5. Considerações iniciais sobre as espécies de responsabilidade civil
A responsabilidade civil desfruta de natureza unívoca, indivisível. No cerne da exegese jurídica, exprime, de modo derivado, as conseqüências advindas da necessidade de composição dos conflitos sociais. Contudo, em virtude de particularidades na ordem dogmática, esfuzila lampejos de taxionomia sistemática. Nesse diapasão, insta ressaltar as classificações abalizadas pela doutrina.
5.1. Responsabilidade civil subjetiva
A responsabilidade civil subjetiva insere-se na classificação das espécies de responsabilidade quanto ao fundamento. De fato, o alicerce da responsabilidade subjetiva é a idéia de ato ilícito, de natureza dolosa ou culposa, apto a ensejar a produção do dano. A responsabilidade subjetiva escora-se na idéia de culpa lato sensu. Dessa forma, para que ocorra a devida resolução da lide se torna imprescindível a prova da culpa do agente, pressuposto insofismável à reparação do dano.
A doutrina subjetiva, germinada com a Lex Aquilia, encontrou cristalização ostensiva no artigo 1.382, do Código Napoleão, cuja dicção se transcreve: “Tout fait quelconque de l’homme, qui cause à autrui un dommage, oblige celui par faute duquel il est arrivé, à le réparer”.
Verifica-se, amiúde, que o pressuposto fundamental para a reparação do dano causado se pauta na noção de culpa. O Código Civil Brasileiro de 2002 consagrou a responsabilidade subjetiva no artigo 186, ao dispor que “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.” Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho relevam o escopo precípuo da responsabilidade subjetiva:
A noção básica da responsabilidade civil, dentro da doutrina subjetiva, é o princípio segundo o qual cada um responde pela própria culpa – unuscuique sua culpa nocet. Por se caracterizar em fato constitutivo do direito à pretensão reparatória, caberá ao autor, sempre, o ônus da prova de tal culpa do réu.
Todavia, há situações em que o ordenamento jurídico atribui a responsabilidade civil a alguém por dano que não foi causado diretamente por ele, mas sim por um terceiro com quem mantém algum tipo de relação jurídica.[31]
Quando o agente causa o dano de forma imediata, responde diretamente pelo dano causado. Significa dizer que a responsabilidade interliga o próprio causador do dano à reparação. A responsabilidade civil pode ser, também, mediata, quando o ofensor responde por ato de terceiro a ele indiretamente associado. Na responsabilidade civil indireta (transubjetiva) presume-se o elemento culpa, mormente em virtude da preeminência do dever geral de vigilância do legalmente responsável. Afigura-se, assim, a classificação da responsabilidade civil, quanto ao agente, em direta e indireta.
Caio Mário da Silva Pereira elucida a hipótese vertente, salientando:
Como visto aqui, na tese da presunção de culpa subsiste o conceito genérico de culpa como fundamento da responsabilidade civil. Onde se distancia da concepção subjetivista tradicional é no que concerne ao ônus da prova. Dentro da teoria clássica da culpa, a vítima tem de demonstrar a existência dos elementos fundamentais de sua pretensão, sobressaindo o comportamento culposo do demandado. Ao se encaminhar para a especialização da culpa presumida, ocorre uma inversão do onus probandi. Em certas circunstâncias, presume-se o comportamento culposo do causador do dano, cabendo-lhe demonstrar a ausência de culpa, para se eximir do dever de indenizar. Foi um modo de afirmar a responsabilidade civil, sem a necessidade de provar o lesado a conduta culposa do agente, mas sem repelir o pressuposto subjetivo da doutrina tradicional.
Em determinadas circunstâncias é a lei que enuncia a presunção. Em outras, é a elaboração jurisprudencial que, partindo de uma idéia tipicamente assentada na culpa, inverte a situação impondo o dever ressarcitório, a não ser que o acusado demonstre que o dano foi causado pelo comportamento da própria vítima.[32]
Em síntese, a teoria clássica admitia a culpa como fundamento da responsabilidade civil. Inexistindo a primazia da culpa, não subsistia, consoante óbvia ilação, a responsabilidade civil.
5.2. Responsabilidade civil objetiva
Em continuidade à taxionomia da responsabilidade civil, no tocante ao fundamento invocado, floresce a responsabilidade civil objetiva.
A responsabilidade civil objetiva abstrai a noção de culpa, sobrelevando a teoria do risco. Nessa esteira, a conduta culposa ou dolosa delineia contornos de irrelevância, uma vez que para a configuração da responsabilidade se torna suficiente a materialização de nexo causal interligando a ação e o dano sofrido pela vítima. O princípio do risco, propugnado pela responsabilidade civil objetiva, espelha a necessidade de segurança jurídica. De fato, a prova da culpa do agente, em inúmeras ocasiões presentes na vida social, exsurge intransponível ao ofendido, razão pela qual a lei dispensa o onus probandi. Meditando acerca da transmutação dos fenômenos sociais, José Joaquim Calmon de Passos ressalta a concepção originária da teoria do risco, fundindo as facetas sociológica e jurídica:
Os proveitos e vantagens do mundo tecnológico são postos num dos pratos da balança. No outro, a necessidade de o vitimado em benefício de todos poder responsabilizar alguém, em que pese o coletivo da culpa. O desafio é como equilibrá-los. Nessas circunstâncias, fala-se em responsabilidade objetiva e elabora-se a teoria do risco, dando-se ênfase à mera relação de causalidade, abstraindo-se, inclusive, tanto da ilicitude do ato quanto da existência de culpa.[33]
Nesse diapasão, a responsabilidade civil subjetiva tornou-se insuficiente para solucionar a totalidade dos casos sincretizados na sociedade. A criação da teoria do risco viabilizou a ótica da exclusiva reparação do dano na responsabilidade civil. De fato, se a vítima fosse compelida a provar amiúde a existência de culpa do agressor, sucumbiria, irrefragavelmente, ante a pretensão de obter ressarcimento.
Sílvio de Salvo Venosa sintetiza a teoria do risco, aduzindo:
A jurisprudência, atendendo a necessidades prementes da vida social, ampliou o conceito de culpa. Daí ganhar espaço o conceito de responsabilidade sem culpa. As noções de risco e garantia ganham força para substituir a culpa. No final do século XIX, surgem as primeiras manifestações ordenadas da teoria objetiva ou teoria do risco. Sob esse prisma, quem, com sua atividade ou meios utilizados, cria um risco deve suportar o prejuízo que sua conduta acarreta, ainda porque essa atividade de risco lhe proporciona um benefício. Nesse aspecto, cuida-se do denominado risco-proveito. A dificuldade está em evidenciar o proveito decorrente da atividade, que nem sempre fica muito claro. Pode-se pensar nessa denominação para justificar a responsabilidade sem culpa, desde que não se onere a vítima a provar nada mais além do fato danoso e do nexo causal.
A explicação dessa teoria justifica-se também sob o título risco profissional. O dever de indenizar decorre de uma atividade laborativa. É o rótulo que explica a responsabilidade objetiva nos acidentes do trabalho. Outros lembram do (sic) risco excepcional: o dever de indenizar surge de atividade que acarreta excepcional risco, como é o caso da transmissão de energia elétrica, exploração de energia nuclear, transporte de explosivos etc. Sob a denominação risco criado, o agente deve indenizar quando, em razão de sua atividade ou profissão, cria um perigo.
(...)
A doutrina refere-se também à teoria do risco integral, modalidade extremada que justifica o dever de indenizar até mesmo quando não existe nexo causal. O dever de indenizar estará presente tão-só perante o dano, ainda que com culpa exclusiva da vítima, fato de terceiro, caso fortuito ou força maior. Trata-se de modalidade que não resiste a maiores investigações, embora seja defendida excepcionalmente para determinada situações.[34]
O Código Civil de 2002 adotou, ao lado da teoria da culpa, a responsabilidade civil objetiva, consoante se depreende do artigo 927, parágrafo único, infra transcrito:
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
O diploma civil enumerou hipóteses que prescindem da prova de culpa. Cita-se, de forma ilustrativa, os artigos 936 (responsabilidade do dono do animal), 937 (responsabilidade do proprietário do prédio em ruína) e 938 (responsabilidade do habitante pelas coisas lançadas de edifícios), dentre outros dispositivos do Código Civil e leis esparsas.
Torna-se imperioso registrar que José de Aguiar Dias assesta distinção entre os casos de responsabilidade objetiva e os de presunção de culpa. Explana, assim, a discriminação dos institutos:
Em essência, repetimos, a assimilação entre um e outro sistema é perfeita, significando o abandono disfarçado ou ostensivo, conforme o caso, do princípio da culpa como fundamento único da responsabilidade. Em teoria, a distinção subsiste, ilustrada por exemplo prático: no sistema da culpa, sem ela, real ou artificialmente criada, não há responsabilidade; no sistema objetivo, responde-se sem culpa, ou melhor, esta indagação não tem lugar.[35]
Observa-se que a responsabilidade objetiva prescinde da noção de culpa. Na realidade, a culpa inexiste na teoria do risco, que se contenta com a aferição da conduta e do dano, interligado pelo nexo causal. Contrario sensu, em casos de culpa presumida subsiste a conduta culposa, na modalidade conjeturada. Nessa medida, releva-se a diferenciação entre o ônus da prova, no âmbito da teoria da culpa, da teoria da culpa presumida e da teoria do risco.
Na teoria clássica da culpa, o ônus da prova cabe a quem alega o fato danoso. Assim, a vítima deverá comprovar a existência de culpa ou dolo, na ação ou omissão do agressor. A materialização e prova da culpa lato sensu pelo lesado é imprescindível para a obtenção da reparação do dano.
Na teoria da culpa presumida ocorre a inversão do ônus da prova. Nesse caso, caberá ao autor da ofensa demonstrar a ausência de culpa, para se eximir do dever de indenizar. A culpa presumida pressupõe o comportamento culposo do ofensor. A culpa genérica exsurge como elemento precípuo da responsabilidade civil.
A teoria do risco, como salientado antanho, abstrai-se da idéia de culpa. De fato, a comprovação da culpa genérica é elemento prescindível no que tange ao efetivo dever de indenizar. Na realidade, é suficiente que o lesado comprove a existência de dano, corporificado por uma ação ou omissão. O causador da lesão responsabilizar-se-á pela reparação civil, independentemente da demonstração de dolo ou culpa.
Por fim, acrescenta-se que a regra geral, no ordenamento jurídico pátrio, robustece a responsabilidade subjetiva. Não obstante, a teoria da culpa deve ser conjugada com a responsabilidade objetiva, fundamental para a marcha do instituto. Nesse sentido, a teoria do risco é inserida na trajetória da responsabilidade civil (em virtude de previsão legal ou conforme a atividade produzida pelo autor do dano), com o desiderato de humanizar as relações intersubjetivas permeadas de conflitos de interesse, notadamente, quando a prova da culpa enseja gravame insustentável pela vítima. Conforme sintetiza Caio Mário da Silva Pereira, “insurgir-se contra a idéia tradicional da culpa é criar uma dogmática desafinada de todos os sistemas jurídicos. Ficar somente com ela é entravar o progresso.”[36]
5.3. Responsabilidade civil contratual
Invocando-se a classificação da responsabilidade civil quanto ao fato gerador, ergue-se a responsabilidade civil contratual (negocial). Recebeu referência nos artigos 389 e seguintes e 395 e seguintes do Código Civil Brasileiro.
A responsabilidade contratual fundamenta-se na inexecução da obrigação prevista em instrumento contratual, previamente ajustado entre as partes. O inadimplemento ou a mora no cumprimento da obrigação caracterizam o ilícito contratual. A responsabilidade contratual resulta da violação de obrigação preexistente, sustentando-se, em regra, no dever de resultado. Nesse diapasão, ressalta-se que a fonte da responsabilidade civil contratual se materializa pela prévia convenção entre as partes.
A singularização da responsabilidade contratual antepõe a subsistência de contrato válido entre as partes. Nesse esteira, ressai José de Aguiar Dias:
Particularizemos o estudo da responsabilidade contratual. Ela pressupõe um contrato válido, concluído entre o responsável e a vítima. Decompondo esse conceito, obtemos três elementos: existência do contrato; a sua validade, envolvendo, naturalmente, a questão da responsabilidade no caso de contrato nulo; estipulação do contrato entre o responsável e a vítima. [37]
Cintilam, assim, os princípios concernentes à responsabilidade civil contratual. Inicialmente, faz-se mister relevar a imprescindibilidade da configuração de vínculo contratual unindo credor e devedor. Assoma-se ao fato em epígrafe a exigência de inadimplemento contratual parcial ou total pelos contratantes (ou por um deles) e, ainda, por um terceiro interessado. Por fim, reclama-se a cristalização de nexo causal ente o dano e a inexecução contratual.
O inadimplemento da obrigação consiste “na falta de prestação devida ou no descumprimento, voluntário ou involuntário, do dever jurídico por parte do devedor.”[38] A inexecução voluntária cifra-se no descumprimento contratual doloso ou culposo, por intermédio de ação volitiva. Subdivide-se em inadimplemento voluntário absoluto, quando a obrigação não for passível de satisfação em parte ou totalmente; e em inadimplemento voluntário relativo, quando a obrigação não se cumprir em forma, tempo e lugar pactuados, sendo possível, contudo, o adimplemento futuro, sobrevindo-se a mora.
Dessa forma, o inadimplemento absoluto ocorre quando se afigura impossível o cumprimento venturo do contrato, em razão da inutilidade advinda ao credor. A título de exemplo, cita-se o perecimento da coisa objeto do contrato. Por outro lado, subsiste a mora quando, apesar do descumprimento contratual, o pacto ainda pode ser adimplido, por intermédio da devida purgação.
A inexecução involuntária, ao revés, ocorre independentemente de dolo ou culpa, sucedendo em virtude de caso fortuito ou força maior.
Urge alumiar que o fundamento da responsabilidade contratual conglutina a inexecução voluntária do contrato e a mora. As mencionadas facetas subsidiam a reparação do dano na seara contratual.
Questão interessante pauta-se na aferição do ônus da prova na responsabilidade contratual. Carlos Roberto Gonçalves leciona:
Se a responsabilidade é contratual, o credor só está obrigado a demonstrar que a prestação foi descumprida. O devedor só não será condenado a reparar o dano se provar a ocorrência de alguma das excludentes admitidas na lei: culpa exclusiva da vítima, caso fortuito ou força maior. Incumbe-lhe, pois, o onus probandi.[39]
Infere-se, por conseguinte, que na responsabilidade contratual é suficiente a comprovação, pela vítima, da inexecução de preexistente obrigação avençada. Presume-se a culpa do inadimplente, ocorrendo a inversão do ônus da prova. O devedor somente se eximirá da reparação se conseguir demonstrar a ocorrência de causa excludente da responsabilidade, ou a culpa exclusiva da vítima.
No que tange à capacidade do ofensor, impende registrar que a celebração de pacto válido pressupõe agentes plenamente capazes, sob pena de nulidade do contrato e conseqüente ausência do dever de indenizar. De fato, na esfera contratual o menor púbere somente será responsabilizado quando ajustar contrato devidamente assistido pelo representante legal. Na mesma esteira, o artigo 180, do Código Civil dispõe que “o menor, entre dezesseis e dezoito anos, não pode, para eximir-se de uma obrigação, invocar a sua idade se dolosamente a ocultou quando inquirido pela outra parte, ou se, no ato de obrigar-se, declarou-se maior.”
Por fim, a responsabilidade contratual funda-se na idéia de culpa presumida. Na modalidade em mote, obedece a um escalonamento, em consonância com as hipóteses concretizadas no instrumento contratual. Em verdade, na responsabilidade contratual a culpa varia de acordo com a intensidade presente no caso concreto, sem atingir os extremos da responsabilidade extracontratual.[40]
5.4. Responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana
Seguindo-se o fluxo da taxionomia da responsabilidade civil no tocante ao fato gerador, desponta a responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana (delitual, extranegocial), prevista nos artigos 186 a 188 e 927 e seguintes do Código Civil pátrio.
A responsabilidade extracontratual fundamenta-se na inobservância da lei. Resulta do inadimplemento normativo por agente capaz ou incapaz. Não é necessário a preexistência de relação jurídica anterior. Na realidade, na culpa aquiliana viola-se a obrigação de não causar dano a ninguém. Verifica-se, portanto, que a responsabilidade civil extracontratual se cristaliza no descumprimento da lei, acarretando lesão a direito, sem a prévia existência de relação jurídica entre as partes.
Reiterando o posicionamento em tela, Maria Helena Diniz testifica:
A responsabilidade extracontratual, delitual ou aquiliana decorre de violação legal, ou seja, de lesão a um direito subjetivo ou da prática de um ato ilícito, sem que haja nenhum vínculo contratual entre lesado e lesante. Resulta, portanto, da inobservância da norma jurídica ou de infração ao dever jurídico geral de abstenção atinente aos direitos reais ou de personalidade, ou melhor, de violação à obrigação negativa de não prejudicar ninguém.[41]
A responsabilidade extracontratual funda-se, em regra, na culpa. Significa dizer que a vítima deverá demonstrar, para granjear a efetiva reparação, que o causador do dano agiu com imprudência, negligência, imperícia ou dolo. Não obstante a adoção da teoria da culpa como regra geral, a modalidade epigrafada perfilha a teoria do risco, possibilitando a responsabilização independente da materialização da culpa (artigo 927, parágrafo único, do Código Civil).
Vislumbra-se a relevância do conceito de ato ilícito a caracterizar a responsabilidade aquiliana. Marcos Bernardes de Mello coteja o ato ilícito de acordo com o respectivo suporte fático:
Sempre que, por ação ou omissão voluntária, por negligência ou imprudência, alguém imputável viola direito ou causa prejuízo a terceiro, comete um ato ilícito stricto sensu, ou ato ilícito absoluto. Este configura a espécie definida no art. 186 do Código Civil.
Constituem elementos completantes do núcleo do ato ilícito stricto sensu, caracterizando-o fundamentalmente:
(i) A espécie de direito ofendido. Com efeito, para que uma conduta seja classificada como ato ilícito stricto sensu é essencial que entre o ofensor e o ofendido (a) não exista qualquer relação jurídica ou, (b) se houver, que seja de direito absoluto (=relação jurídica com sujeito passivo total, o alter). Se há relação jurídica de direito relativo (= relação jurídica com sujeito passivo determinado, individuado) e o direito violado é conteúdo dessa relação, o ato não é ilícito stricto sensu, mas ato ilícito relativo ou ilícito caducificante. Mesmo quando há relação jurídica de direito relativo entre o ofensor e o ofendido, mas o ilícito não decorre de quebra de dever conteúdo da relação, há ato ilícito stricto sensu. Assim, as violações a direitos reais, como a propriedade, ou a direito da personalidade, como direito à vida, saúde, honra, liberdade, nome etc., constituem atos ilícitos stricto sensu. Por essa razão, o ato ilícito stricto sensu também recebe a denominação de ato ilícito absoluto, que seria, até, mais apropriada não fora existirem, também, o fato stricto sensu ilícito absoluto e o ato-fato ilícito absoluto, o que poderia gerar confusões terminológicas.
(ii) O dano, uma vez que todo ato ilícito stricto sensu é danoso. O dano pode não ser apenas patrimonial; envolve também o dano moral e o dano estético. Em qualquer espécie, porém, a sua reparação tem natureza patrimonial.
(iii) E, finalmente, a reparabilidade do dano, mediante indenização. Com a indenização pretende-se reparar o dano, tornando o ato indene (sem dano).[42]
No tocante ao ônus da prova, torna-se imperioso consignar que na responsabilidade extracontratual a culpa deve ser provada pela vítima. Desse modo, caberá ao autor da demanda demonstrar que o fato ocorreu por culpa de outrem. Verifica-se, portanto, que na responsabilidade aquiliana o ofendido deve comprovar a culpa do causador do dano.
A responsabilidade aquiliana apresenta, quanto à capacidade dos agentes, apuração deveras rigorosa. Em princípio, o ato praticado por incapaz pode ensejar reparação pessoal ou devida pelos representantes legais. Na culpa extracontratual vigora o princípio in lege Aquilia et levissima culpa venit. Significa dizer que a responsabilidade aquiliana alcança a culpa levíssima, ou seja, ocorre a reparação do dano ainda quando o agressor pratica conduta consubstanciada por da falta branda.
Sílvio de Salvo Venosa delineia tracejado amplexo entre a responsabilidade contratual e extracontratual, certificando:
A grande questão nessa matéria é saber se o ato danoso ocorreu em razão de uma obrigação preexistente, contrato ou negócio jurídico unilateral. Enfatizamos anteriormente que nem sempre resta muito clara a existência de um contrato ou de um negócio, porque tanto a responsabilidade contratual como a extracontratual com freqüência se interpenetram e ontologicamente não são distintas: quem transgride um dever de conduta, com ou sem negócio jurídico, pode ser obrigado a ressarcir o dano. O dever violado será o ponto de partida, não importando se dentro ou fora de uma relação contratual. Advertimos, contudo, que, quando em doutrina é feita referência singela à responsabilidade civil, devemos entender que se trata da responsabilidade extracontratual.[43]
Por fim, Miguel Maria de Serpa Lopes lealda a existência de teorias acerca da cisma entre as responsabilidades contratual e aquiliana.
A teoria dualista separa a culpa contratual da extracontratual, apontando inúmeras diferenças. Na culpa contratual exige-se a imposição de conduta de certa gravidade; há presunção de culpa; a reparação do dano permeia o estatuído em contrato. Por outro lado, a culpa aquiliana considera a culpa levíssima apta a ensejar reparação pelos danos causados; inexiste a culpa presumida; a reparação do dano atinge extensão paralela ao prejuízo experimentado.[44]
A teoria monista sustenta a unicidade entre as culpas contratual e extracontratual. Na realidade, de acordo com a teoria monista ocorre um amálgama entre as culpas mencionadas, de modo que a responsabilidade contratual é absorvida pela extracontratual. O princípio dominante propugnado pela tese em epígrafe se consubstancia no ideário de que toda a inexecução de contrato consiste em um delito. Dessa forma, ocorre verdadeira fusão entre as responsabilidades negocial e extranegocial, máxime ante a analogia existente entre o contrato e a lei, entre o dever contratual e o legal.[45]
A teoria eclética medeia os dois extremos, representados pelo dualismo e pelo monismo. Configura tertium genus, estabelecendo simultaneamente a unidade das modalidades de culpa e as diferenças de ordem técnica. A responsabilidade civil, nesse sentido, afigura-se indivisível, em virtude do inarredável caráter exclusivo. Não obstante, em sentido secundário, subdivide-se em responsabilidade contratual (quando se imputa ao devedor cumprimento de obrigação originária prevista em contrato) e responsabilidade extracontratual (quando o responsável viola obrigação imposta pela lei).[46]
Perquirindo o terreno das concepções nupercitadas, Miguel Maria de Serpa Lopes cientifica que a teoria dualista subsiste, tão-somente, em esfera formal e artificial, com o desiderato de alcançar a ordem social. Não existiria, assim, diferença fundamental entre as noções de culpa, sobretudo quando se afirma que a responsabilidade contratual principia a existência de obrigação preexistente, ao passo que a extracontratual parte do inadimplemento normativo posterior. Em verdade, as duas modalidades seriam oriundas de obrigação preexistente. As distinções, como salientado algures, ensejariam caráter meramente técnico. Nesse sentido, Miguel Maria de Serpa Lopes consigna:
Em síntese, em relação ao aspecto técnico das duas modalidades de culpa, resulta a seguinte conclusão: enquanto, de um modo geral, a culpa extracontratual obedece a um critério de padrão comum para todos os casos de violação à lei, padrão esse correspondente ao bonus pater familias, a culpa contratual, ao contrário, tem os seus elementos constitutivos subordinados a critérios variáveis, resultantes do próprio acordo de vontades inerente ao contrato, quando a autonomia da vontade é admitida, ou ainda em outras figuras contratuais para as quais a lei estabelece um critério especial, in concreto, da diligência a ser empregada pelo contratante no cumprimento das obrigações assumidas.[47]
Abraçando a teoria eclética, Serpa Lopes censura a teoria monista, especificando que as modalidades de culpa não podem ser ungidas à condição absoluta. Sufraga, assim, o artificialismo de ordem técnica, construído pela doutrina e jurisprudência.[48]
Por fim, impende arrebatar que o Código Civil Brasileiro consagrou a teoria clássica dualista, não obstante as numerosas críticas recebidas. De fato, a essência das modalidades de culpa contratual e extracontratual trespassa distinções técnicas, fixando a configuração da responsabilidade com fulcro em ação ou omissão, interligada por causalidade, que acarrete dano a outrem. Todavia, a distinção promanada permite assentar, de forma didática, as formas de reparação, objetivando a remoção dos obstáculos inerentes ao campo da responsabilidade, notadamente quanto ao ônus da prova.
A pertinência da matéria consiste, assim, em não desvirtuar a vereda da responsabilidade. Aplicando-se hermenêutica que possibilita ou não a segmentação da responsabilidade quanto ao fato gerador, o fundamental é conservar a essência da reparação do dano, de sorte que a vítima não padeça, de maneira simoníaca, de lesão irretratável, configurada pelo dano ocasionado e pela ausência de proteção da ordem jurídica.