4. O PROJETO DE LEI GABRIELA LEITE
Em trâmite no Congresso Nacional, o PL denominado “Gabriela Leite”[3] visa por fim à situação de obscuridade legal vivida hoje por todos aqueles que se incluem na categoria dos profissionais do sexo. De acordo com o art. 3º do referido projeto de lei, o profissional do sexo poderá prestar seus serviços tanto como trabalhador autônomo, o que, como mencionado alhures, já é possível; tanto em cooperativa. Mas além dessas duas hipóteses, a proposta prevê, ainda, uma terceira possibilidade: a das casas de prostituição. Uma vez descriminalizadas, estas poderiam ter seu exercício regulamentado juntamente com as demais formas de prestação dos serviços sexuais, possibilitando maior fiscalização por parte do Estado e, consequentemente, melhoria das condições de trabalho dos referidos profissionais.
Neste ponto, mister realizar uma breve digressão a respeito do que já foi acima analisado. Conforme afirmado, a legislação penal atual considera ilícita a manutenção de casas de prostituição, o que impede a regulamentação do ofício exercido pelos profissionais do sexo nesses locais. Com a proposta de descriminalizar as referidas casas, o PL possibilita que os trabalhadores do sexo exerçam a atividade de outras formas que não a unicamente autônoma, o que, em verdade, acontece em poucos casos. Para que isso seja possível, o projeto de lei prevê o que seriam novas redações para determinados tipos penais referentes à matéria, tais como o que se transcreve a seguir:
Art. 4º - O Capítulo V da Parte Especial do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940, Código Penal, passa a vigorar com as seguintes alterações:
[...]
“Casa de exploração sexual
Art. 229. Manter, por conta própria ou de terceiro, estabelecimento em que ocorra exploração sexual, haja, ou não, intuito de lucro ou mediação direta do proprietário ou gerente: [...]
Como bem se observa, o que a proposta visa alterar reside tão somente no nomem iuris do tipo penal, o qual permanece com seu preceito primário inalterado. Tal fato, entretanto, não repercutirá o devido efeito, tendo em vista que o tipo penal descrito no artigo 229 do CP não possui mais a nomenclatura de “Casa de prostituição” em sua redação. Como visto outrora, a redação da lei traz, nos dias atuais, a expressão “estabelecimento onde ocorra exploração sexual”, equiparando, de forma equivocada, a prostituição aos demais tipos de exploração sexual. Desta feita, a mencionada alteração resultaria inócua, sendo certo que o que ocasionaria a mudança desejada seriam as novas definições de exploração sexual trazidas pela proposta, a saber:
Art. 2º - É vedada a prática de exploração sexual.
Parágrafo único: São espécies de exploração sexual, além de outras estipuladas em legislação específica:
I- apropriação total ou maior que 50% do rendimento de prestação de serviço sexual por terceiro;
II- o não pagamento pelo serviço sexual contratado;
III- forçar alguém a praticar prostituição mediante grave ameaça ou violência.
Desta feita, uma vez aceita a proposta de descriminalização dos prostíbulos, extirpando tal conduta do âmbito penal, os impactos trazidos tanto para o direito do trabalho, quanto para o direito previdenciário seriam consideráveis. Ter-se-ia que se proceder à análise de inúmeros aspectos trabalhistas criados em razão do vínculo criado entre os profissionais e a casa, bem como as consequências disso para o âmbito da Previdência Social.
Em um primeiro momento, faz-se importante destacar que o PL prevê a que a prestação de serviços sexuais seja realizada voluntariamente, de forma remunerada, por pessoas maiores de 18 anos e em pleno gozo de suas faculdades mentais, uma vez que qualquer outra forma de exercício da prostituição caracterizar-se-ia como exploração sexual. Isto posto, em se admitindo a existência de um vínculo empregatício entre os profissionais do sexo e a casa, todos os encargos trabalhistas legalmente previstos deveriam ser cumpridos, tais como carteira assinada, salário mínimo, férias, décimo terceiro, FGTS, dia de descanso semanal remunerado, seguro-desemprego, entre outros. Evidentemente que a possibilidade de se conceder de forma ampla e irrestrita os referidos direitos trabalhistas estaria atrelada à confecção de leis que regulamentassem a profissão.
Em conjunto com tais encargos, o empresário dono da casa de prostituição também estaria responsável pelo cumprimento das obrigações previdenciárias decorrentes do reconhecimento da relação de trabalho, mormente no que se refere ao pagamento das contribuições para a Seguridade Social. Castro e Lazzari (2012, p.229), definem estas como sendo “uma espécie de contribuição social, cuja receita tem por finalidade o financiamento das ações nas áreas da saúde, previdência e assistência social”.
Nesse sentido, dispõe a Magna Carta, em seu artigo 195:
Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:
I - do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre:
a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício;
b) a receita ou o faturamento;
c) o lucro;
II - do trabalhador e dos demais segurados da previdência social, não incidindo contribuição sobre aposentadoria e pensão concedidas pelo regime geral de previdência social de que trata o art. 201;
[...]
Extrai-se de tal artigo, bem como do que acima foi exposto, que, uma vez descriminalizadas as casas de prostituição, estas estariam obrigadas a se constituírem sob os moldes da lei civil, e, na condição de pessoas jurídicas empregadoras, deveriam recolher, juntamente com todos os demais impostos, as contribuições sociais acima mencionadas. De igual forma, estariam os profissionais do sexo também incumbidos de recolher suas contribuições, consoante dispõe o inciso II do artigo acima citado.
Juntamente com o recolhimento das referidas contribuições, vislumbra-se a possibilidade de enquadramento dos profissionais do sexo no rol dos segurados obrigatórios, previstos no artigo 11 da Lei de Benefícios Previdenciários – Lei 8.213/91, na qualidade de segurados empregados. Nos dias atuais, a filiação dos referidos trabalhadores é possível apenas na qualidade de contribuinte individual, exercendo estes o ofício de forma autônoma, enquadrando-se, portanto, dentre aqueles que exercem atividade econômica de natureza urbana, com fins lucrativos ou não, desde que por conta própria.
Assim sendo, admitido o vínculo empregatício, estariam estendidos aos profissionais do sexo todas as prestações previdenciárias hoje já concedidas aos demais segurados pertencentes à classe dos segurados empregados, o que, como bem se sabe, confere a estes direito a prestações não concedidas às demais classes de segurados da previdência.
Neste ponto, observa-se que um dos objetos do projeto de lei é, justamente, admitir-se a concessão de aposentadoria especial aos trabalhadores do sexo. É cediço que a aposentadoria especial é hoje concedida aqueles que exercem o trabalho em condições adversas à saúde, com riscos superiores aos normalmente aceitos, em decorrência da exposição a agentes nocivos químicos, físicos ou biológicos. Consoante dispõe o teor do artigo 57 da LBPS:
Art. 57 – A aposentadoria especial será devida, uma vez cumprida a carência exigida nesta Lei, ao segurado que tiver trabalhado sujeito a condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física, durante 15 (quinze), 20 (vinte) ou 25 (vinte e cinco) anos, conforme dispuser a lei.
[...]
§ 3º A concessão da aposentadoria especial dependerá de comprovação pelo segurado, perante o Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, do tempo de trabalho permanente, não ocasional nem intermitente, em condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física, durante o período mínimo fixado.
Extrai-se do referido dispositivo que, a concessão da aposentadoria extraordinária [4] depende de comprovação da exposição aos referidos agentes nocivos, o qual deverá ocorrer por meio de laudos técnicos a serem elaborados por médicos do trabalho ou engenheiros de segurança do trabalho. Sobre o tema, leciona Tavares (2012, p. 159,160):
Dependerá de comprovação de trabalho permanente em condições especiais de exposição a agentes nocivos químicos, físicos ou biológicos, em jornada integral. [...] A comprovação da efetiva exposição do segurado aos agentes nocivos será feita mediante formulário denominado perfil profissiográfico previdenciário, na forma estabelecida pelo Instituto Nacional do Seguro Social, emitido pela empresa ou seu preposto, com base em laudo técnico de condições ambientais do trabalho expedido por médico do trabalho ou engenheiro de segurança do trabalho.
Considerando os moldes do referido benefício, sua concessão aos profissionais do sexo se justificaria pelos riscos constantemente oferecidos à saúde destes, causados em razão da possibilidade de exposição a todo tipo de doenças sexualmente transmissíveis, principalmente o HIV. Conforme prevê a proposta, o direito à concessão da aposentadoria especial seria possível após 25 anos de exercício da profissão.
Muito embora haja uma relação de atividades profissionais que gozam do direito à aposentadoria extraordinária (Decreto 3.48/99, Anexo IV), da qual não consta o serviço prestado pelos trabalhadores do sexo, a jurisprudência atual tem firmado posicionamento no sentido de se conceder a referida aposentadoria àqueles que exerçam atividades insalubres, penosas ou perigosas, tendo em vista o caráter exemplificativo do rol de atividades trazido pelo regulamento. No mesmo sentido, já prescrevia a súmula 198 do extinto TFR “atendidos os demais requisitos, é devida a aposentadoria especial, se perícia judicial constata que a atividade exercida pelo segurado é perigosa, insalubre ou penosa, mesmo não inscrita no Regulamento”.
É certo, porém, que conforme dito outrora, a descriminalização dos estabelecimentos onde ocorre a prostituição possibilitará uma fiscalização mais efetiva, garantindo o implemento de medidas preventivas, tais como programas de proteção à saúde dos profissionais do sexo, distribuição de preservativos e demais abordagens que permitam a diminuição do caráter aviltante e demais vulnerabilidades oferecidas pelo serviço.
Por todo o exposto, vislumbra-se que o projeto de lei Gabriela Leite exerce papel fundamental na regulamentação do trabalho exercido pelos profissionais do sexo, mormente no que diz respeito àqueles que o exercem por meio de casas de prostituição. Uma vez aprovado, a proposta possibilitará retirar do limbo inúmeros profissionais que hoje, em razão de fatores puramente morais, encontram-se privados de seus direitos sociais mais básicos, principalmente no que diz respeito ao âmbito trabalhista e previdenciário.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Reafirmando-se o que foi proposto no início do presente artigo, o fim para o qual este se presta diz respeito às consequências para o Direito Previdenciário da regulamentação de uma das profissões que mais sofrem com a discriminação: a dos profissionais do sexo. Conforme exposto, a classe dos trabalhadores do sexo, diferentemente do que ocorre com as demais classes, encontra-se sem amparo normativo até os dias atuais. É certo que o fato de tal situação de obscuridade legal perdurar por tanto tempo se deve, em muito, pela interferência de ponderações de valor moral acerca do tema. Em decorrência disso, os profissionais do sexo são relegados às margens do ordenamento jurídico, privados dos direitos sociais dos quais gozam todos os trabalhadores que exercem profissões consideradas “moralmente aceitas”.
Ultrapassadas, porém, as ponderações de ordem moral, tendo em vista que a função da presente discussão, como dito alhures, não tem pretensões de fazer juízo de valor a respeito do ofício, faz-se necessário reafirmar a necessidade de se proceder à regulamentação do trabalho dos profissionais do sexo. Muito embora se saiba que há grandes chances de o Projeto de Lei “Gabriela Leite” não ser aprovado, em razão da influência de grupos contrários ao exercício da prostituição, o fato é que o ofício existe, e negar-lhe a regulamentação ou ignorar sua existência só faz fomentar a marginalização e o preconceito sofrido pelos referidos profissionais.
Consoante exposto, a aprovação da proposta em trâmite no Congresso trará inúmeros impactos para a legislação brasileira, principalmente no que se refere aos aspectos trabalhistas e previdenciários da categoria. A descriminalização das casas de prostituição e sua consequente regulamentação tornará possível a efetiva fiscalização da profissão, de forma a garantir maior proteção para aqueles que exercem a prostituição por intermédio de estabelecimentos destinados a tal fim. Tal fato permitirá, inclusive, coibir de forma mais efetiva a exploração sexual, bem como os riscos de exposição dos profissionais às DSTs.
Ressalte-se, por fim, que os impactos previdenciários da descriminalização dos estabelecimentos onde ocorre a prostituição aqui apresentados, são hipotéticos, podendo, ou não, ocorrer, sendo certo que, as reais influências de tal proposta no ordenamento jurídico brasileiro só serão perceptíveis quando a lei estiver, de fato, em vigor.
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Notas
[1] No Estado do Bem Estar Social (Welfare State), também conhecido como Estado-Providência, o Estado assume o papel de agente transformador da realidade social, “permitindo o predomínio da Administração sobre a política ou da técnica sobre a ideologia. Procurou (o Estado) satisfazer o objetivo de compatibilizar, dentro do mesmo sistema, o capitalismo, como forma de produção, e a consecução do bem-estar social geral”(SOARES, 2001, p. 294).
[2]“Na antiga Roma, a sexualidade e a prostituição eram fatos aceitos da vida; abertamente demonstradas, exploradas, discutidas e homenageadas. (...) A prostituição em todos os níveis estava profundamente arraigada à economia romana, sem nenhuma vergonha ou estigma associado aos compradores ou aos vendedores dos serviços sexuais. – desde o "divino" imperador até o mais reles escravo, ela era simplesmente mais uma atividade da sociedade. (...) Só após a queda da civilização romana que a nova religião do cristianismo completou seu golpe sobre o dogma oficial. Os homens que estavam no poder começaram a aceitar tacitamente a ideia de que a prostituição era moralmente repreensível e que as próprias prostitutas eram um mal e uma ameaça de corrupção para o resto da sociedade. Estava se iniciando o prelúdio de uma nova era do ódio à mulher” (NICKIE ROBERTS, 1998 apud Mário Vítor Assis Almeida. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/13963/o-trabalho-da-prostituta-a-luz-do-ordenamento-juridico-brasileiro#ixzz2S5h0FeOu>. Acesso em: 01 maio 2013)
[3] Gabriela Leite é ex-prostituta e milita em favor dos direitos dos profissionais do sexo desde a década de 70. É fundadora da ONG “DAVIDA”, cujo escopo é incentivar a criação de políticas públicas em favor dos direitos da classe dos profissionais do sexo, responsável, por exemplo, pela criação da grife DASPU, projeto autossustentável gerenciado pelas próprias prostitutas, com a finalidade de financiar trabalhos alternativos para a classe.
[4] A aposentadoria especial caracteriza-se como uma subespécie da aposentadoria por tempo de contribuição, tendo seu período de contribuição diminuído em razão do caráter peculiar sob o qual o trabalho é exercido. Para Martins (2012, p.358), “trata-se de um benefício de natureza extraordinária, tendo por objetivo compensar o trabalho do segurado que presta serviços em condições adversas à sua saúde ou que desempenha atividade com riscos superiores aos normais”.