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A supremacia constitucional como garantia do contribuinte

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01/03/2002 às 00:00
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SUMÁRIO: 1. Introdução 2. Importância do Direito Constitucional Tributário. 2.1.Universalidade do arbítrio em matéria de tributação 2.2. A importância da supremacia constitucional 3. Supremacia constitucional e controle do poder 3.1. Os caminhos 3.2. A Constituição minudente 3.3. O desenvolvimento dos princípios 3.4. Responsabilidade pessoal do agente público 4. Exemplos do Amesquinhamento de Princípios Fundamentais 4.1. O princípio da irretroatividade 4.1.1. Os dispositivos de nossa Constituição Federal 4.1.2. Os fundamentos doutrinários da irretroatividade 4.1.3. Exemplos de amesquinhamento do princípio da irretroatividade 4.1.3.1. A irretroatividade e o imposto de importação 4.1.3.2. A irretroatividade e a declaração de inconstitucionalidade da lei tributária 4.1.3.3. A irretroatividade e a declaração de inconstitucionalidade da lei tributária 4.1.3.4. O dever de fundamentar e os impostos flexíveis 4.1.3.5. A contribuição de melhoria


1. Introdução

Muitos estudiosos do Direito Tributário ainda não se deram conta de que o poder de tributar não pode ser limitado apenas pela lei,1 posto que muitas vezes o arbítrio estatal se manifesta pela voz do próprio legislador. Essa pressão gigantesca do poder de tributar, que não poucas vezes verga o legislador e o faz produzir normas de tributação contrárias aos princípios fundamentais do Direito Tributário.

Temos sustentado que a supremacia constitucional é o único instrumento que o Direito pode oferecer contra o arbítrio, quando deste se manifesta na atividade legislativa, e temos visto com satisfação que essa nossa idéia está na mente de eminentes constitucionalistas e tributaristas, que se preocupam com os mecanismos jurídicos de contenção do arbítrio estatal, e mesmo diante de constituições nas quais, diferentemente da nossa, estão ainda ausentes normas específicas de regramento da atividade tributária.

Com efeito, é patente e universal o desenvolvimento de práticas arbitrárias, tanto por parte do legislador, como da administração tributária, de sorte que se faz imprescindível a reflexão, e o debate a respeito da supremacia constitucional, especialmente no que diz respeito à interpretação das normas da Constituição, tarefa na qual ainda se vê com freqüência a predominância do elemento literal, em detrimento ou mesmo com a completa desconsideração dos elementos teleológico e sistêmico, não obstante estes importantes elementos da hermenêutica constitucional sejam sempre lembrados pelos defensores da Fazenda Pública quando sustentam teses convenientes para o aumento da arrecadação2.

Por tal razão, aliás, não estamos seguros de que o melhor caminho seja o trilhado pelo constituinte brasileiro, que optou pela inclusão no texto da Lei Maior de normas específicas, minudentes, a respeito de tributação. Talvez esse caminho leve a um resultado oposto àquele que se tem pretendido. Em vez de fortalecer as garantias do contribuinte, talvez termine por enfraquecer a supremacia constitucional, como adverte, com inteira propriedade, o Professor Paulo Bonavides, um dos mais notáveis estudiosos da Ciência Política e do Direito Constitucional da atualidade. A propósito da postura do constituinte, em vários países, enaltecida por Mário Gonzalez, de incluírem nas constituições verdadeiros planos de política econômica, faz uma ressalva que está a merecer profunda meditação, afirmando:

"Houve, efetivamente, essa mudança. Mas à acuidade crítica de muitos constitucionalistas, deslumbrados com essa portentosa variação, escapou aquele aspecto desintegrativo dos fundamentos jurídicos da ordem constitucional que tem acompanhado de perto a crise das Constituições, contribuindo largamente a desprestigiá-las e desvalorizá-las como formas clássicas idôneas para afiançar o exercício de poderes limitados nos rígidos moldes de um Estado de direito, protetor das liberdades humanas. A Constituição - plano ou programa de política econômica posto no ponto mais alto da escala hierárquica dos valores políticos - desvirtua e desfigura o sentido tradicional das Constituições, compreendidas fundamentalmente pelo aspecto jurídico, que urge salvaguardar. Nos países socialistas, por exemplo, a Constituição tem mais valia sócio-econômica do que propriamente jurídica, é mais um instrumento programático de governo do que um esquema de repartição de competências entre órgãos do poder, harmônicos e independentes, ou de atribuição de direitos no sentido tradicional das Constituições ocidentais."3

Assim é que, sem a pretensão de produzir doutrina, até porque desprovidos do conhecimento e do talento a tanto indispensáveis, ousamos colocar aqui algumas idéias para a meditação dos doutos, especialmente daqueles que se dedicam aos estudos da tributação e alimentam seriamente a preocupação de contribuir na edificação de instituições capazes de, neste campo, tornar efetivo o controle jurídico do poder de tributar.

Não obstante o afirmado em nossa Constituição Federal, verdade é que ainda não temos um Estado Democrático de Direito e a relação tributária ainda não é uma relação estritamente jurídica, tantas e tão flagrantes que são as violações da ordem jurídica praticadas pelo próprio Estado. Violações que incrementam na consciência dos contribuintes a idéia de que a lei é apenas um instrumento de opressão, porque não se mostra eficaz para conter os abusos da autoridade.

A eficácia do Direito funda-se na crença que alimenta a expectativa de segurança e de justiça. Na medida em que o responsável maior pela preservação da ordem jurídica, o Estado, titular do poder institucional mais forte no mundo, exerce o seu poder tributário violando essa ordem jurídica, menor é a crença do contribuinte no Direito, e em conseqüência, maior é a tendência para o descumprimento de seu dever como cidadão.

Para estimular no contribuinte o cumprimento de seu dever de cidadão, que em matéria de tributação se traduz no dever de pagar o tributo devido, temos de evitarmos que aumente aquela descrença, e ainda, positivamente, temos de contribuir para que se restabeleça e aumente nele a crença no Direito, a crença de que a relação tributária é uma relação jurídica e não uma relação simplesmente de poder. E para tanto é importante a edificação de instituições que inibam o arbítrio estatal, sendo válida, neste sentido, qualquer contribuição, por mais modesta que seja.

É com este propósito, com o propósito de contribuir, ainda que modestamente, para a edificação de nossas instituições jurídicas no campo da tributação, que vamos aqui procurar demonstrar a importância vamos examinar alguns aspectos do que podemos denominar Direito Constitucional Tributário, especialmente os que se referem aos princípios da legalidade, da irretroatividade, da isonomia e da capacidade contributiva.


2. Importância do Direito Constitucional Tributário.

2.1. A universalidade do arbítrio em matéria de tributação

Em rápida pesquisa que realizamos, podemos constatar que a importância do Direito Constitucional Tributário vem sendo destacada em diversos países, entre os quais na Alemanha, na Bélgica, em Portugal, na Espanha e em países na América Latina.

Isto é suficiente para demonstrar a universalidade do arbítrio em matéria de tributação. Há, todavia, referência expressa a essa universalidade, em texto recente de Rubén O. Asorey, que afirma, sem meias palavras:

Este fenómeno no reconoce fronteras, ni identificación com organismos, ni personas, gozando de universalidad y comprendiendo por igual a organismos de recaudación impositivos, aduaneros y previsionales, federales o locales, de países desarrollados o en vías de desarrollo.4

Asorey demonstra também a importância da supremacia constitucional como instrumento para o controle desse arbítrio. E idêntica demonstração pode ser vislumbrada, também, em manifestações várias.

2.2. A importância da supremacia constitucional

Klaus Tipke analisa os princípios fundamentais da tributação, em excelente estudo cujo título, El Derecho Tributario Constitucional en Europa, já está a indicar a importância da supremacia constitucional no trato das questões tributária, não apenas na Alemanha, mas em toda a Europa. Destacamos nesse estudo a análise do princípio da capacidade econômica e sua não aplicação aos impostos com função extrafiscal, que o autor denomina impostos de ordenamento, à consideração de que

"... resulta lícito y obligado realizar una ponderación de bienes jurídicos entre el principio de igualdad en la tributación com arreglo a la capacidad económica y otros principios constitucionales. Sim embargo, no es lícito eludir el principio de igualdad tributaria seguún la capacidad económica – principio decisivo de la justicia tributaria en un Estado de Derecho – mediante cualesquiera consideraciones de política extrafiscal. Por el contrario, la medida de ordenamiento deberá tener al menos la misma incidencia sobre el bien comum – si no mayor – de la que supone la pura tributación con arreglo a la capacidad económica. Las exenciones y bonificaciones fiscales no deben establecerse según el capricho del legislador."5

Na Bélgica, Elisabeth Willemart começa uma excelente monografia sobre o tema apoiando-se em consistente doutrina do moderno constitucionalismo para afirmar:

"Le droit fiscal n’ échappe pas au profond mouvement de constitutionnalisation que marque, depuis plusieurs annéss, les différentes branches du droit. (sur ce thème, voy. not. F. DELPÉRÉE, "La constitutionnalisation de l´ordre juridique belge" R.B.D.C., 1998, pp. 219-243). La valorisation des dispositions que la Constitucion consacre à la fiscalité s’impose même avec une évidence singullière. Instrument d’ un pouvoir exercé sur les citoyens, le droit fiscal trouve en effet directement son assise das la Constitution (Le droit fiscal partage notamment cette particularité avec le droit pénal. Voy. M. VERDUSSEN, Contours et enjeux du droit constitutionnel pénal, Bruxelles, Bruylant, 1995) : le pouvoir fiscal émane de la Nation; il est exercé de la manière etabilie par la Constitucion." (Const., art. 33: Tous les pouvoirs émanent de la Nation. Ils sont exercés de la manière établie par la Constitution".)6

Na Itália, Uckmar ressalta a importância da supremacia constitucional afirmando que a Constituição italiana contém algumas normas concernentes, especificamente, a matéria tributária, e se reportando a manifestações da Corte Constitucional daquele país, assim:

"El art. 53 de la Constitución aparece, en definitiva, aplicado asiduamente en correlación al art. 3 (que postula el principio de la "igualdad" ). Recuerdo particularmente las sentencias por las cuales la Corte há declarado

a) inconstitucionales las normas que, a los fines del impuesto a las ganancias de las personas físicas (D.P.R., 29 de septiembre de 1973, n. 597), sancionaban el denominado cúmulo de los réditos de los cónyuges no legal ni efectivamente separados (Corte Const., 14 de julio de 1976, n. 179);

b) inconstitucionales las normas que a los fines de los impuestos comunales sobre el incremento del valor de los inmuebles (D.P.R., 26 de octubre de 1972, n. 643), no obstante que sujetaba a tributación incrementos de valores formados en largos períodos de tiempo (hasta diecisiete años y aún más ), "no preveían correctivos adecuados a la diversidad de los períodos de formación, es decir, a fines de obviar las consecuencias manifiestamente inicuas que, en el largo período, se derivarían de una variación más amplia del signo monetario" (Corte Const., 8 de noviembre de 1979, n. 126); e

c) inconstitucionales las normas que, a los fines del impuesto local sobre los réditos (D.P.R., 29 de septiembre de 1973, n. 579 hoy suprimido ), excluín del tributo sólo a los réditos de trabajo dependiente y no a aquellos que derivaban del trabajo autónomo, no asimilables al rédito de empresa (Corte Const., 26 de marzo de 1980, n. 42 ).7

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Em Portugal já de algum tempo podem ser anotadas manifestações a respeito da supremacia constitucional e sua importância em matéria tributária. É sabido que o fato gerador da obrigação tributária deve ser um signo presuntivo de capacidade contributiva. Deve ser um indício que autoriza a presunção de capacidade econômica para o pagamento do tributo. Cardoso da Costa, embora afirme a liberdade do legislador para a escolha desse fato indício de capacidade contributiva, aponta o limite que a este se impõe, doutrinando com propriedade:

"Qual seja ele para cada imposto é coisa evidentemente dependente da escolha que o legislador faça. O que a este respeito cabe sublinhar é que o legislador detém nesta matéria ampla liberdade, podendo, em princípio, arvorar qualquer facto ou situação da vida real em índice da capacidade contributiva dos cidadãos e ligar-lhe consequentemente uma obrigação de imposto. O legislador determinar-se-á, fundamentalmente, por considerações extra-jurídicas – em considerações de ordem económica, política e técnica, como a estrutura económica, as necessidades financeiras, o peso da opinião pública – mas sempre terá de respeitar, em todo o caso, os limites constitucionais que depara, e que são sobretudo os decorrentes do princípio da igualdade tributária, ...".8 (o destaque não é do original )

Na Espanha e em países da América Latina a situação não é diferente. Rubén O. Asorey, por exemplo, assevera que:

El Derecho tributario debe, en forma substancial, su desarrollo y evolución al esquema esencial de la relación jurídica tributaria. Los enfoques dinámicos o procedimentalistas aparecidos a partir de la década del sesenta no pudieron relativizar el papel trascendental de esa relación dentro de la teoría general del Derecho tributario.

Ese núcleo esencial, objeto de los más profundos análisis y disquisiciones intelectuales, permitió la incorporación legislativa de la juridicidad de tales desarrollos dogmáticos, convirtiendo en anatema el principio de subordinación del administrado a un poder estatal situado en un plano superior y consagrando la plena sumisión de los dos sujeitos de la relación al mismo plano de igualdad.

Sin embargo, el ejercicio de los derechos y obligaciones de esa relación, por efectos de diversos factores jurídicos y metajurídicos, fue sufriendo la erosión ostensible de la situación del sujeto pasivo, es decir, de los contribuiyentes y responsables. Quizá la razón fundamental de ello radica en la siempre bienvenida lucha contra la evasión , que lleva al Estado al desmadre de calificar y tratar como evasores a quienes actuando de buena fe optan por una alternativa legal de mejor opción económica, a la presencia de criterios eficientistas que tratan de superar las deficiencias y carencias de los organismos de recaudación com medidas que devienen arbitrarias por las más diversas razones, y a la actuación desmedida de funcionarios bajo la invocación de conceptos vagos e inasibles.

En fin, se originan en la vida del Derecho tributario una serie de abuso, desvíos, arbitrariedades, donde el sujeito activo actúa fuera de la ley y del derecho, a través de comportamientos anómalos, utilizando en ciertos casos máscaras legitimadoras de la juridicidad, como seudointerpretaciones reñidas com las garantías constitucionales.

A partir de los años ochenta se comienza a prestar atención a esta situación, no ya desde la teoría general del Derecho fiscal, sino desde la práctica y ejercicio de los derechos y deberes de la relación.9

Jaramillo também sustenta a colocação das questões fundamentais do Direito Tributário no plano da Constituição, questionando a posição da disciplina que estuda tais questões, se deve ser integrada ao Direito tributário, ou ao Direito constitucional, ou se deve ser considerada uma disciplina autônoma. Para ele os princípios fundamentais da atividade financeira, por óbvias razões, estão nas Constituições Políticas, o que tem dado lugar a que se sustente a existência de um Direito constitucional financeiro, ou ao menos do Direito constitucional tributário. E assevera que:

"Las Constituciones ecuatorianas han mostrado preocupación por los temas tributarios, los que hasta la fecha preponderan."10


3. Supremacia constitucional e controle do poder

3.1. Os caminhos

São tantos os exemplos que podem ser citados, de abusos do poder estatal praticados pela via legislativa, que ninguém mais pode ter dúvida quanto à insuficiência do princípio da legalidade como garantia do contribuinte. O legislador no mais das vezes submete-se às pressões do governo, que dispõe numerosos instrumentos para exercer influência sobre o parlamento. Por outro lado, em alguns países o próprio governo legisla, como acontece no Brasil, com o decreto-lei do regime constitucional anterior, e com as medidas provisórias do regime constitucional vigente.

A questão que se coloca então é a de saber qual o caminho mais adequado para a efetiva garantia do contribuinte contra abusos do poder de tributar, se a colocação, na Constituição, de regras de tributação minudentes, ou se a utilização dos princípios constitucionais fundamentais, que se refletem também no âmbito das relações de tributação e podem ser desenvolvidos na doutrina e na jurisprudência, mediante uma interpretação consentânea com a finalidade desses princípios.

Vejamos, ainda que em traços superficiais, cada um desses caminhos.

3.2. A Constituição minudente

No Brasil o Constituinte optou pelo primeiro desses caminhos. Desde o regime constitucional anterior tínhamos já a Constituição mais rica do mundo em normas pertinentes à tributação.11 Na vigente Constituição, então, foram albergadas normas que a rigor deveriam estar nos regulamentos de tributos. E ainda assim não se conseguiu controlar os abusos.

Por outro lado, criou-se, mesmo na mente de juristas respeitáveis, a idéia de que as normas da Constituição devem ser expressas, mesmo quando se reportem a conceitos conhecidos, sem o que o legislador ficará livre para o trato dos assuntos, sem as limitações decorrentes daqueles conceitos que, utilizados pela norma da Constituição, passaram a constituir elementos decisivos na determinação do significado desta. Exemplo desse grave equívoco em que incorrem alguns juristas é o da contribuição de melhoria, que mais adiante vamos examinar.

Problemas outros também já foram suscitados em torno do alcance de princípios constitucionais no que diz respeito a questões tributárias, e infelizmente se viu que o trato minudente talvez tenha tolhido a mente do intérprete e aplicador da Constituição. Temos visto, em conseqüência, serem amesquinhadas garantias fundamentais do cidadão contribuinte, em situações as mais diversas. Entre as garantias amesquinhadas pelas mentes habituadas às normas minudentes, destacamos para estudo, nesta oportunidade, a irretroatividade das leis e a exigência de fundamentação dos atos administrativos.

3.3. O desenvolvimento dos princípios

Parece, em face do que se tem observado, ser de duvidosa utilidade a colocação de normas minudentes na Constituição. Mais do que inútil, esse caminho parece nos demonstrar que tem razão o Professor Paulo Bonavides quando se refere àquele "aspecto desintegrativo dos fundamentos jurídicos da ordem constitucional que tem acompanhado de perto a crise das Constituições, contribuindo largamente a desprestigiá-las e desvalorizá-las como formas clássicas idôneas para afiançar o exercício de poderes limitados nos rígidos moldes de um Estado de direito, protetor das liberdades humanas."

Uma das facetas pelas quais pode ser vista essa desintegração dos fundamentos jurídicos da ordem constitucional é a extrema facilidade com que são alteradas as normas da Constituição. Alegando a necessidade de preservar a governabilidade, o governo geralmente consegue a aprovação de emendas que aos poucos alteram completamente a Constituição, como tem acontecido no Brasil.

Outra faceta pela qual se revela a aludida desintegração é o menosprezo que as autoridades do governo devotam aos princípios constitucionais na aplicação da lei tributária, amesquinhando completamente princípios fundamentais, como adiante será demonstrado.

3.4. Responsabilidade pessoal do agente público

O caminho que nos parece necessário trilhar, para reduzir a limites toleráveis as práticas abusivas de autoridades, é a responsabilidade pessoal do agente público. Nos dias atuais quem corporifica o Estado age de modo praticamente irresponsável no que diz respeito aos direitos individuais que eventualmente lesiona. O agente do fisco, que formula em auto de infração exigência que sabe ou deveria saber indevida, não sofre nenhuma conseqüência de seu ato ilícito, não obstante esteja este legalmente definido como crime de excesso de exação.12 Não se conhece um único caso de ação penal por excesso de exação, e não é razoável acreditar-se que nenhum agente do fisco o tenha praticado.

Preconizamos, pois, a responsabilidade do agente público por lesões que pratique a direitos do contribuinte, sem prejuízo da responsabilidade objetiva do Estado. Entendemos que esta é a forma mais adequada de se combater o cometimento arbitrário do fisco.

É sabido que a indenização por cometimento ilícito tem dupla finalidade. Uma, a de tornar indene, restabelecer, o patrimônio de quem sofreu o dano. A outra, a de desestimular a conduta ilícita de quem o causou. A responsabilidade objetiva do Estado por danos ao cidadão pode assegurar a este a indenização correspondente, e assim fazer com que se efetive a primeira dessas finalidades da indenização, mas não faz efetiva a segunda, pois não atua como fator desestimulante da ilegalidade, pois quem a pratica não suporta o ônus da indenização que, sendo paga pelos cofres públicos, recai a final sobre o próprio universo de contribuintes.

Nas relações tributárias não são poucas as práticas que podem ensejar a responsabilidade pessoal do agente público. Quem exerce atividade direta ou indiretamente ligada à tributação sabe muito bem que os agentes do fisco geralmente não respeitam os direitos do contribuinte e tudo fazem para arrecadar mais, ainda que ilegalmente. Pode-se mesmo afirmar, sem exagero, que na relação tributária quem mais viola a ordem jurídica é a Fazenda Pública. Desde as violações mais flagrantes, como a não devolução de empréstimos compulsórios, e de tributos pagos indevidamente,13 até as violações oblíquas, como as denominadas sanções políticas, que configuram verdadeiros desvios de finalidade ou abuso de poder.

É certo que a responsabilidade pessoal não existirá para o agente público que atua em cumprimento a determinação oficial, posta em ato administrativo de efeito concreto, ou em ato administrativo de caráter normativo. Em tais casos, se o ato administrativo em cuja obediência atua o agente público é arbitrário, a responsabilidade será da autoridade que o emitiu, e nos casos em que o arbítrio esteja na própria lei não haverá responsabilidade da autoridade administrativa que simplesmente a aplica, pois essa autoridade, como temos sustentado, não pode eximir-se de cumprir a lei alegando a sua inconstitucionalidade.

Quando o arbítrio reside na própria lei, tem-se caso de inconstitucionalidade que há de ser declarada pelo Judiciário. Uma vez transitada em julgado essa declaração, porém, a autoridade administrativa já não pode aplicar a lei inconstitucional. Se o fizer – e na prática são inúmeros os casos em que o fez – poderá ser pessoalmente responsabilizada.

É certo que a declaração de inconstitucionalidade no denominado controle difuso não produz efeitos gerais, e por isto é possível sustentar-se que a autoridade administrativa não está obrigada a abster-se de aplicar a lei que nessa via tenha sido declarada inconstitucional, antes da suspensão da vigência desta pelo Senado Federal. Na verdade, porém, assim não é. Uma vez declarada a inconstitucionalidade de uma lei, em decisão definitiva, a autoridade administrativa já não a pode aplicar. Se a Fazenda Pública é parte no processo onde se deu a declaração de inconstitucionalidade – como geralmente acontece em matéria tributária – não há dúvida de que todas as autoridades administrativas a ela vinculadas estarão obrigadas a não mais aplicar a lei declarada inconstitucional. Tanto em razão do efeito processual que se produz em relação à parte, como em razão do princípio da harmonia entre os Poderes do Estado14.Se a Fazenda Pública não é parte no processo onde se deu a declaração de inconstitucionalidade – o que dificilmente ocorrerá em matéria tributária – mesmo assim, em razão do dever de preservar a harmonia entre os Poderes do Estado, as autoridades administrativas estarão, todas, impedidas de seguirem aplicando a lei declarada inconstitucional.

Realmente, nossa Constituição Federal consagra a separação de poderes, mas diz que estes são independentes e harmônicos entre si, e para que exista realmente essa harmonia, faz necessário que as autoridades de um respeitem as decisões das autoridades dos outros. Assim, se o órgão máximo do Poder Judiciário afirma, em decisão definitiva, que uma lei é inconstitucional, as autoridades dos dois outros Poderes devem respeitar esse entendimento, e portanto devem deixar de aplicar a lei declarada inconstitucional. Elas não podem, é certo, declarar a inconstitucionalidade. Nem deixar de aplicar uma lei que não tenha sido declarada inconstitucional, porque até que isto ocorra prevalece a presunção de constitucionalidade. Mas, declarada a inconstitucionalidade em decisão definitiva pelo Supremo Tribunal Federal, a harmonia entre os poderes impõem às autoridades o dever de levar em conta tal declaração, mesmo que o Senado Federal ainda não tenha decidido suspender a vigência da lei em questão.

Em se tratando de declaração de inconstitucionalidade proferida no controle concentrado, dúvida não pode haver quanto aos efeitos gerais que esta produz. Assim, dúvida não pode haver de que todas as autoridades, sejam fazendárias ou não, estarão impedidas de aplicar a lei declarada inconstitucional.

Nos casos em que a autoridade administrativa esteja, como acima explicado, no dever de não aplicar a lei que foi declarada inconstitucional, se o faz comete ato ilícito, pelo qual poderá ser pessoalmente responsabilizada. E a responsabilização pessoal da autoridade é, repita-se, o caminho mais adequado no combate às práticas arbitrárias do Poder Público.

Há, é certo, quem entenda que a partir da Constituição de 1946, que consagrou a responsabilidade objetiva do Estado15 já não tem o prejudicado ação contra o servidor público, que apenas responde perante a Administração, em ação regressiva16. Esse entendimento, porém, não prevaleceu no Supremo Tribunal Federal, que preferiu o entendimento segundo o qual a responsabilidade objetiva do Estado não exclui a responsabilidade subjetiva do servidor, nem impede a propositura da ação, pelo particular prejudicado, contra o servidor e também contra o Estado, em litisconsórcio facultativo17.o

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Sobre o autor
Hugo de Brito Machado

professor titular de Direito Tributário da UFC, presidente do Instituto Cearense de Estudos Tributários (ICET), juiz aposentado do Tribunal Regional Federal da 5ª Região

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACHADO, Hugo Brito. A supremacia constitucional como garantia do contribuinte. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 55, 1 mar. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2715. Acesso em: 22 dez. 2024.

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