Análise a que não se pode furtar diz com a controvérsia instalada acerca da classificação das normas definidoras de direitos fundamentais sociais em programáticas ou de aplicação imediata.
José Afonso da Silva1 explicita a sua posição dizendo que
A eficácia e aplicabilidade das normas que contêm os direitos fundamentais dependem muito de seu enunciado, pois se trata de assunto que está em função do Direito positivo. A Constituição é expressa sobre o assunto, quando estatui que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. Mas certo é que isso não resolve todas as questões, porque a Constituição mesma faz depender de legislação ulterior a aplicabilidade de algumas normas definidoras de direitos sociais, enquadrados de direitos fundamentais. Por regra, as normas que consubstanciam os direitos fundamentais democráticos e individuais são de eficácia contida e aplicabilidade imediata, enquanto as que definem os direitos econômicos e sociais tendem a sê-lo também na Constituição vigente, mas algumas, especialmente as que mencionam uma lei integradora, são de eficácia limitada, de princípios programáticos e de aplicabilidade indireta, mas são tão jurídicas como as outras e exercem relevante função, porque, quanto mais se aperfeiçoam e adquirem eficácia mais ampla, mais se tornam garantias de democracia e do efetivo exercício dos demais direitos fundamentais.
As normas constitucionais programáticas são dirigidas aos três poderes estatais: informam os parlamentos ao editar leis, bem como a
Administração e o Judiciário ao aplicá-las, de ofício ou contenciosamente. A legislação, a execução e a própria jurisdição ficam sujeitas a esses ditames, que são como programas dados à sua função. Andreas Krell2, com base neste ensinamento de Pontes de Miranda, chega a afirmar que as normas programáticas não representam apenas recomendações de índole política, “mas constituem direito diretamente aplicável”.
Com efeito, o artigo 5º. § 1º. da Constituição Federal Brasileira dispõe que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. Tal disposição legal abrange as normas que revelam os direitos sociais3
Muito se tem debatido acerca da eficácia dos direitos fundamentais sociais, entendida esta como o grau de obrigatoriedade e exigibilidade, até mesmo através da tutela jurisdicional, que conforma a implementação por parte do Poder Público das medidas necessárias à plena realização dos mandamentos contidos no plano social. O cotidiano dos grandes centros urbanos desnuda a realidade social e aponta para uma ineficiência, cada vez mais evidente, do aparato estatal na tarefa de implementação de políticas sociais possibilitadoras da realização dos direitos referidos.
A disposição expressa na Carta da República Brasileira (artigo 5º, §1º, CF) garante, diferentemente de outras ordens constitucionais, que todas as normas de direitos fundamentais nela presentes têm eficácia plena e aplicação imediata4, assim, pode-se afirmar que os direitos sociais a prestações fáticas5 possuem aplicação imediata6. Tal assertiva é confirmada pela circunstância de que tanto os direitos de defesa (contra o Estado) quanto os direitos prestacionais7 (através do Estado) estão incluídos no Capítulo II do Título II. Desse modo, é insubsistente a teoria que os define simplesmente como normas programáticas, incapazes de quedar efeitos no plano fático. Ademais, as normas sobre direitos fundamentais, por expressa dicção constitucional, são de aplicação imediata8. Neste diapasão, importante é a lição de SARLET:
De acordo com a tradição de nossa doutrina, os direitos fundamentais sociais têm sido compreendidos como direitos a prestações estatais, havendo ainda quem os enquadre na doutrina das liberdades públicas, conceituando os direitos sociais como a liberdade positiva do indivíduo de reclamar do Estado certas prestações. Considerados resultado de uma evolução que radica na já referida Constituição Francesa de 1793 e que passa pela assim denominada “questão social” do século XIX, os direitos fundamentais sociais passaram a ser entendidos como uma dimensão específica dos direitos fundamentais, na medida em que pretendem fornecer os recursos fáticos para uma efetiva fruição das liberdades, de tal sorte que têm por objetivo (na condição de direitos prestacionais) a garantia de uma igualdade e liberdade real, que apenas pode ser alcançada pela compensação das desigualdades sociais. Justamente em virtude de sua vinculação com a concepção de um Estado social e democrático de Direito, como garante da justiça material, os direitos fundamentais sociais reclamam uma postura ativa do Estado, visto que a igualdade material e a liberdade real não se estabeleceram por si só, carecendo de uma realização. Para além disso, cumpre observar – arrimados na expressiva lição de J.Miranda – que por meio dos direitos sociais se objetiva atingir uma liberdade tendencialmente igual para todos, que apenas pode ser alcançada com a superação das desigualdades e não por meio de uma igualdade sem liberdade9.
Toda a construção constitucional da Carta de 1988 está sincronizada com o modelo de Estado adotado pelo constituinte originário, qual seja, o Estado Social10. Vislumbra-se isso pela análise dos artigos 1º e 3º da Lei Maior, os quais não fazem qualquer tipo de diferenciação entre os direitos fundamentais propriamente ditos (chamados clássicos) e os direitos fundamentais sociais11. Daí se vê, como já referido, que estes últimos (os direitos fundamentais sociais) também foram dotados de eficácia plena a partir da promulgação da Constituição Federal.
CANOTILHO12 demonstra a impossibilidade de se solver a questão referente à efetivação de tais direitos apelando-se para a dicotomia radical de ou se prestar todos os direitos a todos, ou de não prestar nenhum a ninguém13. Pugna, então, pela tarefa árdua de interpretar-se a Lei Fundamental para cada caso concreto, devendo ser a inaplicação dessas normas, necessariamente, fundamentada, modo a garantir a maior eficácia possível do preceito.
O festejado constitucionalista português, precursor da “constituição dirigente”, analisa a efetivação dos direitos fundamentais sociais atrelada a chamada “reserva do possível”, ligando-os, portanto, à disponibilidade econômica da máquina estatal, atribuindo à escassez de recursos um poder limitador à prestação social por parte do Estado14.
De acordo com Andreas Krell15, a teoria apresentada por CANOTILHO é uma variação de tese surgida na jurisprudência alemã, segundo a qual a disponibilidade de recursos econômicos estatais é condição para a garantia de direitos subjetivos através de serviços públicos. Sob essa ótica, o poder de decisão estaria circunscrito à discricionariedade das autoridades públicas responsáveis pelas decisões governamentais relevantes, estas, por outro lado, materializadas na composição do orçamento público.
Noutras palavras, a simples outorga pela norma de uma série de direitos não é suficiente. Faz-se necessária a existência de recursos materiais que tornem possível a satisfação do direitos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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CANOTILHO, Gomes J.J. e MOREIRA, Vital. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5.ed. Coimbra: Almedina, 2001.
KRELL, Andreas. Realização dos direitos Fundamentais sociais mediante controle judicial da prestação dos serviços públicos (uma visão comparativa). Revista de Informação Legislativa, Brasília, Senado Federal, n. 144, p.239-260, out./dez.1999.
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TORRES, Ricardo Lobo. A cidadania multidimensional na era dos direitos. In: Teoria dos Direitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.
Notas
1 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 13.ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1997. p. 178-179.
2 KRELL, Andreas. Realização dos direitos Fundamentais sociais mediante controle judicial da prestação dos serviços públicos (uma visão comparativa). Revista de Informação Legislativa n. 144, out./dez.1999. p. 240. O autor também menciona, na mesma obra (p.243), que “as normas direitos fundamentais são de aplicação imediata, conforme disposto no §1º. do art. 5º. Esse dispositivo serve para salientar o caráter preceptivo e não-programático dessas normas, deixando claro que os direitos fundamentais podem ser imediatamente invocados, ainda que haja falta ou insuficiência da lei. O seu conteúdo não precisa ser concretizado por lei; eles possuem um conteúdo que pode ser definido na própria tradição da civilização ocidental-cristã, da qual o Brasil faz parte. A sua regulamentação legislativa, quando houver, nada acrescentará de essencial: apenas pode ser útil (ou, por ventura necessária) pela certeza e segurança que criar quanto às condições de exercício de direito ou quanto à delimitação frente a outros direitos”.
3 SILVA, José Afonso da. Poder Constituinte e Poder Popular. São Paulo: Malheiros Editores, 2000. p. 203-204. Apud LEIVAS, Paulo Gilberto Cogo. A estrutura normativa dos direitos fundamentais sociais. Obra inédita.
4 A controvérsia acerca da classificação das normas definidoras dos direitos fundamentais sociais foi objeto de análise no capítulo 1.1 desta monografia.
5 “Os direitos fundamentais sociais não são direitos contra o Estado, mas sim direitos por meio do Estado, exigindo do Poder Público certas prestações materiais”. KRELL, Andreas. Realização,... p. 240.
6 Rogério Gesta Leal preceitua que “no Estado Social de Direito, as garantias e os direitos sociais conquistados e levados à norma constitucional, não podem ficar relegados em uma região ou conceituação meramente programática, enquanto promessa de um futuro promissor, a serem cumpridas pelo legislador infraconstitucional, mas impõe-se uma vinculação direta e orgânica frente aos Poderes instituídos. Não sendo assim, aquelas conquistas não seriam eficazes e, tampouco, estariam qualificando, valorativamente, este Estado como Social de Direito”. Perspectivas hermenêuticas dos direitos humanos e fundamentais no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 72.
7 Em algumas sentenças da Corte Constitucional colombiana o mínimo vital (existencial) se associa ao núcleo essencial de um ou de todos os direitos fundamentais sociais prestacionais. Entre estes, tais sentenças incluem o direito ao trabalho, cujo núcleo essencial corresponde não apenas à prerrogativa de escolher a profissão como também a garantia de uma remuneração que assegure o mínimo existencial da pessoa. Esta remuneração, contudo, não é necessariamente igual ao salário mínimo, conforme já pacificado na referida Corte. ARANGO, Rodolfo e LEMAITRE, Julieta. Jurisprudencia constitucional sobre el derecho al mínimo vital. Estudios ocasionales CIJUS. Bogotá: Ediciones Uniandes, 2002. p.16.
8 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantido-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguinte: (...)
§ 1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.
9 SARLET, Ingo Wolfgang. Os direitos fundamentais sociais na ordem constitucional brasileira. Revista da Procuradoria-Geral do Estado (RS). Porto Alegre: Procuradoria Geral do Estado, v.25, n.55, jun./2002. p. 47.
10 Paulo Bonavides, em seu Curso de Direito Constitucional, p. 371, leciona: “A Constituição de 1988 é basicamente em muitas de suas dimensões essenciais uma Constituição do Estado social.Portanto, os problemas constitucionais referentes a relações de poderes e exercício de direitos subjetivos têm que ser examinados e resolvidos à luz dos conceitos derivados daquela modalidade de ordenamento. Uma coisa é a Constituição do Estado liberal, outra a Constituição do Estado social. A primeira é uma Constituição antigoverno e anti-Estado; a segunda uma Constituição de valores refratários ao individualismo no Direito e ao absolutismo no Poder”.
11 O artigo 3º da Constituição Federal dispõe: “Constituem-se objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
12 CANOTILHO, Gomes J.J. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5.ed. Coimbra: Almedina, 2001. p. 431.
13 Para Ronald Dworkin é justamente neste aspecto de aplicação das normas de forma “tudo-ou-nada” que reside a diferença entre regras e princípios, diferença esta que para ele “é de natureza lógica”, pois “os dois conjuntos de padrões apontam para decisões particulares acerca da obrigação jurídica em circunstâncias específicas, mas distinguem-se quanto à natureza da orientação que oferecem”. Assim, “as regras são aplicadas à maneira do tudo-ou-nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão”. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002. Humberto Bergmann Ávila explica a tese de Dworking, dizendo que, “no caso de colisão entre regras, uma delas deve ser considerada inválida. Os princípios, ao contrário, não determinam vinculativamente a decisão, mas somente contêm fundamentos, os quais devem ser conjugados com outros fundamentos provenientes de outros princípios. Daí a afirmação de que os princípios, ao contrário das regras, possuem uma dimensão de peso (‘dimension of weight’), demonstrável na hipótese de colisão entre os princípios, caso em que o princípio com peso relativo maior sobrepõe-se ao outro, sem que este perca sua validade. Nesse sentido, a distinção elaborada por Dworkin não consiste numa distinção de grau, mas numa diferenciação quanto à estrutura lógica, baseada em critérios classificatórios, em vez de comparativos”. A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de proporcionalidade. Revista de direito administrativo n. 215. jan./mar.1999. Rio de Janeiro: Ed. Renovar e Fundação Getúlio Vargas. p. 157.
14 Sobre a reserva do possível, ver capítulo 2.1.
15 KRELL, Andreas J. Realização… p. 246.