o contribuinte. Assim, em relação àquelas empresas agro-industriais com folha de salário do setor rural muito elevadas, que por isto mesmo deverão pagar, em face da declaração de inconstitucionalidade, contribuição mais elevada, não terá a declaração de inconstitucionalidade efeito retroativo. E em relação àquelas empresas agro-industriais com folha de salários do setor rural diminuta, que por isto mesmo sejam favorecidas com a declaração de inconstitucionalidade, esta haverá de produzir efeitos retroativos. Afinal a Corte Maior já decidiu que o princípio da irretroatividade é uma garantia do cidadão, que não impede o Estado de dispor retroativamente em benefício do particular.33

4.1.3.4. O dever de fundamentar e os impostos flexíveis

É hoje praticamente pacífica a idéia segundo a qual o ato administrativo em geral deve ser motivado. Salvo algum dos administrativistas que ainda conservam o ranço do autoritarismo, a doutrina é firme no sentido da necessidade de fundamentação dos atos administrativos.

Em nosso Sistema Tributário prevalece o princípio da estrita legalidade. Entretanto, em relação a alguns impostos a Constituição Federal atribui certa margem de liberdade à Administração, para alterar as respectivas alíquotas. Isto acontece com os impostos sobre o comércio exterior, vele dizer, imposto de importação e de exportação, com o imposto sobre produtos industrializados, e imposto sobre operações de crédito, câmbio e seguros, e sobre títulos e valores mobiliários.

A faculdade da Administração de aumentar ou reduzir ditos impostos, porém, há de ser exercida dentro de certos parâmetros, pois a Constituição exige sejam "atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei."34

Na prática, porém, essa limitação tem sido flagrantemente burlada, mediante motivação genérica, excessivamente abrangente, que não atende a exigência constitucional, e o Poder Judiciário se tem mostrado complacente, admitindo a validade dos atos que elevam alíquotas daqueles impostos de forma inteiramente discricionária.

Aliás, mesmo que se entenda tratar-se de poder discricionário, o controle judicial é cabível, e a motivação objetiva exigível. Hoje até por força de dispositivo legal expresso35, porque a alteração de alíquota de um imposto, para maior, é ato administrativo que sempre afeta interesses e agrava deveres ou encargos. E mesmo quando se trate de redução, algum interesse poderá estar sendo afetado, especialmente o próprio interesse público na arrecadação do imposto.

A motivação dos atos administrativos em geral é indiscutivelmente um instrumento de controle. Seja do controle judicial, seja do controle diretamente democrático, configurando-se como elemento que vai permitir à opinião pública ter a certeza a respeito da legitimidade e racionalidade do exercício do poder pela Administração, na medida em que através dela os órgãos administrativos reconduzem seus atos a uma regra de Direito, prestando assim contas do uso de seus poderes e evitando que suas decisões apareçam como algo meramente voluntarista ou arbitrário.36

Para que exista efetivo controle, porém, mister se faz que a motivação seja objetiva e específica. Não pode ficar perdida em conceitos vagos. Não pode ser motivação que se preste para tudo, pois se a tudo serve não serve a nada.

Em relação ao imposto de exportação, por exemplo, nos termos da Lei nº 9.716, de 26.11.98, tem-se que a alíquota "ad valorem" é de 30% (trinta por cento ), "facultado ao Poder Executivo reduzi-la ou aumentá-la, para atender aos objetivos da política cambial e do comércio exterior." ( Art. 3º ). E a alíquota máxima não pode ser superior a cento e cinqüenta por cento ( Art. 3º, parágrafo único ).

A rigor, cada redução, ou aumento, tem de ser objetivamente justificado. Não basta que o ato do Poder Executivo diga que a redução, ou o aumento, se faz para atender aos objetivos da política cambial e do comércio exterior, reproduzindo-se as expressões genéricas utilizadas na lei. Tal justificação, feita nesses termos, nada justifica. Serve para toda e qualquer situação e, por isto mesmo, para nada serve, a não ser para evidenciar o exercício arbitrário do poder de tributar.37

4.1.3.5. A contribuição de melhoria

Com a contribuição de melhoria temos outro exemplo de situação que demonstra o acerto da advertência do Professor Bonavides, quanto àquele aspecto desintegrativo dos fundamentos jurídicos da ordem constitucional que tem acompanhado de perto a crise das Constituições, contribuindo largamente a desprestigiá-las e desvalorizá-las como formas clássicas idôneas para afiançar o exercício de poderes limitados nos rígidos moldes de um Estado de direito, protetor das liberdades humanas.

Sobre o tema já escrevemos:

"Autorizando a instituição de contribuição de melhoria, o legislador constituinte autorizou a instituição de uma espécie de tributo que tem os seus contornos conhecidos, resultantes da própria razão de ser, de sua finalidade essencial.

A contribuição de melhoria, doutrina com propriedade Aliomar Baleeiro, consubstancia "a recuperação do enriquecimento ganho por um proprietário em virtude de obra pública concreta no local da situação do prédio." (Aliomar Baleeiro, Direito Tributário Brasileiro, 10ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 1981, p. 359 ). E se é recuperação, não pode ter valor mais elevado do que o desembolso a ser recuperado.

Da obra pública resultam vantagens gerais para toda a comunidade, mas resulta uma vantagem especial para os proprietários de imóveis no local em que se encarta. Não é justo que estes proprietários usufruam dessa valorização, decorrente de obra realizada com o dinheiro do Tesouro Público. Não é justo que os contribuintes em geral paguem impostos, e do emprego dos recursos públicos resulte valorização imobiliária para determinadas pessoas. Dessa valorização o Tesouro tem o direito de recuperar o que gastou com a obra respectiva. Por isto é que os financistas imaginaram um tributo capaz de fazer retornar ao Tesouro o valor despendido em obras públicas, até o limite da valorização imobiliária decorrente.

A não ser para cumprir essa finalidade, a contribuição de melhoria não tem nenhuma razão de ser. Por isto mesmo, aliás, a Constituição Federal de 1988 poderia, em seu art. 145, inciso III, ter feito referência, simplesmente, a contribuição de melhoria. Isto não poderia ser tido como autorização ao legislador para instituí-la sem os contornos que a distinguem das demais espécies de tributo.

Em excelente monografia a respeito dessa espécie de tributo, assevera Cadavid, com inteira propriedade: "Como imposición fiscal de finalidad, el destino de la contribuición no puede ser outro que atender a los costos de la obra de interés público o, subsidiariamente, para los casos en que la obra se haya construído con anterioridad a la contribución, recuperar para la entidad pública los dineros invertidos en su ejecución. ( Alberto Fernández Cadavid, La Contribución de Valorización en Colombia, Segunda edición, Temis, 1981, p.23 ).38

Referindo-se à contribuição de melhoria, evidentemente o constituinte não precisava ser minudente, não precisava, como efetivamente não precisa, referir-se aos elementos que integram o conceito dessa espécie tributária. Entretanto, doutrinadores menos atentos para aquele aspecto desintegrativo dos fundamentos jurídicos da ordem constitucional que tem acompanhado de perto a crise das Constituições, terminam por colaborar para o agravamento dessa crise, preconizando a necessidade de normas minudentes na Constituição.

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Sobre o autor
Hugo de Brito Machado

professor titular de Direito Tributário da UFC, presidente do Instituto Cearense de Estudos Tributários (ICET), juiz aposentado do Tribunal Regional Federal da 5ª Região

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACHADO, Hugo Brito. A supremacia constitucional como garantia do contribuinte. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 55, 1 mar. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2715. Acesso em: 24 abr. 2024.

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