Direito e Justiça: essa relação é possível?

04/04/2014 às 09:39
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Aborda a relação entre o conceito de direito e a ideia de justiça segundo uma dicotomia presente na filosofia do direito, a qual se identifica no jusnaturalismo e juspositivismo. Também tal ideia é analisada e discutida sob a luz de alguns doutrinadores.

Direito e Justiça: essa relação é possível?

 

Diego Weber da Nóbrega

Graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN/CERES – Campus de Caicó/RN).

 

Resumo: Este artigo aborda a relação entre o conceito de direito e a ideia de justiça segundo uma dicotomia presente na filosofia do direito, a qual se identifica no jusnaturalismo e juspositivismo. Também versa sobre o surgimento do direito natural e positivo e seus diversos tipos. A ideia de justiça analisada tanto nessas duas correntes de pensamento quanto nos aspectos discutidos à luz dos autores Ferraz Júnior, Ross, Gusmão e Kelsen. Trata-se de uma relação bastante complexa, porém importante sobre a justiça no campo do direito.

 

Palavras-chave: Direito. Justiça. Dicotomia. Jusnaturalismo. Juspositivismo.

 

Abstract: This article approaches the relationship between the right concept and the idea of justice second a present dicotomy in the philosophy of the right, which identifies in the jusnaturalism and juspositivism. It is also turns on the appearance of the natural and positive right and your several types. The idea of justice analyzed so much in those two thought currents as in the aspects discussed to authors Ferraz Júnior's light, Ross, Gusmão and Kelsen. It is a quite complex, however important relationship, about the justice in the field of the right.

                 

Keywords: Right. Justice. Dicotomy. Jusnaturalism. Juspositivism.

 

Sumário: Introdução. 1. A história de uma dicotomia: direito natural e direito positivo. 2. A ideia de justiça para Ferraz Júnior, Ross, Gusmão e Kelsen. 3. A ideia de justiça para o jusnaturalismo e para o juspositivismo. Referências.

 

INTRODUÇÃO

 

No campo das ciências humanas, incluindo no campo jurídico, há vários debates acerca do tema. Existe alguma relação entre direito e justiça? A justiça é o fim do direito? Ou os dois são coisas totalmente distintas? Para alguns cientistas, o direito está fundamentado na idéia de justiça, enquanto outros defendem a tese de que ambos são distintos e sem nenhuma conexão. Ainda outros juristas e filósofos concebem a harmonia entre eles fornecendo conceitos para cada um e definindo o campo de abrangência deles em relação à sociedade. Dentre essas várias teorias, encontram-se duas principais e bastantes incertas sobre o tema proposto: o jusnaturalismo e o juspositivismo.

 

 

1. A HISTÓRIA DE UMA DICOTOMIA: DIREITO NATURAL E DIREITO POSITIVO

O jusnaturalismo é uma filosofia ou doutrina do direito, com importância predominante desde o século IV AEC até fins do século XVIII EC, que sempre defendeu a existência de princípios morais universais ou direitos naturais. O uso do direito natural variou consideravelmente ao longo da história. Há diversas teorias desse direito as quais começaram na Grécia Antiga e se estenderam até os dias atuais.

A filosofia grega enfatizava a distinção entre “natureza” de um lado, e “direito” do outro. Contra o convencionalismo que a distinção entre natureza e direito pudesse gerar Sócrates e seus discípulos, Platão e Aristóteles, postularam a existência de uma justiça natural ou um direito natural. Destes, Aristóteles costuma ser apontado como o pai do direito natural. Ele afirma que a justiça natural é uma espécie de justiça política, isto é, o esquema de justiça distributiva e corretiva que seria estabelecido pela melhor comunidade política; se isto viesse a tomar a forma de lei, poderia chamar-se direito natural.

A transformação do conceito de justiça natural no de direito natural costuma ser atribuída aos estóicos. O direito natural estóico era indiferente à fonte – natural ou divina – do direito. Eles afirmavam a existência de uma ordem racional e propositada para o universo, e o meio pelo qual um indivíduo racional vivia em conformidade com esta ordem era o direito natural, que induzia ações em consonância com a virtude.  Estas teorias tornaram-se altamente influentes entre os juristas romanos e, portanto, desempenharam um papel central no futuro da teoria do direito.

O que importa é que, em todos os casos, trata-se de um direito que antecede e subordina o direito positivo de origem política ou social que não deveria entrar em conflito com as regras do direito natural e, se entrar, pode perder sua validade.

Positivismo é um conceito que possui distintos significados, englobando tanto perspectivas filosóficas e científicas do século XIX quanto outras do século XX. Do seu início, com Augusto Comte (1798-1857) na primeira metade do século XIX até o seu apogeu e crise no século XX, o sentido da palavra mudou radicalmente, incorporando diferentes sentidos, muitos deles opostos ou contraditórios entre si.

Para Comte, o Positivismo é uma doutrina filosófica, sociológica e política. Surgiu como desenvolvimento sociológico do Iluminismo, das crises social e moral do fim da Idade Média e do nascimento da sociedade industrial, processos que tiveram como grande marco a Revolução Francesa. Em linhas gerais, ele propõe à existência humana valores completamente humanos, afastando radicalmente a teologia e a metafísica. Assim, essa doutrina associa uma interpretação das ciências e uma classificação do conhecimento a uma ética humana radical, desenvolvida na sua segunda fase da carreira.

A influência dessa dicotomia no direito contemporâneo provém do século XVIII. O período do racionalismo jurídico concebeu o saber jurídico como uma sistematização completa do direito a partir de bases racionais, ou seja, fundamentando em princípios da razão. Em conseqüência, o direito natural mostrava-se como um conjunto de direitos e deveres que se aplicavam às relações entre os homens de forma análoga à que ocorre com o direito posto.

Nessa época, o direito natural até então uma disciplina moral, ganhou certa autonomia e transformou-se numa genuína disciplina jurídica. Pressupunha-se uma espécie de duplicação do sistema jurídico: por de trás ou por cima dessas relações estabelecidas por normas postas, admitia-se o conjunto dos direitos naturais. Essa idéia permitiu uma separação entre direito e moral, concebendo-se o primeiro em oposição à segunda.

Toda essa teoria está de acordo com o normativismo jurídico de Kelsen, pois ele levou o positivismo jurídico ao seu clímax, colocando em alerta todo elemento estranho ao direito, ou seja, moral e direito são coisas absolutamente distintas. Retificando essa linha de pensamento, Bobbio (1995, p. 131) afirma que: “A afirmação da validade de uma norma jurídica não implica também na afirmação de seu valor”.

Entretanto, essa dicotomia enfraquece ao longo do tempo por causa da promulgação dos direitos fundamentais, uma das razões do enfraquecimento. E, depois, a proliferação desses direitos provoca, progressivamente, sua trivialização. Segundo Luhmann (1972, p. 255): “Uma coisa se torna trivial quando perdemos a capacidade de diferenciá-la e avaliá-la, quando ela se torna tão comum que passamos a conviver com ela sem nos apercebermos disso, gerando, portanto, alta indiferença em face das diferenças”.

Essa trivialização dos direitos fundamentais foi precedida pela trivialização do próprio direito natural. Ferraz Júnior (2003, p. 171) afirma isso ao dizer que:

Quando todo o direito passou a ser logicamente redutível a direitos naturais, a noção perdeu força comunicacional, sua relevância foi ficando amortecida e gerou até descrédito. Assim, a distinção entre direito natural (direito à vida, à saúde, à liberdade etc.) e direito positivo foi, primeiro, esmaecida pela distinção entre direitos fundamentais constitucionais e demais direitos e, depois, com a trivialização dos constitucionais, a positivação acabou por tomar conta do raciocínio dogmático sobre o direito natural, confundido com um conjunto de normas naturais-racionais.

 

Agora surgem algumas perguntas sobre um tema bastante discutido entre essas duas linhas de pensamento, considerada por alguns como opostas: justiça. O que é justiça? Existe justiça no direito? Pode-se conferir um juízo de valor a uma lei, ou seja, pode-se afirmar se uma lei é justa ou se é injusta? O que diz o jusnaturalismo sobre esse tema? E o juspositivismo? Se há justiça, como ela se caracteriza nas relações jurídicas? Por que existe a necessidade de justiça no ordenamento jurídico? É esse o fim do direito? Esses e outros questionamentos serão abordados no decorrer deste artigo.

2. A IDEIA DE JUSTIÇA PARA FERRAZ JÚNIOR, ROSS, GUSMÃO E KELSEN

Para Ferraz Júnior (Ibid, p. 356) a justiça é: “Em suma, a justiça é ao mesmo tempo o princípio racional do sentido do jogo jurídico e seu problema significativo permanente.” Ele aponta dois aspectos sobre ela: o aspecto formal e o aspecto material. Assim, se a justiça em seu primeiro aspecto exige igualdade proporcional e exclui a desigualdade proporcional como princípio estrutural, em seu segundo aspecto denuncia-se um campo de probabilidades e possibilidades que a tornam o problema.

Pode-se comparar isso a um jogo de futebol, em que o objetivo é fazer o gol. Contudo, se no futebol só há jogo se houver onze jogadores de cada lado, um campo com tais medidas, de tal tamanho, assim também a produção, a aplicação e a observância do direito estão delimitadas pelo princípio formal da igualdade proporcional a partir do qual o jogo se identifica como jurídico: a justiça formal não pertence ao “jogo”, mas é o limite do “jogo”. Se dentro desses limites, o “jogo” é justo ou injusto isto é problema da justiça material juntamente de seus princípios éticos e de sua moralidade.

Ross (2003) considera a idéia de justiça como o princípio mais elevado do direito em oposição à moral entrando em conflito com a filosofia antiga que pregava a justiça significando-a a virtude suprema, que tudo abrange, sem distinção entre o direito e a moral.

Existe uma corrente que abrange essa teoria da filosofia antiga como também, conforme Dimoulis (2003), as teorias do “mínimo ético” e à dos círculos secantes, chama-se moralismo. Segundo os moralistas, o legislador deverá criar o Direito se espelhando em normas morais. Isso nos lembra uma evolução da corrente de pensamento do Direito Natural substituindo-o por moralismo jurídico e invocando princípios morais vigentes em cada sociedade.

O grande pioneiro nessa linha de pensamento Radbruch (1973, p. 345) com sua famosa frase: “Se a contradição entre lei positiva e justiça atinge um grau extremamente insuportável, a lei deve recuar diante da justiça”.

O fundamento dos moralistas está na tese de que o sistema jurídico não só está em confronto com a moral, mas também é fundado sobre a moral. Sobre esta influência podemos destacar duas modalidades de moralismo: uma externa e outra interna.

Segundo a externa, a validade de uma norma jurídica depende de estar de acordo com critérios morais apoiando a frase célebre do jurista alemão Radbruch. Além do mais, acrescentam uma terceira condição para validar o direito positivo, considerando que segundo os positivistas aquele é definido como o conjunto de normas adotadas pelos órgãos competentes e possui um mínimo de efetividade social, uma mínima justificação moral. Ainda afirmam que não querem interpretá-lo “tal como é”.

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Segundo a interna, os preceitos morais influenciam todo o direito positivo. Nesse sentido, a moral não é um critério de validade, mas de interpretação buscando sempre recorrê-la para solucionar os diversos casos vigentes. Também sustentam a idéia de que ele é inseparável dela.

Portanto, pode-se aferir disso que todas as correntes do moralismo defendem a teoria de que tanto o direito quanto a moral estão estritamente relacionados. Entretanto, como argumenta Dimoulis (1996), o grande problema do moralismo é a sua impossibilidade de ser fundado metodologicamente.

Retomando a ideia de justiça de Ross pode-se observar que ela pressupõe uma exigência de igualdade, contudo, não em sentido absoluto, mas em sentido relativo. Assim, ela incluiria esses aspectos: a cada um segundo seu mérito; a cada um segundo sua contribuição; a cada um segundo suas necessidades; a cada qual segundo sua capacidade e a cada um segundo sua posição e condição.

Entretanto, Ross (2003, p. 317) afirma que:

Indicamos esses exemplos não para discutir qual formulação do princípio de justiça é a correta, mas para mostrar que a pura exigência formal de igualdade não significa em si muito e que o conteúdo prático da exigência de justiça depende de pressupostos que são externos ao princípio de igualdade, a saber, os critérios que determinam as categorias às quais se deve aplicar a norma de igualdade.

Dessa forma, o que seria justo ou injusto na concepção dele? Esses termos só se aplicariam ou só teriam sentido de acordo com as decisões tomadas por um juiz, árbitro ou alguém detentor de alguma autoridade. Em contrapartida, tal julgamento apresentaria sem sentido quando um indivíduo fosse caracterizar uma regra.

Em seguida, o jurista e filósofo dinamarquês ratifica que a invocação à justiça é uma ideologia da justiça, ou seja, constitui um sistema de idéias dogmaticamente organizado como um instrumento de luta política. Ross (Ibid, p. 320) diz que: “A ideologia da justiça é uma atitude militante de tipo biológico-emocional, para a qual alguém incita a si mesmo à defesa cega e implacável de certos interesses.”

A respeito do direito natural, ele confirma que os filósofos trabalharam sob a pressão de um dilema: conservar a ilusão de que a justiça é uma idéia a priori seria necessário conferir um vínculo com a idéia pura de igualdade e quanto mais próximo estivesse perto dela, mais se evidenciava a carência de conteúdo.

A respeito do direito positivo, há uma idéia fundamental presente em todo direito, mas que não é a única: a regularidade objetiva ou racionalidade formal. Essa regularidade quando está ligada com a idéia de justiça qualifica-se como constitutiva do conceito do direito. Portanto, classificar a decisão de um juiz como justa denotaria uma ação em conformidade com a lei; classificar como injusta exprimiria uma atitude de encontro ao direito positivo, seja em sentido objetivo ou subjetivo. Além disso, poderia classificá-la também como objetiva (quando cabe dentro de princípios de interpretação ou valorações que são correntes na prática) ou subjetiva (quando se afasta disso).

Gusmão (1998) diz que o direito corresponde à idéia de justiça. Mas, o que é justiça? Sócrates e Kant dizem não ser possível conceituá-la por ser a razão cega para os valores. Porém, hoje, a questão não é defini-la e, sim, realizá-la e garanti-la. Que exige a justiça? Igualdade, tornado ela uma mera abstração. Dessa forma, o direito, além de aplicá-la, deve ter por objetivo a segurança jurídica. O que é isso? Gusmão (Ibid, p. 76) conceitua da seguinte maneira: “A segurança jurídica é a relativa estabilidade da ordem jurídica, garantidora, por um período razoável, do conteúdo das normas que a compõem. Expressa o espírito conservador inerente ao direito.”

Diante disso, surge um problema: ‘O direito deve sacrificar a justiça em benefício da segurança, transformando-se na ordem legal sem correspondência com o seu conceito ideal, ou deverá sacrificar a segurança em benefício da justiça, criando um clima de insegurança e intranqüilidade?’ Percebe-se que um não é incompatível com o outro. Todavia, como conciliá-los?

O jurista brasileiro irá mostrar que a finalidade do direito ou os objetivos imediatos são: a ordem, a paz social e a segurança e a justiça serviria para validá-los e legitimá-los à ordem jurídica. Assim, a solução seria o equilíbrio desses valores. Partindo desse entendimento, define-se o direito como a realização da segurança com o mínimo sacrifício da justiça.

Em vista disso, soerguem várias escolas ou cientistas que conceberão diferentes respostas a esse entendimento. Por exemplo, a Escola de Exegese dá prioridade à letra da lei e descarta a idéia de segurança. A Escola de Direito Livre inspira-se exclusivamente na justiça. Kelsen, como máximo da ordem e da segurança, mostra que a justiça não tem por onde penetrar. A Escola Atualizadora da Lei concilia a segurança com a justiça. Os jusnaturalistas conhecem o conteúdo dela, enquanto os juspositivistas acreditam na impossibilidade de se conhecê-la com validade universal.

Portanto, a justiça, que requer a igualdade de tratamento, não diz como estabelecê-la universalmente. Assim, Gusmão (1998, p. 86) afirma que:

Talvez, por isso o direito prescreva de forma igual e geral para o futuro, enquanto a justiça, que não se satisfaz só com esse tratamento formal e frio, prescreve para o presente, e não para o futuro, para cada caso, a solução jurídica de acordo com o princípio de igualdade ou de proporcionalidade.

Kelsen (1998), opondo-se à maioria dos defensores da justiça no Direito, inclusive o Direito positivo, argumenta que este e aquela são coisas totalmente diferentes. Até porque para se construir uma ciência do direito há a necessidade, segundo ele, que estranhe qualquer elemento ao direito assim como se dá entre a relação dele com a moral.  Kelsen (Ibid, p. 8) diz que:

Direito e justiça são dois conceitos diferentes. O Direito, considerado como distinto da justiça, é o Direito Positivo. É o conceito de Direito positivo que está em questão aqui; e uma ciência do Direito positivo deve ser claramente distinguida de uma filosofia da justiça.

Todavia, o jurista austro-americano confirma a dificuldade em separar esses dois termos devido à confusão presente no pensamento político não científico correspondendo a tendência ideológica de dar aparência de justiça ao direito positivo. Além disso, comentar que uma ordem justa pode-se ser chamada de Direito, apenas significa justificá-la moralmente. Dessa forma, essa expressão entra em contradição com todo o pensamento kelseniano, pois este se baseia somente no ordenamento jurídico, ou seja, no que está posto numa constituição ou em qualquer sistema normativo.

Também se enquadra no assunto que justificar moralmente uma norma é uma tendência política, não científica. Portanto, uma teoria pura do direito não pode prender-se a emitir sempre um juízo de valor a uma determinada norma, no que diz respeito a dizer se ela é justa ou injusta, porque tais juízos não podem ser enunciados cientificamente. Isso estaria conectado a outro sentimento carregado de emoções: a felicidade. Kelsen (Ibid, p. 9) afirma que: “O anseio por justiça é o eterno anseio do homem pela felicidade. É a felicidade que o homem não pode encontrar como indivíduo isolado e que, portanto, procura em sociedade. A justiça é a felicidade social.”

Entretanto, ele próprio admite a existência da justiça em apenas um aspecto do ordenamento jurídico e significando somente um sentido: legalidade. A justiça, no sentido de legalidade, é uma qualidade que se relaciona não com o conteúdo de uma norma jurídica, mas com sua aplicação. Nesse sentido, a justiça é compatível e necessária a qualquer ordem jurídica positiva.

Assim, a afirmação de que o comportamento de um indivíduo é “justo” ou “injusto”, no sentido de “legal” ou “ilegal”, significa que sua conduta corresponde ou não a uma norma jurídica. Se isso, conforme Kelsen (1998) for chamado de julgamento de valor, isto é, julgamento objetivo de valor que deve ser claramente distinguido de um subjetivo pelo qual a vontade ou o sentimento do sujeito que julga é expresso. Portanto, apenas com o sentido de legalidade é que a justiça pode fazer parte de uma ciência do Direito.

Essa linha de raciocínio também é apoiada pela professora e jurista Maria Helena Diniz quando ela afirma que o justo objetivo, não a vontade individual, constitui o objeto da norma jurídica e a justiça aparece em cena no que tange a sua aplicação adquirindo o sentido de legalidade. Sendo assim, Diniz (1998, p. 395) diz que: “A justiça exige que todos os esforços legais se dirijam no sentido de atingir a mais perfeita harmonia na vida social, possível nas condições de tempo e lugar”.

3. A IDEIA DE JUSTIÇA PARA O JUSNATURALISMO E PARA O JUSPOSITIVISMO

Após analisar tudo isso, pode-se observar pelo menos três modelos de relações do direito com o princípio moral da justiça: o modelo característico da doutrina jusnaturalista, o da doutrina positivista e ideológica ou ética e o positivista e teórico, científico ou conceitual.

Essas maneiras ou modelos de relacionamentos do direito com a moral ou com a justiça, por sua vez podem ser subdivididos de acordo com duas perspectivas: a do critério de validação e a do critério de avaliação. A primeira, diz respeito à relação da doutrina com a fonte criadora do direito, no caso, com o legislador que, dependendo do caso, pode até mesmo ser considerado com características não humanas, como nos sugerem as fontes do direito natural. Já pela segunda, a relação focada será a da doutrina com o momento do ato judicial da decisão.

A doutrina jusnaturalista observada sob o critério de validação deduz-se que para uma norma ser válida, enquanto jurídica, precisa antes ser considerada justa reduzindo a validade à justiça. Segue-se o seguinte raciocínio: o doutrinador jusnaturalista validará a norma ou lei positiva, criada pelo legislador humano, quando não identificar no seu conteúdo valores contrários àqueles padronizados como universais pela própria corrente doutrinária.

Observando essa doutrina sob o critério de avaliação percebe-se que a lei jurídica deve ser obrigatoriamente obedecida e aplicada pelo juiz. Isso demonstra que nos dois momentos, o de validar e o de avaliar, o jusnaturalismo considera validade e valor como intimamente associados.

Desse modo, o jusnaturalismo, de uma maneira geral, é identificado como sendo simultaneamente: uma filosofia ética que sustenta que há princípios morais e de justiça universalmente válidos e acessíveis à razão humana e uma teoria que define o conceito de direito, segundo a qual um sistema normativo ou uma norma só podem ser qualificados de jurídicos se de acordo com princípios morais ou de justiça.

A doutrina juspositivista ética ou ideológica inverte totalmente o pensamento anterior por conceber a validade como critério da justiça reduzindo a justiça à validade. Dessa forma, teríamos a seguinte formulação: uma lei por ser válida é justa. Assim sendo, esse tipo de positivismo é concomitantemente: uma filosofia ética que sustenta que os princípios morais e de justiça estão de acordo com o princípio da legalidade e uma teoria que define o conceito de direito, segundo a qual um sistema normativo ou uma norma só podem ser qualificados de jurídicos se de acordo com a sua fonte e não de acordo com o seu valor ou mérito.

Já a doutrina juspositivista teórica ou conceitual considera valor e validade como coisas totalmente distintas, seja no domínio da validação ou da avaliação. Dessa forma, a lei jurídica não seria nem determinada por algum critério de justiça, nem tampouco seria tomada como critério para o valor de justiça, mas seria apenas considerada como válida, portanto como jurídica, independentemente de qualquer relação com a justiça.

Portanto, o positivismo jurídico como teórico ou conceitual é identificado como sendo exclusivamente: uma teoria que define o conceito de direito, segundo a qual um sistema normativo ou uma norma só podem ser qualificados de jurídicos se de acordo com as suas fontes e não com o seu valor ou mérito.

Entretanto, existe outra corrente de pensamento que defende a tese de que uma ação seria boa e, portanto, justa, quando em conformidade com a lei, e má ou injusta, quando o contrário se sucedesse, quando a ação fosse desconforme com o prescrito pela lei. Essa forma de valoração da ação denomina-se formal, legalista ou formalismo ético. Com isso dito, tanto o jusnaturalismo quanto o juspositivismo compõem esse formalismo.

Se por um lado o positivismo, em seu sentido ético ou ideológico, representa uma ação como justa por corresponder à lei positiva, o jusnaturalismo ao questionar a justeza da lei positiva e da ação que lhe corresponde comprometeria com as leis naturais, expressando a seguinte frase de Bobbio (1999, p. 16) sobre o legalismo jusnaturalista: “[...] a lei positiva e a ação que lhe corresponde são justas porque são conformes às leis naturais”.

Em suma, pode-se afirmar que para o primeiro justo é tudo que existe em termos de ideal do bem comum, ou seja, se uma lei nega a vontade da justiça deve ser afastado o seu caráter jurídico, como por exemplo, uma lei que nega direito às pessoas. Assim Direito é unicamente o que é justo. Para o segundo, uma norma é justa se for válida, isto é, se existe ou não como regra jurídica dentro de um determinado sistema jurídico. Portanto, ela deve ser emanada de uma autoridade competente ou autorizada, está em vigor, compatível com outra. Em conformidade com Hobbes que disse que a validade de uma norma jurídica é igual à justiça dessa norma.

Expressivas são as palavras de Bodenheimer (1962, p. 202) ao falar que:

Falando de justiça em termos amplos e gerais, poderíamos dizer que ela se relaciona com a aptidão da ordem estabelecida por um grupo ou de um sistema social para a consecução dos seus objetivos primaciais. O fim da justiça é coordenar as atividades e os esforços diversificados dos membros da comunidade e distribuir direitos, poderes e deveres entre eles, de modo a satisfazer as razoáveis necessidades e aspirações dos indivíduos e, ao mesmo tempo, promover o máximo de esforço produtivo e coesão social.

Por isso pode-se dizer que a ideia de justiça, contida na norma, além de ser um valor, é ideológica, pois se assenta na concepção do mundo que surge das relações sociais, já que não pode manter-se desconectada da história. Cada época apresenta uma concepção de justiça que depende das condições sociais de certo momento e lugar.

Deveras, Reale (1998, p. 377) afirma que:

Cada época histórica tem a sua imagem ou a sua idéia de justiça, dependente da escala de valores dominante nas respectivas sociedades, mas nenhuma delas é toda a justiça, assim como a mais justa das sentenças não exaure as virtualidades todas do justo.

Portanto, Gurvitch (1933, p. 70) fala que: “A justiça é como um equilíbrio pela concordância efetiva das pretensões de um com os deveres de outros”. Assim, os valores jurídicos devem ser considerados como relativos, pois não são conceitos a priori aos quais devam ajustar-se as normas jurídicas para justificar sua existência, mas sim a posteriori, determináveis pelo ser humano, progressivamente, na experiência histórica.

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Sobre o autor
Diego Weber da Nóbrega

Estagiei por 3 anos no TJRN, precisamente na Vara da Família, Infância e Juventude da cidade de Caicó/RN. Estagiei por 6 meses na Defensoria Pública do RN na cidade de Caicó/RN. Sou graduado em Direito pela UFRN e Especialista em Direito Processual Civil pela UCAM. Por fim, fiz um artigo jurídico sobre o direito de recusa das Testemunhas de Jeová com respeito às transfusões de sangue.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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Tal artigo foi produzido para o cumprimento de uma avaliação da Disciplina Introdução à Ciência do Direito II da UFRN.

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