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Responsabilidade dos médicos: Saúde pública brasileira x norma escrita

01/03/2002 às 00:00
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A medicina brasileira, sobretudo a pública, vive um dilema: como compatibilizar o falido sistema de saúde pública brasileira com toda a responsabilidade legal que envolve o dia-dia da atividade?

É fácil lembrar o que nossos avós, e, mesmo pais, diziam quando perguntávamos o que cursar na Universidade. A resposta de grande parte, nesses casos, era direta: Medicina. Ainda hoje o curso de Medicina é um dos mais procurados na maioria dos vestibulares do país, seja por influência da opinião dos pais ou avós, seja por pura vocação. Mas não é de se espantar, pois, além de ser uma das mais antigas profissões do mundo, a Medicina, para quem vive a profissão, é uma paixão, algo pelo qual muitas pessoas almejam anos à fio, e sentem o resultado positivo de suas escolhas, ao depararem-se com o dia-dia de uma atividade extremamente querida pela população, seja pelo laço de afeto médico-paciente, seja pelo valor altruísta das vidas que são salvas por esses profissionais.

Entretanto, hoje, o que vê-se é uma triste ironia: jovens profissionais que recém saídos da faculdade, sonham com um futuro brilhante em uma profissão dourada, mas que encontram a realidade de um sistema de saúde pública falido, que não dá a mínima condição ao profissional. Como aceitar o dia-dia de pessoas morrendo sem atendimento, ou a triste decisão que muitos médicos, principalmente nos grandes centros, têm de fazer, ao decidirem qual caso é mais grave, e, por isso, merece um leito de hospital, e adaptar com o fato de que a legislação brasileira prevê a responsabilidade civil e penal dos médicos?

O Direito é, acima de tudo, uma ciência social, e sua natureza impõe a observação do fenômeno social num todo. Dessa forma as relações humanas, e seu desenvolvimento, criam uma contínua adaptação do Direito à realidade gritante da atualidade diária. Mas como adequar uma realidade tão devastadora, como é a da saúde pública brasileira, à norma fria e escrita dos códigos?

São conhecidas pelos estudiosos da questão que, o Médico, assim como o Advogado, não tem obrigação de resultado, mas sim prestar a assistência, de forma atenciosa e diligente. Sua obrigação não é de curar o paciente, mas sim de usar de toda a técnica e conhecimentos para, da melhor forma possível, atingir o resultado da cura. Por isso se diz que a obrigação do médico é de meio e não de resultado, com exceções, como, por exemplo, a cirurgia estética.

Mais conhecidos ainda, são os deveres do médico, entre eles o de assistência e perícia. Não se discute a validade desse, e dos outros deveres, entretanto, a televisão, os jornais e as revistas descarregam, a todo momento, notícias de hospitais sem remédios, pacientes que, se não forem atendidos de maneira rápida, podem morrer a qualquer momento, e o que é pior, em um corredor, junto com outras dezenas de pessoas. A triste, e diária angústia dos médicos e enfermeiras, é conviver com o trabalho em hospitais públicos, que, não raramente, têm que escolher quem deve receber um leito, pela gravidade da situação, e quem deve esperar. Às vezes, esses pacientes que aguardam um leito para serem atendidos, acabam por morrer, de pé, encostados em uma parede, ou no chão, deitados no frio. Nessas condições, um médico que estudou por quase dez anos, e que se vê trabalhando para o sistema público, doze horas diárias, muitas vezes, sob uma pressão intensa e constante, sem materiais e sem salário digno, poderia ser responsabilizado civil, ou mesmo penalmente, por um erro - saliente-se a pressão diária que suportam - ou pelo fato de não terem podido atender um paciente, e este ter morrido por falta de atendimento.

É claro que várias questões serão levantadas quando um tema dessa amplitude for discutido, entretanto, cabe ao Direito, ciência social por definição, adequar a norma fria à realidade. Pois veja-se o conteúdo do art. 1.545 do Código Civil brasileiro:

"Art. 1545. Os médicos, cirurgiões, farmacêuticos, parteiras e dentistas são obrigados a satisfazer o dano, sempre que da imprudência, negligência ou imperícia, em atos profissionais, resultar morte, inabilitação de servir ou ferimento."

Obviamente que a disposição acima é de absoluta validade e importância, senão, como proteger o pessoas lesadas pelos atos daqueles "médicos" que atuam sem o mínimo cuidado ou mesmo conhecimento do que fazem? Os exemplos são muitos, e também estão aí. Porém, aplicar o conteúdo da norma à realidade exigirá extrema habilidade de juizes ao depararem-se com o caso concreto. É necessário analisar em que ponto chegou a negligência de um médico obrigado a cuidar de dezenas de pacientes por dia, ou a imprudência daquele que, estressado, precisa cuidar de um problema, o mais rápido possível, para atender à outro caso mais sério, que surgiu há poucos momentos, ou, ainda, a imperícia de médicos que precisam trabalhar com os materiais que possuem, pois os minimamente adequados, estão ausentes.

O dever de assistência e perícia do médico, então, não fica abalado? Deve ser revisto na prática do dia-dia da saúde pública, quando o médico se vê frente ao dano sofrido por um paciente? Em estudo valorosíssimo, ministrado pelo Prof. da UFRGS, Gerson Luiz Carlos Branco, com a devida vênia, já era chamada a atenção, em 1996, para o tema:

"isto é comum na sociedade brasileira no atendimento médico da saúde pública, na qual contrapõe-se a carência de recursos humanos e materiais e por outro lado uma extensa fila de doentes, que são "atendidos" em segundos pelo médico de plantão. Nesses casos, é difícil responsabilizar o profissional, que encontra-se "ensanduichado" pela realidade, mas sem dúvida, na ocorrência de danos pela falta de assistência e pelo abandono, deve o estabelecimento público ser responsabilizado pela violação de tal dever."

Levanta-se, então, outra questão: excluindo-se a responsabilidade do médico, responsabiliza-se o Hospital. E esse será capaz de ser responsabilizado quando atende aos pacientes, dependendo do repasse de verbas pelo falido sistema do "S.U.S." - Sistema Único de Saúde? Vemos alguns hospitais, assim como médicos, fazerem milagres com as verbas que possuem, assumindo, por vezes, os gastos com o atendimento da população. Também não são raros os exemplos de hospitais que fecham exatamente por esse motivo.

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Os profissionais da saúde, sobretudo aqueles que convivem com a triste realidade da saúde pública brasileira, devem ficar atentos àquelas questões básicas a respeito da responsabilidade dos médicos. Se a omissão de socorro, prevista pelo art. 135 do Código Penal brasileiro é, sobretudo, uma violação ética, a realidade diária que joga-se frente aos olhos da população, entretanto, é diferente. Configura-se na ausência de condições mínimas de atendimento.

Se há inobservância, por exemplo, do dever de assistência constante, ou mesmo prudência, é preciso analisar o contexto da situação, ou a realidade dos fatos.

Sem sombra de dúvida, é posição unânime de toda a jurisprudência brasileira, penalizar toda e qualquer forma de atentado à integridade física ou a vida humana. O desenvolvimento tecnológico da Medicina trouxe imensos benefícios à área da saúde, e, dessa forma, não se pode tolerar, a perda de vidas humanas baseadas na simples imperícia, negligência ou imprudência médica. Entretanto, cabe ao Direito, ciência social por excelência, entender a responsabilidade dos médicos em casos distintos, principalmente na atual realidade da saúde pública brasileira, e entender, principalmente, que os tempos modernos trouxeram, infelizmente, algo a mais do que o desenvolvimento tecnológico: o sofrimento da população brasileira perante a saúde pública, e, nesse estudo, o papel extremamente difícil dos médicos e do próprio Direito ante essa realidade.

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Sobre o autor
Alessandrus Cardoso

Advogado em Passo Fundo (RS)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARDOSO, Alessandrus. Responsabilidade dos médicos: Saúde pública brasileira x norma escrita. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 55, 1 mar. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2773. Acesso em: 22 dez. 2024.

Mais informações

Texto integral da parte publicada no jornal Diário da Manhã de 23/09/99.

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