A consignação em benefícios assistenciais para pagamento de débitos decorrentes de fraudes contra a Previdência Social

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O presente artigo pretende discutir a legalidade do Decreto 6.214/07, que veda a possibilidade de descontos nos benefícios instituídos pela Lei. 8.742/93 (LOAS), para quitação de débitos originários de benefícios previdenciários.

Introdução

Diariamente a Previdência Social é vítima da ação delituosa de fraudadores que, em meio a milhões de honestos e dignos beneficiários, buscam locupletar-se à custa dos contribuintes, valendo-se dos mais diversos expedientes escusos, os quais geram um prejuízo aos cofres públicos que superam as centenas de milhões de reais a cada ano.

Os causadores dos prejuízos podem responder processos de cobrança administrativa e judicial, inclusive com inscrição do débito em dívida ativa, sem prejuízo de eventuais sanções penais.

Quando o causador do dano ostentar a qualidade de beneficiário da Previdência Social, é possível efetuar o pagamento do débito mediante consignação no respectivo benefício, em tantas quantas forem as parcelas necessárias para quitar o dívida, conforme preceitua o art. 115, II da Lei 8.213/91 e o art. 154 do Decreto 3.048/99.

Ocorre, entretanto, que para os benefícios assistenciais ao idoso e ao deficiente instituídos pela Lei 8.742/93 -  Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS), o tratamento passou a ser diverso, ou seja, a consignação no benefício passou a ser vedada para quitação de débitos com a Previdência Social, ainda que se trate de cobrança de valores auferidos em decorrência de fraudes.

Neste sentido dispõe o § 6o , do art. 49 do Decreto 6.214/07:

Art. 49.  Cabe ao INSS, sem prejuízo da aplicação de outras medidas legais, adotar as providências necessárias à restituição do valor do benefício pago indevidamente, em caso de falta de comunicação dos fatos arrolados nos incisos I a III do caput do art. 48, ou em caso de prática, pelo beneficiário ou terceiros, de ato com dolo, fraude ou má-fé.

§ 6o  Em nenhuma hipótese serão consignados débitos originários de benefícios previdenciários em Benefícios de Prestação Continuada.

(grifo nosso).

Como procuraremos demonstrar ao longo do presente artigo, o dispositivo acima mencionado parece-nos despropositado, de legalidade duvidosa, além de implicar, ao nosso sentir, numa indevida complacência com aqueles que praticam atos fraudulentos contra o sistema da Seguridade Social.

Da possibilidade de consignação em benefício assistencial

 

Induvidoso que aquele que causa prejuízo a outrem tem o dever de reparar, especialmente quando age mediante conduta apta a configurar infração penal.

 

Respeitado o direito ao contraditório e à ampla defesa e demais direitos e garantias do devedor, cabe à Administração proceder a cobrança dos responsáveis da maneira mais eficaz possível, ou seja, da forma mais célere, menos onerosa e, sempre que possível, apta para garantir a execução.

 

O benefício assistencial de prestação continuada, não custa lembrar, é um benefício pago pela Assistência Social que, ao lado da Previdência Social e Saúde, compõe o tripé que sustenta a Seguridade Social, nos termos do art. 194 da Constituição Federal.

 

As normas que tratam da consignação em benefícios previdenciários e assistenciais são claras no sentido da possibilidade de consignação, mais que isso, na adoção preferencial desta medida. Assim dispõe o art. 115 da Lei 8.213/91, bem como o art. 154 do Decreto 3.048/99 e o art. 49 do Decreto 6.214/07 que disciplina os benefícios assistenciais da Lei 8.742/93, o qual transcrevemos:

 

Art. 49.  Cabe ao INSS, sem prejuízo da aplicação de outras medidas legais, adotar as providências necessárias à restituição do valor do benefício pago indevidamente, em caso de falta de comunicação dos fatos arrolados nos incisos I a III do caput do art. 48, ou em caso de prática, pelo beneficiário ou terceiros, de ato com dolo, fraude ou má-fé.

§ 1o  O montante indevidamente pago será corrigido pelo mesmo índice utilizado para a atualização mensal dos salários de contribuição utilizados para apuração dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social, e deverá ser restituído, sob pena de inscrição em Dívida Ativa e cobrança judicial.

§ 2o  Na hipótese de o beneficiário permanecer com direito ao recebimento do Benefício de Prestação Continuada ou estar em usufruto de outro benefício previdenciário regularmente concedido pelo INSS, poderá devolver o valor indevido de forma parcelada, atualizado nos moldes do § 1o, em tantas parcelas quantas forem necessárias à liquidação do débito de valor equivalente a trinta por cento do valor do benefício em manutenção.

§ 3o  A restituição do valor devido deverá ser feita em única parcela, no prazo de sessenta dias contados da data da notificação, ou mediante acordo de parcelamento, em até sessenta meses, na forma do art. 244 do Regulamento da Previdência Social, aprovado pelo Decreto nº 3.048, de 1999, ressalvado o pagamento em consignação previsto no § 2o. 

§ 4o  Vencido o prazo a que se refere o § 3o, o INSS tomará providências para inclusão do débito em Dívida Ativa.

 

(...)

§ 6o  Em nenhuma hipótese serão consignados débitos originários de benefícios previdenciários em Benefícios de Prestação Continuada.

 

 

O artigo 49, como não poderia deixar de ser, determina a persecução da cobrança dos valores recebidos indevidamente, inclusive quando praticados mediante fraude, dolo ou má-fé. Para tanto, prevê a possibilidade de consignação quando o beneficiário dos valores indevidos continuar a ser titular de benefício, seja ele assistencial ou previdenciário.

 

De maneira teratológica, a nosso ver, o Decreto 6.214/07 põe a salvo da consignação os débitos originários de benefícios previdenciários em benefícios de prestação continuada. No mesmo sentido dispõe o art. 40, parágrafo único da Instrução Normativa INSS 40/2010.

 

Trata-se de disposição normativa que nos parece bizarra e, eivada de vícios de legalidade, além de contrariar princípios constitucionais, senão vejamos.

 

Da ilegalidade e ofensas à Constituição do § 6º do Art. 49 do Decreto 6.214/07.

 

Da violação ao princípio da legalidade

 

Ao inovar, criando impedimento não previsto na Lei (8.742/93) que supostamente deveria regular, o Decreto 6.214/07 ultrapassou sua finalidade normativa, invadindo campo reservado exclusivamente à lei em sentido estrito.

 

Na falta de disposição expressa sobre consignação na Lei Orgânica de Assistência Social, devem-se aplicar os preceitos gerais da Lei 8.213/91 por analogia, não, porém, criar via Decreto, ao arrepio da Lei, disposições que contrariam a lógica do sistema normativo.

 

                        Ademais, ao limitar o alcance dos primados legais da responsabilidade civil, o Decreto contraria, por exemplo, o que dispõe o Código Civil (arts. 186, 187 e 927) a respeito do tema.

 

 

Da violação ao princípio da igualdade

 

 

Como se sabe, ao INSS cabe a manutenção e revisão dos benefícios previdenciários bem como dos benefícios assistenciais previstos na LOAS, ainda que estes não digam respeito ao Regime Geral de Previdência Social.

 

O Decreto 6.214/07, por seu turno, permite que o INSS realize descontos em benefícios assistenciais, desde que o débito decorra de irregularidade em outro benefício assistencial, porém, veda a consignação quando os débitos forem originários de benefícios previdenciários.

 

Ao assim dispor, o referido diploma criou, sem amparo legal, uma situação de flagrante desigualdade de tratamento a depender da origem do débito, não obstante, em todo caso, caiba ao INSS manter, revisar e realizar consignações, tanto dos benefícios assistenciais como dos previdenciários.

 

A literalidade da regra poderá levar a situações de intoleráveis iniquidades. A título de ilustração imaginemos uma situação em que determinada pessoa comete fraude considerável em benefício previdenciário e posteriormente passe a receber, legitimamente, benefício assistencial. Ainda que reconhecida a fraude, nos termos do Decreto mencionado, não poderá sofrer consignação em seu benefício.

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Doutra sorte, caso uma pessoa tenha recebido, de boa-fé, valores a maior em benefício assistencial, caso mantido o benefício, verá ser operada contra si uma consignação. Em outros termos, nas hipóteses ventiladas, proteger-se-ia o criminoso e punir-se-ia, apenas, o recebedor de boa-fé.

 

Violação ao princípio da eficiência.

 

A consignação em benefício é uma das formas mais efetivas de reaver valores indevidamente pagos pela Seguridade Social, pois, não obstante fracionada e sem garantia de integralização da dívida – já que o pagamento total estaria condicionado à continuidade do benefício em número de meses suficientes à quitação do débito – tal procedimento permite, ao menos, a certeza de ressarcimento parcial, o que muitas vezes é improvável por outros meios de cobrança, especialmente em casos de devedores hipossuficientes e a respeito dos quais não se conhece patrimônio exequível.

 

Ao impedir a consignação, a norma supostamente regulamentadora do Decreto 6.214/07, via reflexa, impõe à Administração que seja ajuizada uma ação judicial de cobrança ou execução para inscrição do débito em dívida ativa, com mínimas expectativas de ressarcimento.

 

Contrariando os primados da celeridade e eficiência, abandona-se a forma mais rápida e efetiva de recomposição ao erário, para que sejam adotadas medidas que ensejam forte movimentação da máquina estatal, sobrecarregando o já assoberbado Poder Judiciário, entulhando de serviços – que ao fim tendem a se mostrarem inúteis – Procuradores Federais, Juízes Federais, além de servidores Públicos Federais do Poder Executivo e Judiciário. Tal disparate beira a improbidade administrativa.

 

Interpretação teleológica e violação ao princípio da razoabilidade

 

Com algum esforço se pode imaginar que a vedação à consignação em benefício assistencial por débito em benefício previdenciário tem por escopo preservar os rendimentos do benefício assistencial, como medida de proteção à subsistência do beneficiário.

 

Tal finalidade, caso realmente exista, é desconsiderada pelo próprio art. 49 do Decreto mencionado na medida em que permite a consignação do benefício em outras hipóteses.

 

A proteção supostamente pretendida é, inclusive, meramente aparente. A vedação à consignação não impede – ao revés compele – a adoção de outras medidas consideravelmente mais gravosas ao particular, tais como o envio de ofício de notícia-crime ao Ministério Público Federal e o ajuizamento de medida judicial, com todos os seus implícitos gravames, para ressarcimento do débito.

 

Assim, repisando o que até então foi dito, temos que ao impedir consignação além de não se atender à finalidade possivelmente pretendida, ainda determina que o Estado trilhe os mais longos, burocráticos e dispendiosos caminhos, sem a certeza de que um dia se chegue ao destino que facilmente seria alcançado com o desconto no benefício assistencial.

 

Da consignação em margem inferior ao limite de 30% da renda mensal

 

Embora se afirme ser devida a consignação, nada impede que o INSS, apurando as peculiaridades do caso concreto, em especial o valor mínimo do benefício a ser descontado e a situação de vulnerabilidade social dos beneficiários, utilize uma margem de consignação inferior ao limite legal de 30% da renda mensal do benefício.

 

Conclusão

Concluímos pela ilegalidade do § 6o , do art. 49 do Decreto 6.214/07, que veda a consignação em benefícios assistenciais da LOAS para pagamento de débitos contraídos em benefícios previdenciários, especialmente quando se tratar de vantagem financeira obtida mediante dolo ou má-fé.

Reconhecendo, todavia, a vulnerabilidade social típica dos beneficiários da Assistência Social, é recomendável que os descontos que venham a ser feitos nos referidos pagamentos sejam realizados em patamar inferior ao limite legal de 30% da renda mensal do benefício.

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Sobre o autor
Nilson Rodrigues Barbosa Filho

Pós-graduado (Especialista) em Direito Público e em Direito Previdenciário, Mestrando em Direito Constitucional pelo IDP. Procurador Federal, atualmente exerce a função de Chefe do Serviço Regional de Assuntos Estratégicos da Procuradoria Federal Especializada junto ao INSS em Brasília. Professor de Direito Previdenciário da FACIPLAC/DF.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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