No dia 10 de janeiro de 2002 foi sancionada a lei nº 10.406 que instituiu o novo Código Civil Brasileiro, diploma legal que entrará em vigor em 10 de janeiro de 2003. Por certo o novo estatuto do direito privado, que reúne em seus dispositivos o direito civil e o direito comercial legislado, trará em seu bojo várias alterações que serão assimiladas gradativamente por todos nós, os destinatários da lei.
Sem a pretensão de abordar exaustivamente a matéria, gostaria de tecer algumas considerações sobre uma alteração, desde logo percebida na leitura do novo Código, que está no campo da teoria geral do contrato. Ela é de grande importância para as relações jurídicas de nossa atual sociedade. Estamos falando dos artigos 421 e 422, inseridos no capítulo que cuida das disposições gerais dos contratos.
O artigo 421 determina que a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato, enquanto que o artigo 422 dispõe que os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.
Diante dessas disposições legais, verificamos uma mudança na mens legem do Código novo em relação ao atual. A lei opera um avanço na concepção da finalidade da relação jurídica contratual. De fato, até hoje adotamos, nos contratos em geral, o denominado modelo liberal como sendo um inabalável paradigma, estabelecendo-se um dogma entre os operadores do direito em torno dos princípios da autonomia da vontade e força obrigatória, desde que livremente formalizados e com observância à ordem pública e aos bons costumes.
Essa concepção clássica do contrato, que tem na vontade a única fonte criadora de direitos e obrigações, exige, para seu implemento, um Estado ausente, ou seja, apenas garantidor das regras do jogo, que seriam estipuladas pelos contratantes na livre manifestação de vontade – pacta sunt servanda – em sua mais pura idealização.
Relembrando a visão de Pontes de Miranda, para quem a autonomia da vontade consistia no auto-regramento da vontade, a chamada autonomia da vontade é que permite que a pessoa, conhecendo o que se produzirá com seu ato, negocie ou não, tenha ou não o gestum que a vincule[1], podemos delimitar o campo que a doutrina tradicional nos permitia trabalhar. Se a vontade expressa não se chocasse com a ordem pública e os bons costumes, estabelecia verdadeira lei entre as partes. A regra particular assim criada não poderia ser violada, nem mesmo pelo Magistrado no julgamento da causa, ou seja, ressalvadas exceções decorrentes de situações absolutamente imprevisíveis (teoria da imprevisão) ou de onerosidade excessiva, devidamente comprovada (lesão), não seria possível ao Estado ingressar e modificar a vontade das partes.
Não se pode negar que a circulação das riquezas, tão necessária para a vida em sociedade, exige esse respeito à vontade emitida, para a segurança dos contratantes, não só quanto ao estabelecimento do conteúdo do contrato (elaboração de suas cláusulas) mas também no que se refere a sua efetiva execução. O Estado apenas deveria concretizar uma garantia, impondo, no caso de inadimplemento, a sua força com a finalidade de compelir o devedor ao cumprimento de sua obrigação ou reparação de perdas e danos, sem maiores questionamentos.
A liberdade de contratar impunha uma responsabilidade pelos compromissos assumidos. Não fosse assim, estaria em risco toda a segurança do edifício jurídico.
Neste ponto, também destacamos a influência do Direito Canônico para a concepção do princípio da autonomia da vontade. Aquele pregava a sacralidade dos contratos, de modo que a palavra dada, a vontade manifestada a outra pessoa, era tida como sagrada e o seu descumprimento configurava o pecado.
O ápice dessa teoria clássica do contrato será alcançado no apogeu do século XIX, quando se constrói a teoria do negócio jurídico, que foi exaustivamente ensinada nos cursos jurídicos por quase todo o período do século XX.
Ocorre que a sociedade passou por modificações no curso da história e a nova realidade resultante desse fenômeno clamava pela realização de uma justiça mais distributiva que não era alcançada com a utilização da teoria clássica. O curso da história impunha uma evolução no modo de pensar o contrato; reclamava uma mudança principalmente tocante à formação do vínculo jurídico e na sua execução.
A insatisfação era percebida exatamente porque a liberdade de contratar – âmago da autonomia da vontade – passou a ser uma simples falácia histórica, pois na prática sentia-se que nenhuma liberdade era exercida no momento de contratar, mormente em face da necessidade de ser praticado o ato, para a própria subsistência no meio social.
Além da necessidade de submeter ao contrato, constata-se também, no curso do século XX, o aumento da quebra do equilíbrio sócio – econômico dos contratantes, como reflexo das desigualdades dos homens, principalmente no acesso aos bens da vida. Essas desigualdades são características próprias do capitalismo e é mais sentida nos países pobres onde praticamente se aniquilou a livre vontade no contraimento das obrigações.
Em outras palavras, não somos tão livres para contratar como pensamos. Ao contrário, estamos direcionados para assumirmos obrigações em busca de uma vida melhor, como exigência de respeito e sucesso no meio social. Tudo programado pelo ideal consumerista que desde cedo ensinamos aos nossos filhos.
Afinal de contas, um mercado lucrativo para os empresários – detentores do capital – exige, em contrapartida, a presença de ávidos consumidores. Com certeza, o capitalismo não teria a menor possibilidade de sobrevivência se todos pensássemos como São Francisco de Assis, que acolheu o desprendimento das coisas e bens materiais como um estilo de vida.
Após o término da 1ª Guerra Mundial, abre-se o caminho para a discussão do contrato no início do século XX. Experimentando a sociedade um processo de aumento populacional a nível mundial, originaram-se novas espécies de relações jurídicas que foram massificadas ou receberam uma conotação coletiva.
As correntes socialistas, bem como, as doutrinas sociais da Igreja Católica direcionam o pensamento no respeito aos direitos sociais, impondo a necessidade de reformas para elevação da dignidade do homem. Essa preocupação se dirige, principalmente, para aqueles que ficaram à margem dos benefícios sociais somente concedidos aos que poderiam comprá-los.
Posteriormente, com o advento da 2ª Grande Guerra e suas nefastas conseqüências para a humanidade, são aprofundadas as necessidades em torno do respeito aos Direitos Humanos. Passou-se a exigir do Estado uma postura mais voltada ao social. No campo do direito privado encontramos o reflexo desse modo de pensar e, aos poucos, o interesse com os contratos não se limita ao individual, mas é ampliado em prol do social. É certo que essa alteração de postura não se dá de forma abrupta, mas paulatinamente; são transplantadas para o direito contratual as mesmas idéias que norteiam o direto administrativo na proteção do administrado em face da poderosa administração pública. A Igreja Católica reunida em concílio (Vaticano II) decide a sua opção pelos pobres, enriquecendo a luta em favor do social.
Nos campos do chamado Direito Social, tais como educação, saúde, trabalho, lazer, consumo, segurança, previdência social, economia e outros, verificam que o interesse preponderante está na coletividade, para a formação de uma vida digna em sociedade. Ganha relevo o trabalho do operador do Direito, que deve apresentar essa preocupação, sob pena de não ser realizada boa distribuição de justiça.
Desse modo, evolui a teoria contratual para acompanhar a formação do Estado Social, assim sentida por Luiz Neto Lôbo:
...o Estado Liberal assegurou os direitos do homem de primeira geração, especialmente a liberdade, a vida e a propriedade individual. O Estado Social foi impulsionado pelos movimentos populares que postulam muito mais que a liberdade e a igualdade formais, passando a assegurar os direitos do homem de segunda geração, ou seja, os direitos sociais[2].
Continua o jurista a desenvolver seu pensamento, afirmando que o grande golpe contra o Estado Liberal foi dado pelo reconhecimento dos direitos de terceira geração, quais sejam, os de natureza transindividual, protegendo-se interesses que ultrapassam os dos figurantes concretos da relação negocial, ditos difusos, coletivos ou individuais homogêneos.
Esse momento de transformação é sentido pelo legislador pátrio que consigna expressamente no novo Código Civil, quando trata dos contratos, o respeito à função social e ao princípio da boa-fé, como normas de ordem pública (art. 422). Mas, efetivamente, o que significam essas mudanças para o dia a dia das inúmeras relações jurídicas que são praticadas?
Para buscarmos a resposta a essa indagação, voltamos nossa atenção para o princípio da boa-fé. Nesse ponto, vale a pena destacar que não estamos falando da boa-fé subjetiva, bastante utilizada no direito das coisas, onde se exigia um estado psicológico (intenção) voltado à não provocação de dano ao próximo. Tanto que o oposto da boa-fé subjetiva seria a má-fé vista como a vontade de causar dano ao outro. Nessa ótica a boa-fé é analisada apenas com ausência de conhecimento sobre o ilícito do ato praticado, ou seja, era conceituada dentro do campo subjetivo.
Ao estabelecer o princípio da boa-fé nas relações contratuais, a nova lei está implementando uma outra concepção sobre o instituto, à qual a doutrina passou a denominar de objetiva, porque a sua finalidade é impor aos contratantes uma conduta de acordo com os ideais de honestidade e lealdade, independentemente do subjetivismo do agente; em outras palavras, as partes contratuais devem agir conforme um modelo de conduta social, sempre respeitando a confiança e o interesse do outro contratante. A antítese dessa espécie, não é a intenção de prejudicar, como na boa-fé subjetiva, mas a exteriorização de um comportamento improbo, egoísta ou reprovável, verificado sob a ótica da vida em harmonia dentro da comunidade. Consiste em ato violador de um dever anexo ao contrato.
A boa-fé objetiva é concebida como uma regra de conduta fundada na honestidade, na retidão, na lealdade e, principalmente, na consideração de que todos os membros da sociedade são juridicamente tutelados, antes mesmo de serem partes nos contratos. O contraente é pessoa e como tal deve ser respeitado.
Esse comportamento pode ter como paradigma o amor ao próximo pregado pelo Cristianismo. Sem dúvida, não há melhor parâmetro para se verificar a retidão de um comportamento
Com efeito, a vida na sociedade capitalista nos ensina a sermos competidores, onde o contrato é mais uma arena dessa luta diária. A boa-fé objetiva, aliadas aos ideais do Estado Social, busca humanizar essa disputa, impondo aos contratante deveres anexos às disposições contratuais, onde não tem cabimento a postura de querer sempre levar vantagem.
Estando a teoria geral dos contratos dotada do princípio da boa-fé objetiva, o magistrado passa a exercer um papel de fundamental importância, na exata medida em que participará da construção de uma nova noção do direito contratual como sendo um sistema aberto que pode evoluir e se completar, a cada momento, diante dos mais variados casos que podem surgir na vida social.
Em outras palavras, se os contratantes são obrigados a guardar, tanto na conclusão, como na execução do contrato, os princípios da probidade e da boa-fé[3], o julgador sempre poderá corrigir a postura de qualquer um deles sempre que observar um desvio de conduta ou de finalidade. Ou ainda, se o contratante quiser se prevalecer de qualquer situação onde obtenha mais vantagem que aquela inicialmente esperada. Aliás, mesmo que não exista qualquer espécie de dano ou vantagem, entendemos que diante de uma regra de ordem pública, como o art. 422 do novo Código Civil, é proibida a postura não condizente com a boa-fé objetiva, impondo-se a correção pelo magistrado.
Na concretização desses princípios o magistrado irá guiar-se pela retidão de caráter, honradez e honestidade, que expressam a probidade que todo cidadão deve portar no trato de seus negócios. São conceitos abstratos, mas neles se pode visualizar o que podemos chamar de mínimo ético, patamar onde o Juiz deve lastrear sua decisão.
Não se pode confundir a adoção desse princípio da boa-fé, ora estudado, com a tradicional forma interpretação dos contratos. Nela se prega o dever de serem as cláusulas do contrato, quando obscuras, interpretada segundo a boa-fé. Porém, no princípio da boa-fé objetiva não há interpretação de cláusula ou disposição obscura do contrato, mas uma análise do comportamento das partes quando aos deveres que são anexos ou conexos ao vínculo jurídico estabelecido pelas partes.
A visão do julgador não está na letra do negócio jurídico, mas nas atitudes dos contraentes. Opera-se uma reflexão acerca do comportamento das partes de forma que a prestação devida poderá se amoldar às características fáticas de cada caso concreto, sem que isso provoque incertezas no espírito dos contratantes, pois desde logo saberão que o proceder no curso do contrato não poderá se afastar dos ideais da honestidade e probidade.
Dispositivo semelhante já vige na Alemanha no § 242 do BGB há muitos anos e ultimamente tem se consubstanciado em doutrina dominante, acolhendo-o como um princípio supremo e absoluto que domina todo o direito das obrigações e todas as relações obrigacionais em todos os seus aspectos e conteúdo.
No nosso atual Código Civil, que já prepara a sua despedida, não há previsão legal para a aplicação do princípio da boa-fé objetiva, de modo que essa matéria não foi tratada pelos tradicionais juristas pátrios. Somente nesta última década o Ministro Ruy Rosado de Aguiar, em matéria intitulada "A boa-fé na relação de consumo", publicada pela Revista de Direito do Consumidor, nº 14 (abril/junho de 1995), referiu-se ao artigo 131 do Código Comercial de 1850[4], para asseverar que este dispositivo sempre esteve como letra morta por falta de inspiração da doutrina e nenhuma aplicação pelos nossos Magistrados. Entendeu o Ministro Ruy Rosado que o princípio da boa-fé poderia ser dinamizado por nossos operadores do direito, há muito tempo, mesmo à míngua de texto legal específico. Porém, o apego à dogmática vigente não permitiu esse avanço. Cumpria-se o contrato como estipulado ainda que isso provocasse aversão em nosso senso de justiça.
Cláudia Lima Marques, cuidando das relações contratuais no campo de consumo, afirma que – propõe a ciência do direito o renascimento ou a revitalização de um dos princípios gerais do direito há muito conhecido e sempre presente desde o movimento do direito natural: o princípio geral da boa-fé. Esse princípio ou novo mandamento (Gebot) obrigatório a todas as relações contratuais na sociedade moderna, e não só as relações de consumo[5].
Havendo dispositivo expresso no novo Código, não resta dúvida que a matéria deverá ser enfrentada por nossos juristas. Estes não poderão simplesmente dizer que nada mudou alegando que a boa-fé sempre norteou nossas obrigações, entre outros argumentos. Citam-se duas razões que esvaziam esse argumento. A primeira consiste em que a boa-fé objetiva, como regra de comportamento das partes, nunca foi efetivada por nossos juízes. A segunda liga-se uma forte regra de interpretação que afirma não conter a lei palavras inúteis. Portanto, se o texto do novo Código contém essa regra (art. 422), que não havia no Código de 1916, é evidente que ela contém alguma finalidade.
Em recente trabalho acadêmico explica, com muita felicidade, Alinne Arquertte Leite Novais:
Assim uma dupla função é assumida pela boa-fé objetiva na nova teoria contratual: 1) como fonte de novos deveres especiais de conduta durante o vínculo contratual, os chamados deveres anexos e, 2) como causa limitadora do exercício, antes lícito, hoje abusivo, dos direitos subjetivos. Vale ressaltar que a essas duas funções elencadas por Cláudia Lima Marques, Judith Martins-Costa junta uma outra, a de cânone hermenêutico-integrativo.[6]
Os deveres conexos nascem com o contrato na medida em que este se consubstancia em fonte de eventuais conflitos, os quais são evitados se a atuação dos contratantes estiver amparada pela boa-fé em suas relações, não só em face das regras do contratos, mas também diante da conduta social de cada uma das partes. Menciona a doutrina, como exemplo, os deveres de cuidado, previdência e segurança, o dever de comunicação e esclarecimento, o dever de informação, de prestação de contas, o respeito pelo nome do contratante, cuidado com o patrimônio do outro contratante, de sigilo e outros.
O segundo aspecto mencionado na lição da Profª Alinne nos coloca perante a problemática da função social do contrato. O novo Código determina no artigo 421 que a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato. Na teoria tradicional a liberdade de contratar sempre estava limitada à ordem pública e aos bons costumes. É certo que esses limites se mantém na nova ordem do direito civil, mas agora a liberdade de contratar também deve ser exercida tendo em mira a função social do contrato, de modo que o instituto em análise deverá estar amoldado aos ideais do Estado Social, sob pena de não ser válido.
A função limitadora do exercício dos direitos subjetivos expressa a obediência ao mandamento constitucional de que o contrato deve cumprir sua função social, como concepção de justiça que orienta a ordem econômica hoje disseminada em todos os ramos do direito. Portanto, o contrato não se presta apenas à mesquinha função de criar direitos e deveres para as partes individualmente consideradas; tem também o aspecto social que incrementa o seu engajamento na sociedade globalizada, atendendo a função social antes de qualquer coisa.
E o que significa atender uma função social? A resposta a essa indagação somente pode ser construída tendo-se como orientação os ideais do Estado Social. Nele se recoloca o ser humano no centro da preocupação da Ciência Jurídica, tanto que a dignidade humana é hoje um dos princípios fundamentais de nossa Constituição.
Desde a idealização do Estado Liberal, que propalava uma pseudoliberdade para todos, o direito passou ser usado como meio de dominação nas mãos das minorias (elite) que sempre tiveram o comando das decisões, ainda que amparadas pela força dos canhões. Como a maior preocupação dessas minorias, detentoras do poder econômico, era a manutenção do seu status, via-se com tristeza que a lei somente se preocupava com o patrimônio. A pessoa com seus problemas e suas necessidades nunca foi objeto de preocupação do legislador.
Se olharmos a nossa sociedade, tal como edificada pelo Estado Liberal no último século, facilmente verificamos que a grande parte do povo está vivendo em absoluta miséria, passando fome em total pobreza. Mesmo em face dessa realidade vivenciada em cada esquina desta nação, o legislador nunca estabeleceu uma norma jurídica obrigando a partilha de bens para diminuição da miséria. Com isso a ordem jurídica demonstra que a lei não está preocupada com o homem, mas sim com patrimônio. Ainda como argumentação deste ponto de vista, lembremo-nos da situação do devedor a quem a lei impõe o dever de cumprir a obrigação a qualquer custo, mesmo que isso signifique a sua marginalização e o aumento do número de miseráveis.
Assim, o contrato nada é, dentro do Estado Liberal, do que um mecanismo para o exercício dessa dominação, apesar de atrelado ao respeito à ordem pública e aos bons costumes.
Todavia, na visão do Estado Social o contrato ganha nova roupagem, revestindo-se com a preocupação dirigida à dignidade humana e o social. Nessa nova ideologia não se pode admitir que, em nome da força obrigatória e princípio da liberdade de contratar, a dignidade humana seja colocada em segundo plano.
O limite da função social e o princípio da boa-fé, agora consignados na teoria geral dos contratos, se completam para permitir uma visão mais humanista desse instituto que deixará de ser apenas um meio para obtenção de lucro.
A efetivação desses mandamentos legais não fica restrita ao campo da ética, exigindo, igualmente, uma noção técnica – operativa que se especifica no dever do juiz de tornar real o mandamento de respeito à recíproca confiança, que incumbe às partes contratantes, não permitindo que o acordo de vontades atinja finalidade oposta ou divergente ao respeito da dignidade humana, desde o momento da contratação até a consumação do vínculo. Some-se a isso o reconhecimento dos deveres conexos cuja teleologia consiste na observância da função social.
Ao regrar o comportamento das partes amparado pelo princípio da boa-fé objetiva, o magistrado deverá ter em mente a função social que o contrato exerce na atual sociedade globalizada, sendo certo que nessa perspectiva a leitura e a releitura da legislação social não bastam. É necessária uma reflexão vinculada ao predomínio do valor humano (dignidade humana), com todos os seus atributos, como resultante básica de qualquer anexo dever a ser imposto como regra de comportamento aos contratantes. Essa reflexão exige, com igual intensidade, um estudo mais aprofundado das questões sociais, filosóficas e econômicas.
O Estado, como garantidor do direito à igualdade e do progresso da sociedade, deve interferir nas relações contratuais definindo limites, diminuindo os riscos do insucesso e protegendo camadas da população que, mercê daquela igualdade aparente e formal, ficavam à margem de todo o processo de desenvolvimento econômico, em situação de ostensiva desvantagem[7].
Em conclusão, afirmamos que com o advento do novo Código Civil, que traz em seu bojo a adoção expressa da função social e do princípio da boa-fé objetiva, consumou-se, nas relações intersubjetivas privadas, a proteção das pessoas envolvidas, mormente aquelas consideradas hipossuficientes para que não sejam, diante da inferioridade social – econômica ou cultural, submetidas a alguma armadilha contratual que as coloquem em desvantagem, exigindo dos contratantes, além disso, um comportamento transparente, digno, onde não prepondera a ganância lucrativa mas a dignidade das pessoas.
Teremos maior segurança nos negócios jurídicos, fator hoje inexistente em razão da complexidade e instabilidade de nossa economia. Essa segurança reside no maior ideal de justiça social.
Cabe agora aos operadores do direito a materialização dessas novas regras jurídicas, que vivificam e humanizam os contratos. A tarefa lhes exigirá muito estudo e reflexão sobre todas as características de cada caso concreto levado ao seu conhecimento.
BIBLIOGRAFIA
AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de – A boa-fé na relação de consumo. Revista de Direito do Consumidor, n° 14. São Paulo : Revista dos Tribunais, Abril/junho de 1995.
AZEVEDO, Antonio Junqueira. A boa-fé na formação dos contratos. Revista de Direito do Consumidor – vol. 03. São Paulo : Revista dos Tribunais, set./dez. de 1992
LÔBO, Paulo Luiz Neto. Contrato e mudança social. Revista Forense, n° 722. Rio de Janeiro : Forense.
_________. Dirigismo Contratual. Revista de Direito Civil, n° 52. São Paulo : Revista dos Tribunais.
_________. O contrato – exigência e concepções atuais. São Paulo : Saraiva, 1986.
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor – o novo regime das relações contratuais. Biblioteca de Direito do Consumidor, vol. 01 – 3ª Edição – São Paulo : RT, 1998.
PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. Parte Especial, tomo XXXVIII, 2ª Ed. – Borsoi, 1962.
TEPEDINO, Gustavo. As relações de consumo e a nova teoria contratual – in Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro, Renovar, 1999.
Notas
1.PONTES DE MIRANDA – Tratado de Direito Privado. Parte especial. 2 ed. Rio de Janeiro : Borsoi, 1962. t. XXXVIII, p. 39
2.Contrato e mudança social. Revista Forense, nº 722 – Rio de Janeiro ; Forense, p. 42.
3.Artigos 421 e 422 do novo Código Civil
4.Diploma legal que também será revogado pelo novo Código Civil.
5.Contratos no Código de Defesa do Consumidor – Ed. RT – São Paulo, 1998, p. 106.
6.A teoria Contratual e o Código de Defesa do Consumidor – ed. RT – São Paulo, 2001, p.78.
7.TEPEDINO, Gustavo. As relações de consumo e a nova teoria contratual – in Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro, Renovar, 1999 – p. 204.