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MP 2.088-35: a ´Lei Fleury´ da era FHC

01/02/2001 às 00:00
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O Ministério Público viveu uma mudança e tanto ao longo dos séculos: os antigos "procuradores de César", do direito romano, ou "os advogados do Rei", da França absolutista, que defendiam "os interesses privados dos monarcas", transformaram-se nos "paladinos da lei" da era moderna, nos "advogados da sociedade" e "braço de defesa da cidadania" da Constituição brasileira de 1988 (uma das mais avançadas no mundo sobre o tema!), que o incumbiu, expressamente, da "defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis" (art. 127).

Essa lenta evolução histórica não foi fácil nem tranqüila. Os avanços institucionais do Ministério Público foram obtidos aos surtos, nos períodos de plena democracia. A existência de um regime democrático é a "conditio sine qua non" para o florescimento de um Ministério Público livre, forte e atuante, tal como a sociedade almeja e reclama.

Nos regimes autoritários ou ditatoriais, o Ministério Público é a primeira instituição que fenece. Ou porque é amordaçada, manietada, sufocada, ou, o que é pior, porque é cooptada, controlada e utilizada como capitão do mato, armado de baraço e cutelo, para perseguir os "inimigos do regime" e os "desafetos do governo", com base em leis injustas, iníquas e arbitrárias.

Foi o que testemunhamos na história recente do país, nos "anos de chumbo da ditadura militar". Sob o pálio da "doutrina da Segurança Nacional", criou-se um "poder paralelo", nascido do conúbio incestuoso dos métodos do Esquadrão da Morte com os pretensos "interesses do regime", gerando figuras monstruosas como a do delegado do Dops Sérgio Fernando Paranhos Fleury, que recomendava aos seus policiais na caça a bandidos ou subversivos – "Não adianta tentar pegá-los vivos!", como nos conta Percival de Souza em Autópsia do Medo.

Por essa época, a valente atuação de uns poucos e corajosos membros do Ministério Público foi não só deliberadamente cerceada e sabotada, como, ademais, procurava-se desmoralizá-los vergonhosa e publicamente. Assim procedeu o governador arenista Abreu Sodré, ao debochar, num programa de TV, da pequena estatura física do promotor Hélio Pereira Bicudo, um dos mais atuantes no combate ao Esquadrão da Morte, que "não subia às favelas para prender marginais", como se esse fosse o papel do promotor.

Ao mesmo tempo, o "sistema militar" cooptou inúmeros membros do Parquet, covardes o bastante para proclamarem que "as provas apuradas são suficientes e robustas para nos convencer da hipótese de suicídio" de presos políticos como Vladimir Herzog e Manoel Fiel Filho, que, como se viu depois, foram brutalmente torturados e "suicidados" na Casa da Vovó, apelido dos porões do DOI-Codi.

Quando o Ministério Público e o Judiciário conseguiram, enfim, colocar o delegado Fleury no banco dos réus, tantos eram os crimes a ele imputados – embora, muitas vezes, "sem provas cabais", porque praticados nos porões do regime, sem testemunhas ou assistidos apenas pelos comparsas e por isso negados – o "sistema militar" agiu rápido e fulminante: obrigou o Congresso Nacional a aprovar, no prazo recorde de trinta dias, a Lei nº 5.941, de 22 de setembro de 1973, proposta pelo deputado Cantídio Sampaio, líder do governo na Câmara Federal, proibindo a prisão automática (por ocasião da pronúncia, como era então usual nos processo por homicídio) de "réus primários e de bons antecedentes".

Essa lei tinha beneficiário direto, certo e determinado: o famoso delegado do Dops, cujos "bons antecedentes" eram atestados por oficiais graduados das Forças Armadas em retribuição aos "relevantes serviços prestados no combate à subversão", daí ter ficado conhecida no jargão forense como a "lei Fleury". No entanto, como o nome do malsinado delegado não podia ficar expresso no texto da lei, pela mesma porteira escancarada passaram muitos e muitos bandidos dos mais variados calibres, que, por não terem tido condenações judiciais anteriores, eram tecnicamente considerados "primários e de bons antecedentes".


A ditadura militar caiu. Veio a Nova República. O Brasil Novo. A era tucana de FHC. E os escândalos continuam pipocando, repetitivos e abundantes como chuva na Amazônia, forçando a atuação do Ministério Público, guardião dos "interesses sociais indisponíveis": o Caso Sivam, a compra de votos para aprovar a Emenda da Reeleição, as privatizações das teles efetuadas "nos limites da irresponsabilidade" (como revelado no "grampo" do BNDES), a farra dos jatos da FAB para vilegiaturas de ministros em Fernando de Noronha, a "pródiga ajuda" de R$ 1,5 bilhão do Banco Central para os bancos Marka e o FonteCindam, o caso do juiz Nicolau dos Santos Neto do TRT paulista (com livre e permanente acesso aos mais bem situados gabinetes do poder), a descoberta do Caixa 2 da última campanha presidencial, e, "last, but not least", o desperdício da Feira de Hannover, que respingou no filho do presidente e desencadeou a reação irada do Planalto.

Mais ágil do que o "sistema militar", e dispensando essas "tolas formalidades" do "devido processo legislativo", o governo baixou a Medida Provisória nº 2.088-35, de 28 de dezembro de 2000, entravando, deliberadamente, o processo de apuração das responsabilidades dos agentes públicos acusados de "atos de improbidade administrativa" tipificados na Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992.

A MP 2.088 é a 35ª reedição da MP nº 1.669, de 19 de junho de 1998, que tinha, originariamente, modesto objetivo: alterar a Lei nº 9.649, de 27 de maio de 1998 (editada menos de um mês antes), dispondo sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios, a fim de encaixar na estrutura do Poder Executivo a Secretaria Nacional Antidrogas. E só!

Nas reedições posteriores, como se fosse a vala comum do Cemitério de Perus, onde se jogavam os corpos dos "desaparecidos do regime", a MP 1.669 foi ganhando leis em decomposição, mudando-se, por exemplo, o Regime Jurídico Único dos Servidores da União, até chegar às alterações da Lei de Improbidade Administrativa, que não constavam de sua 34ª versão efetuada sete dias antes (MP nº 1.964-34, de 21 de dezembro de 2000), o que deixa à mostra, como os restos mortais das vítimas da "guerra revolucionária", o desejo de retaliar os Procuradores da República que instauraram procedimento sobre a farra da Feira de Hannover.

A MP 2.088-35 criou uma nova figura de improbidade administrativa, para enquadrar delegados e membros do Ministério Público que ousarem "instaurar temerariamente inquérito policial ou procedimento administrativo ou propor ação de natureza civil, criminal ou de improbidade, atribuindo a outrem fato de que o sabe inocente". A "denunciação caluniosa" já era crime previsto no art. 339 do Código Penal. A Lei de Responsabilidade Fiscal Penal (Lei nº 10.028, de 19 de outubro de 2000) endureceu a lei penal comum, prevendo a mesma figura na instauração de inquéritos e procedimentos administrativos. Como saber se o acusado é inocente, sem a instauração, no mínimo, de inquérito ou procedimento administrativo?

A MP 2.088-35, tal como a "lei Fleury", revela as "contradições do regime". Admite a propositura da ação de improbidade com base em "documentos ou justificação que contenham indícios suficientes" ou em "razões fundamentadas da impossibilidade de apresentação de qualquer dessas provas", mas impõe ao juiz a obrigação de rejeitar, desde logo, a ação com base na resposta preliminar do réu (antes, portanto, da chamada "instrução probatória"), se concluir pela "inexistência do ato de improbidade" ou pela "improcedência da ação".

Se a ação for considerada improcedente, o juiz sancionará o autor da ação, a pedido do réu, com "multa não superior a R$ 151.000,00 (cento e cinqüenta e um mil reais)" e inverte as posições do jogo, dando ao acusado o direito de, mediante reconvenção, processar o acusador pelo fato de tê-lo acusado em nome da sociedade.

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A MP 2.088-35 subverte, assim, todos os princípios do processo, pois ao oferecer a denúncia (e diga-se o mesmo para o ajuizamento da ação civil), o que orienta o membro do Ministério Público é o "in dúbio, pro societate", porque a sociedade tem interesse em que, diante de indícios suficientes, seja aberta a possibilidade se produzir a prova em juízo. Se tais indícios não se transformarem em prova, ao longo da instrução processual, aí, sim, ao fim e ao cabo, persistirá a dúvida, que beneficiará o réu, e orientará a decisão absolutória do juiz – "in dúbio, pro reo".

Isso é natural e decorre do caráter dialético do processo. O que é indício suficiente, para justificar a propositura da ação, pode não consubstanciar prova irrefutável e necessária à sentença condenatória. A improcedência da ação, portanto, não decorre, necessariamente, de má fé do autor da ação civil ou penal, mas da impossibilidade de transformar os indícios em prova. E pode até decorrer de denúncia calçada em prova coligida no inquérito policial ou em procedimentos dos Tribunais de Contas que, na instrução processual civil ou penal, venham a ser demolidas pela defesa, à vista de fatos ou circunstâncias novos, o que também leva à decretação da improcedência da ação.

Com essa MP, o governo pretendeu atingir, indisfarçavelmente, o Procurador da República Luiz Francisco de Souza, acusado de ser o "braço armado da oposição", tolice tão grande quanto a de imputar ao ministro Nelson Jobim a condição de "líder do governo no STF". Antes, colocaram na cola de Luiz Francisco uma policial feminina, que o seduziu, atraindo-o para um motel, onde se armou um escândalo para desmoralizá-lo, à semelhança do que o "sistema militar" tentou fazer com Hélio Bicudo nos tempos do Esquadrão da Morte.

Tal como a "lei Fleury", a MP nº 2.088-35, editada para livrar de responsabilidade algumas figuras do primeiro escalão federal, é uma porteira aberta para um sem número de agentes públicos que não honram o cargo que ocupam, confundindo o interesse público com seus interesses privados. A gritante e inacreditável inconstitucionalidade dessa medida não pode prosperar. Nem o recuo do governo, retirando a multa aplicada aos procuradores, sana os vícios inconcebíveis desse ato que atenta contra a independência do Ministério Público, e, portanto, do defensor da sociedade.

O governo, que abriu as valas do Cemitério de Perus e de outros fossos clandestinos, desenterrando os ossos das vítimas do arbítrio, não tem o direito de sepultar a árdua, difícil, lenta e heróica evolução institucional do Ministério Público na cova rasa de medidas canhestras, que denigrem o ordenamento jurídico brasileiro, posto que extrapolam e violentam suas restritas finalidades constitucionais.

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Sobre o autor
Luiz Ismaelino Valente

procurador de Justiça no Pará, professor de Direito Eleitoral da ESM/PA e da FESMP/PA, sócio emérito do IBRADE (Instituto Brasileiro de Direito Eleitoral)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VALENTE, Luiz Ismaelino. MP 2.088-35: a ´Lei Fleury´ da era FHC. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 49, 1 fev. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/276. Acesso em: 22 dez. 2024.

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