Estupro de vulnerável sob a ótica constitucional

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Tratarei aqui apenas da hipótese de relações libidinosas consensuais entre pessoa adulta e menor de 14 (catorze) anos.

Estupro de vulnerável sob a ótica constitucional

Adelino Augusto Pinheiro Pires

Tratarei aqui apenas da hipótese de relações libidinosas consensuais entre pessoa adulta e menor de 14 (catorze) anos.

O art. 217-A do Código Penal tem o seguinte teor:

Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:

Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.”

No tocante a esse crime, cumpre-me conjugar a norma legal com a Constituição da República Federativa do Brasil.

É que a questão crucial, em tais situações, não consiste na conduta do agente em si mesma, mas em se saber se alguém com idade inferior a 14 (catorze) anos tem ou não o direito de fazer sexo com outra pessoa.

A capacidade para alguém fazer sexo não se encontra prevista no Código Civil, nem tampouco no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n.º 8.069/1990), não obstante se trate de uma questão eminentemente cível, isto é, concernente ao direito civil.

Na interpretação teleológica da lei penal, a mesma tem por escopo proteger a incolumidade física, psíquica e emocional e a liberdade sexual de quem ainda não pode deliberar sobre o uso de seu próprio corpo, por ter a personalidade ainda em formação, de modo que eventual consentimento da vítima não elide o crime, não obstante possa ser considerado para minorar a pena-base, em caso de condenação do agente. Infere-se que a norma infraconstitucional não reconhece como válida a manifestação de vontade da vítima, se menor de catorze anos.

No entanto, a norma infraconstitucional em referência não é cível, mas penal.

Reputo que essa presunção legal de incapacidade para deliberação sobre o próprio corpo e sexualidade não é absoluta, no contexto constitucional, senão vejamos.

Assim dispõe o art. 231, caput, da Carta Magna:

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer recuperar todos os seus bens.”

(Grifei).

Tomo por paradigma o comportamento dos índios das várias tribos existentes no Parque Nacional do Xingu.

Dentre os costumes indígenas, encontra-se o de o índio desposar a índia quando esta completa 9 (nove) primaveras, isto é, a idade de 9 (nove) anos, e é posta em cárcere privado no interior da oca, onde terá restringida sua mobilidade corporal até a menarca (a primeira menstruação), que pode ocorrer entre 10 (dez) e 12 (doze) anos de idade. Só então o índio irá copular com a índia sua mulher.

Mas se em seu art. 231, caput, a Carta Magna assegura aos índios a autonomia de vontade para assim agir, em seu art. 5º, caput, que é cláusula pétrea (e que portanto sempre prevalecerá sobre as normas constitucionais que não o são), dispõe serem todos iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.

Em suma, como a incursão no tipo penal em referência leva em conta a natureza da vítima e não a do agente, ou os índios também são suscetíveis de cometer o crime de estupro de vulnerável ou ninguém será passível de cometê-lo, quando pessoa menor de 14 (catorze) anos consentir com a prática de conjunção carnal ou outro ato libidinoso com pessoa diversa.

A exegese da lei penal conforme a Constituição impõe uma terceira alternativa, com base no Princípio da Razoabilidade: como o crime do art. 217-A do Código Penal consiste em estupro de vulnerável, é imprescindível, para sua materialidade, que fique comprovada a vulnerabilidade da suposta vítima.  

A definição objetiva do que seja vulnerabilidade, com base na idade de uma pessoa, não pode prevalecer sobre o conceito subjetivo de uma circunstância que é subjetiva.

Não é rara a situação em que não há vulnerabilidade subjetiva numa pessoa menor de 14 (catorze) anos que se relaciona sexualmente com outra que seja adulta.

Por exemplo, é um quadro comum pessoa menor de 14 (catorze) anos, do sexo feminino, com a silhueta de mulher formada, que desvendou e conhece seu corpo, cuja sexualidade não é infantil e cuja personalidade não é infantilizada, que possui malícia, planeja o que faz, sabe seduzir e ser seduzida, possui desejos voluptuosos e a consciência do que faz, quando se relaciona sexualmente com outra pessoa, e que não se arrepende disso após ultrapassar a idade de 14 (catorze) anos, confirmando o que havia feito, como produto de sua vontade.

Deve o magistrado, ao julgar uma ação penal relativa à suposta prática de estupro de vulnerável, fazê-lo com algo mais que a leitura de depoimentos, de modo a captar aquilo que os autos frios não revelam.

É essencial saber se a pessoa com quem o réu praticou  o ato libidinoso era efetivamente vulnerável, ao tempo do fato.

Se não era, fica afastada a conduta típica do art. 217-A do Código Penal, na sua interpretação conforme a Constituição.

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Sobre o autor
Adelino Augusto Pinheiro Pires

Juiz de Direito no Espírito Santo.

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