SUMÁRIO: 1. Considerações Iniciais. 2. Panorama atual da legislação previdenciária: segurados abrangidos e prestações concedidas. 3. Tratamento jurídico dispensado aos profissionais do sexo na atualidade. 3.1. Aspectos penais. 3.2. Aspectos trabalhistas. 4. O Projeto de Lei Gabriela Leite. 5. Considerações finais. 6. Referências.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A luta por direitos e garantias individuais e coletivos sempre foi uma constante no mundo. O Estado do Bem Estar Social[1], tal como o conhecemos hoje, só existe em razão de uma série batalhas travadas entre povo e governo, desde os primórdios. Com o decorrer dos séculos, tornou-se cada vez mais imperioso aos detentores do poder ceder às pressões populares e responder a seus anseios. Em meio a isso, paulatinamente, o direito à proteção social tornou-se um dos pilares do ordenamento jurídico de qualquer Estado que se diga democrático e de Direito.
No Brasil, incumbiu-se ao legislador constituinte elencar no texto constitucional os direitos sociais básicos de toda população e, em especial, dos trabalhadores. Em tal ponto, mister assinalar que, muito embora sejam sempre relembrados os direitos trabalhistas conquistados, os direitos previdenciários encontram-se, de igual forma e importância, também abrangidos em tal categoria.
Não obstante, é cediço que ainda hoje há categorias de trabalhadores não englobadas pelo sistema da Seguridade Social. Inserida em tal exclusão, encontra-se uma das classes que sempre gera grande celeuma em torno de sua regulamentação: a classe dos profissionais do sexo. Marginalizada durante séculos, aqueles que exercem o que se pode chamar de “profissão mais antiga do mundo”, marcham, há tempos, em uma constante luta em favor do reconhecimento de seus direitos mais básicos, dentre os quais, o direito à previdência social.
Recentemente, encontra-se em trâmite no Congresso Nacional o projeto de lei “Gabriela Leite”, o qual promete fomentar o debate acerca da atual condição jurídica dos profissionais do sexo no país. Indo muito além da simples regulamentação do trabalho exercido pelos profissionais que atuam de forma autônoma, a proposta visa, principalmente, descriminalizar as casas de prostituição, dando novas definições aos atuais tipos penais existentes. Uma vez aprovado, é certo que inúmeras mudanças deverão ocorrer na legislação brasileira, mormente no que se refere aos direitos trabalhistas, o que, por via consequencial, trará, também, impactos no âmbito da Seguridade Social.
Em razão do exposto, justifica-se a importância do presente artigo na medida em que se faz necessário debater a amplitude dos possíveis impactos da descriminalização das casas de prostituição para o direito e para a legislação previdenciária, atualmente carente de normas e ponderações doutrinárias a respeito do tema. Para que isso seja possível, far-se-á uma breve digressão a respeito da amplitude da proteção das normas previdenciárias nos dias atuais, bem como os aspectos abordados pelo referido projeto de lei.
A presente discussão será elaborada por meio do método dedutivo, a partir de uma releitura literária de doutrinas, jurisprudências, artigos, notícias e demais pesquisas bibliográficas e webliográficas sobre o tema. Ressalte-se, por fim, que o presente artigo não tem por finalidade fazer juízo de valor ou ponderações a respeito da natureza do ofício exercido pelos profissionais do sexo, mas, tão somente, discutir aspectos previdenciários de uma categoria não abarcada pelo Sistema de Seguridade Social.
2. PANORAMA ATUAL DA LEGISLAÇÃO PREVIDENCIÁRIA: SEGURADOS ABRANGIDOS E PRESTAÇÕES CONCEDIDAS
Tem-se, em primeiro turno, o direito da seguridade social como prestação positiva a ser oferecida pelo Estado. Elencada dentre o rol de direitos sociais acostados na Constituição Federal de 1988, pode-se considerar a seguridade social como sendo “um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência social e à assistência social” (TAVARES, 2012, p.1).
Para que se torne possível a efetivação dos referidos direitos, a Magna Carta elenca uma série de princípios norteadores responsáveis por traçar as diretrizes que devem ser obedecidas. Dentre estes, é possível destacar o princípio da solidariedade social, o qual nada mais é do que o verdadeiro fundamento legitimador de todo Sistema de Seguridade Social, na medida em que se caracteriza “pela cotização coletiva em prol daqueles que, num futuro incerto, ou mesmo no presente, necessitem de prestações retiradas desse fundo comum” (CASTRO, LAZZARI, 2012, p.54).
Exsurge de tal contexto de solidariedade, o primeiro objetivo da Seguridade Social assinalado pelo texto constitucional: a universalidade de cobertura e de atendimento. Para este princípio, incumbe à Seguridade prestar auxílio aos cidadãos da forma mais completa e abrangente possível, ou seja, coordenar ações com o escopo de conceder as prestações previstas no ordenamento jurídico ao maior número de cidadãos possíveis, a partir do momento em que estes se encontrem nas situações descritas na norma.
Tal princípio decorre, em parte, da necessidade de se conceder proteção ao hipossuficiente, postulado ainda não aceito de forma unânime pelos doutrinadores previdenciários, mas que aos poucos vem ganhando espaço por meio da jurisprudência, na medida em que se percebe a necessidade de se proteger os menos favorecidos. Neste sentido, verificam-se os seguintes arestos:
PREVIDENCIÁRIO - APOSENTADORIA POR IDADE - TRABALHADOR RURAL - PROFISSÃO DO COMPANHEIRO - AGROPECUARISTA - INADMISSIBILIDADE - PRECEDENTES DESTA CORTE E DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 1. "Não é admissível a prova exclusivamente testemunhal para reconhecimento de tempo de exercício de atividade urbana e rural (Lei n. 8.213/91, art. 55, § 3º)". Tribunal Regional Federal da 1ª Região, Súmula n. 27. 2. In casu, a autora juntou certidão de óbito do companheiro, em que este está qualificado como agropecuarista. Ademais, constam dos autos cópia de Declaração Completa de Imposto de Renda de Pessoa Física do companheiro, na qual se verifica patrimônio expressivo, não cabendo, na espécie, aplicação do princípio in dubio pro misero, haja vista não se tratar de hipossuficiente. 3. Apelação provida. 4.Remessa oficial prejudicada. (TRF1, Primeira Turma, AC 2006.38.05.000357-2/MG, Rel. Desembargador Federal José Amilcar Machado, e-DJF1 23/04/2010, grifo nosso.)
PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. PREVIDENCIÁRIO. RESTITUIÇÃO DE VALORES PERCEBIDOS POR FORÇA DE DECISÃO JUDICIAL. BOA-FÉ. DECISÃO MANTIDA. 1. O Superior Tribunal de Justiça mantém o entendimento de que, em causas de natureza previdenciária, nas quais a parte é reconhecidamente hipossuficiente, deve incidir proteção legal que lhe garanta a flexibilização dos rígidos institutos processuais. 2. Reconhecimento da natureza alimentar dos benefícios previdenciários e conseqüente aplicação do princípio da irrepetibilidade dos alimentos. 3. Precedentes do Superior Tribunal de Justiça. 4. Agravo regimental desprovido. (TRF1, Primeira Turma, AGA 2009.01.00.024395-0/MG, Rel. Desembargador Federal José Amilcar Machado, e-DJF1 17/11/2009, grifo nosso).
É necessário ter-se em mente, entretanto, que o referido princípio da universalidade da cobertura e do atendimento deve ter sua aplicabilidade sopesada de acordo com o ramo da Seguridade Social que se estuda. Assim, encontra-se este aplicado de forma o mais abrangente possível no que se refere à Saúde e à Assistência Social, e, em contrapartida, de maneira temperada no âmbito da Previdência Social. Tal fato se deve em razão de a Previdência ser destinada a cobrir determinados eventos, tais como, velhice, morte, desemprego e doenças, mas desde que se preencham determinados requisitos. Em outras palavras, suas prestações serão concedidas, por exemplo, somente àqueles que estiverem filiados à Previdência e vertido contribuições a esta.
O Regime Geral de Previdência no Brasil, todavia, não faz distinções entre categorias profissionais ou econômicas, possibilitando a filiação de todos estes ao Sistema. Partindo de tais pressupostos, observa-se que o legislador infraconstitucional ocupou-se em fixar o rol de segurados da Previdência tanto nas leis 8.212/91 e 8.213/91, quanto no decreto 3.048/99. Depreende-se de tais diplomas legais a existência de dois tipos de segurados: os obrigatórios e os facultativos. Caracterizam-se como segurados compulsórios,
a pessoa física que exerce atividade remunerada, efetiva ou eventual, de natureza urbana ou rural, com ou sem vínculo de emprego, a título precário ou não, bem como aquele que a lei define como tal (CASTRO, LAZZARI, 2012, p. 167).
De forma oposta, o segurado facultativo seria, portanto, aquele que, não possuindo vínculo obrigatório com a Previdência, contribui para o custeio das prestações após filiar-se a esta de forma espontânea.
Para ambas as categorias são assegurados determinados benefícios e serviços previdenciários, previstos tanto na legislação infraconstitucional, quanto na própria Carta Magna, conforme assevera o teor de seu artigo 201, a saber:
Art. 201. A previdência social será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, nos termos da lei, a:
I – cobertura dos eventos de doença, invalidez, morte e idade avançada;
II – proteção à maternidade, especialmente à gestante;
III – proteção ao trabalhador em situação de desemprego involuntário;
IV – salário-família e auxílio-reclusão para os dependentes dos segurados de baixa renda;
V – pensão por morte do segurado, homem ou mulher, ao cônjuge ou companheiro e dependentes, observado o disposto no §2º.
Da leitura do dispositivo legal, percebe-se que as prestações garantidas pela Previdência englobam não somente os segurados, mas também seus dependentes, os quais terão o direito de receber determinados benefícios, uma vez ocorridas determinadas contingências. Evidentemente, após se fazer uma análise mais abrangente da legislação previdenciária, observar-se-á que nem todos os benefícios serão concedidos a ambas as categorias de segurados acima assinaladas. De igual forma, é cediço que não há, de fato, uma abrangência universal por parte da Previdência de todos aqueles que exercem atividades remuneradas, o que faz com que diversas pessoas estejam impossibilitadas de requerer as referidas prestações, situação que vai de encontro ao que assevera o princípio da solidariedade acima tratado.
3. TRATAMENTO JURÍDICO DISPENSADO AOS PROFISSIONAIS DO SEXO NA ATUALIDADE
Prega o conhecimento popular ser a prostituição a profissão mais antiga do mundo. Embora não haja, de fato, nenhum dado científico que comprove tal alegação, é inquestionável que o ofício realizado pelos profissionais do sexo acompanha a história da humanidade há um certo tempo. Em épocas distantes, nas quais os conceitos de moral acolhidos pela sociedade divergiam dos atuais, a prostituição
era tratada como se fosse um ritual de iniciação das meninas quando chegavam à puberdade [...] pode-se sinalizar que no Egito Antigo, na Mesopotâmia e na Grécia havia um ritual em que essas (aos nossos olhos) vítimas socioculturais eram tidas como grandes sacerdotisas, sendo assim sagradas e recebendo honras, presentes etc. Gozavam inclusive de grande respeito e prestígio social. (SILVA, Natália Alves da. Prostituição: a legalização da profissão e a possibilidade do reconhecimento do contrato de trabalho. Disponível em <http://www.educacaopublica.rj.gov.br/biblioteca/direito/0003.html> Acesso em 30 abr. 2013.)
Com o passar dos séculos, a mudança de costumes e moral social, impulsionada, em grande parte, pela religião Cristã[2], relegou as prostitutas para as margens de uma sociedade cada vez mais excludente e preconceituosa. Hodiernamente, o ato de se prostituir, embora não seja considerado ilícito, encontra-se ao arrepio de qualquer norma regulamentadora. Não bastasse o caráter estigmatizante do trabalho exercido, os profissionais do sexo que, em sua maioria, são quase sempre mulheres, veem-se sem o mínimo de amparo jurídico capaz de lhes garantir seus direitos sociais mais básicos.
Neste diapasão, vislumbra-se a crescente necessidade de se proceder à regulamentação do ofício exercido, não só de forma autônoma, mas também por intermédio das casas de prostituição. Muito embora se saiba ser árdua a tarefa, em razão do que prega a dita “moralidade pública”, negar a concessão de direitos fundamentais a uma categoria tão somente em função de (pré)conceitos sociais, os quais, como bem se sabe, são variáveis de acordo com o tempo e a conveniência, é não só ignorar, mas também, e principalmente, desrespeitar tudo aquilo que prega a Constituição Federal .
3.1. ASPECTOS PENAIS
Nos dias atuais, muito embora a prestação de serviços sexuais seja algo recorrente, o exercício desta por meio da interposição de uma casa de prostituição, ou, em linguagem vulgar, prostíbulos ou bordéis, ainda é considerado um ilícito penal pelo decreto-lei n. 2.848 de 1940, atual Código Penal Brasileiro. Consoante dispõe o artigo 229 do citado diploma legal, constitui ilícito penal “manter, por conta própria ou de terceiro, estabelecimento em que ocorra exploração sexual, haja, ou não, intuito de lucro ou mediação direta do proprietário ou gerente”, sendo a este cominada pena de reclusão de dois a cinco anos, além de multa.
Extrai-se do referido artigo que a conduta delituosa configura-se a partir do momento em que se mantém, de forma permanente e habitual, estabelecimento com o fim de nele se praticar atos que configurem exploração sexual. Imperioso destacar a opção do legislador infraconstitucional em utilizar a expressão “estabelecimento em que ocorra exploração sexual”, alterando a antiga versão do tipo penal na qual antes se lia “manter [...] casa de prostituição ou lugar destinado a encontros para fim libidinoso”. Exsurge de tal alteração, a equiparação do exercício da prostituição à própria exploração sexual, não se fazendo qualquer distinção entre ambas as práticas.
Ora, como bem se sabe, não se pode equiparar a prática da prostituição, caracterizada pela prestação de serviços sexuais de forma voluntária e por pessoas civilmente capazes, à prática da exploração sexual, na qual o indivíduo é levado a praticar atos de libidinagem contra sua vontade.
A respeito do tema, leciona Bitencourt (2012, p.165, grifos do autor) que
aqui o legislador confunde moral com direito, e criminaliza um comportamento puramente moral, qual seja, “explorar”, no sentido de empresariar, uma atividade perfeitamente lícita, que é a prostituição, pois, a despeito de tudo, continua sendo lícita, legal, permitida: ninguém comete crime algum ao prostituir-se, isto é, exercer a prostituição como atividade (ou profissão), lucrativa ou não.
Em compasso com o referido ensinamento e, em contrapartida ao que dispõe a literalidade da lei, depreende-se dos seguintes arestos, uma discreta mudança de posicionamento jurisprudencial no tocante à referida prática, senão vejamos:
Casa de prostituição – Absolvição – Necessidade – Conduta praticada há mais de doze anos em zona de meretrício, tolerada pela comunidade local. Contravenção penal. Perturbação do sossego alheio. Caracterização. Recurso parcialmente provido. A jurisprudência dos tribunais tem se manifestado no sentido de que a exploração de casa de prostituição em zona de meretrício não configura o delito previsto no art. 229 do CP.” (TJMG, Apelação criminal nº 000.287.629-0/00, Rel. Des. Herculano Rodrigues, j. 17.10.2002, grifo nosso.) APELAÇÃO CRIMINAL - CASA DE PROSTITUIÇÃO - ART. 229 DO CÓDIGO PENAL - SENTENÇA ABSOLUTÓRIA - RECURSO INTERPOSTO PELO REPRESENTANTE DO MINISTÉRIO PÚBLICO - PLEITO CONDENATÓRIO - IMPOSSIBILIDADE - LOCAL SITUADO NA ZONA DE MERETRÍCIO - ATIPICIDADE DA CONDUTA - ABSOLVIÇÃO COM FUNDAMENTO NO ART. 386, INC. III, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL – RECURSO DESPROVIDO. Não se caracteriza o delito de casa de prostituição, quando a boate destinada a encontros amorosos funciona na chamada zona do meretrício, com pleno conhecimento e tolerância das autoridades administrativas, bem como da sociedade local." (TJPR, Apelação criminal nº 352.174-4, Rel. Des. Antônio Martelozzo, j. 19.10.2006, grifo nosso.)
Vislumbra-se, pois, nos casos acima referidos, a admissibilidade do princípio da adequação social em detrimento da tipicidade formal da conduta elencada no Código Penal. É possível dizer que tal fato decorre, em muito, pela crescente tolerância para com a manutenção dos referidos estabelecimentos. Em verdade, é questionável a permanência do referido tipo penal, tendo em vista que o Direito Penal, em sua essência, deve obedecer ao princípio da ultima ratio, ocupando-se em regrar condutas que sejam, de fato, penalmente relevantes.
Seguindo esta linha de raciocínio, alguns países europeus, tais como Holanda, Alemanha e Suíça, já admitem a legalidade e a regulamentação da prática da prostituição, tanto por meio de estabelecimentos, quanto de modo autônomo.
Considerando-se tais fatos, percebe-se que a criminalização do exercício da prostituição dentro de casas destinadas para tal fim, causando, consequentemente, a inexistência de uma legislação que estenda a tais profissionais as mesmas prerrogativas das quais gozam as demais classes trabalhadoras, decorre muito mais de fatores impulsionados pelo que a moral e os bons costumes julgam socialmente aceitável do que, de fato, por aspectos jurídicos e critérios objetivos.
3.2. ASPECTOS TRABALHISTAS
Consoante afirmado alhures, a prestação de serviços sexuais no país, hoje, somente é lícita quando exercida de forma autônoma, sem a subordinação do profissional a uma casa de prostituição. Desta feita, não haveria que se falar em contrato de trabalho ou em direitos trabalhistas e previdenciários decorrentes deste, sendo a discussão deslocada para o âmbito do Direito Civil, no que tange à possibilidade de se celebrar um contrato de prestação de serviços sexuais entre o cliente e o profissional do sexo.
Não obstante, tendo-se em mente que o foco do presente trabalho lastreia-se na possibilidade de descriminalização dos prostíbulos, faz-se necessária a análise dos aspectos trabalhistas que envolveriam tal relação.
Em primeiro turno, há que se considerar que o que a Consolidação das Leis do Trabalho traz como requisitos necessários para que haja configuração da relação de emprego. Dispõem os artigos 2º e 3º da CLT:
Art. 2º - Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço.
Art. 3º - Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob dependência deste e mediante salário.
Depreende-se dos dispositivos acima transcritos que, para que se configure uma relação de emprego, é necessário que estejam presentes, concomitantemente, os seguintes elementos: pessoalidade, subordinação, onerosidade e habitualidade. Acrescente-se ser necessário que o empregado esteja livre dos riscos do empreendimento, os quais devem ser assumidos pelo empregador.
Desse modo, é possível conceituar empregado como sendo “toda pessoa física que preste serviço a empregador (pessoa física ou jurídica) de forma não-eventual, com subordinação jurídica, mediante salário, sem correr os riscos do negócio” (CASSAR, 2008, p. 261, grifos do autor). Presentes, portanto, tais requisitos, estaria caracterizada a relação de emprego e, por conseguinte, o contrato de trabalho.
O contrato de trabalho, assim como todos os demais contratos celebráveis no ordenamento jurídico pátrio, exige como elementos básicos de existência, validade e eficácia os requisitos expostos pelo artigo 104 do Código Civil Brasileiro, quais sejam: agente capaz, objeto lícito e forma prescrita ou não defesa em lei. Acerca do tema, leciona Almeida (2011, p.197) “de manifesta natureza contratual, a relação de emprego, como todo contrato, pressupõe a capacidade das partes e objeto lícito [...]”.
Trazendo os referidos apontamentos para o âmbito do trabalho exercido pelos profissionais do sexo, tem-se a impossibilidade de se reconhecer o vínculo empregatício existente entre estes e a casa ou estabelecimento ao qual estão “vinculados”. Conforme exposto alhures, uma vez sendo ilícita a referida prática, resta descaracterizada a formação do contrato de trabalho tal como legalmente exigido, impossibilitando-se o reconhecimento do vínculo empregatício. Nesse sentido, figura o entendimento jurisprudencial, conforme se extrai do seguinte julgado:
[...] a este Pretório não compete o reconhecimento de qualquer vinculação, porquanto as tarefas desenvolvidas pela reclamante são consideradas ilícitas, ou seja, proibidas para qualquer cidadão, tal como ocorre noutras áreas, como, por exemplo, com serviços de contrabando, cassinos, casas de prostituição, etc..
Diferentemente do trabalho proibido é este, o trabalho ilícito. Naquela modalidade em que se permitem a determinadas pessoas o exercício das funções, sendo exemplos de trabalho proibido aqueles que se desenvolvem em condições insalubres para mulheres, ou o noturno para menores de idade, neste (o ilícito) nenhum cidadão pode se ativar, sob pena de perecimento por completo do direito ao reconhecimento do vínculo de emprego ou qualquer consectário decorrente do labor, ao passo que na prestação de trabalho proibido os direitos adquiridos são preservados e respeitados, apesar da necessidade de cessação imediata do concurso e aplicação de penalidades administrativas ao empregador.
O objeto ilícito do contrato, pois, efetivamente, afasta o reconhecimento de quaisquer direitos. (TRT – 2ª região, 10ª Turma, Acórdão n.º 20060889467, Rel. Juíza Sônia Aparecida Gindro, DJ 21.11.2006, grifo nosso.)
O não reconhecimento do vínculo empregatício formado entre os profissionais do sexo e as casas de prostituição acarreta para aqueles o cerceamento de todos os direitos trabalhistas inerentes ao contrato de trabalho, tais como anotação na CTPS, salário mínimo, férias, décimo terceiro, FGTS e demais prerrogativas elencadas no artigo 7º da Constituição Federal, bem como seus direitos previdenciários.
Não obstante a ausência de possibilidade dos trabalhadores do sexo serem abrangidos pelas leis do contrato de trabalho, já há, hoje, uma categoria dentro da Classificação Brasileira de Ocupações, do Ministério do Trabalho e Emprego, para a referida classe, sendo considerados profissionais do sexo aqueles que
buscam programas sexuais; atendem e acompanham clientes; participam em ações educativas no campo da sexualidade. As atividades são exercidas seguindo normas e procedimentos que minimizam a vulnerabilidades da profissão.” (MINISTÉRIO do Trabalho e Emprego. Disponível em: < http://www.mtecbo.gov.br/cbosite/pages/pesquisas/BuscaPorTituloResultado.jsf>. Acesso em 01 maio 2013)
Muito embora a criação da mencionada classe pelo MTE não traga impactos reais e significativos para aqueles profissionais que exercem o ofício sob a interposição de um estabelecimento, pode ser considerado um pequeno avanço na tentativa de se regulamentar a profissão dos trabalhadores do sexo. Uma vez admitido o enquadramento das casas de prostituição como empregadores, tornar-se-ia possível sua efetiva fiscalização por parte do Estado, minimizando o descumprimento não só das normas de ordem trabalhista, mas também das questões de ordem sanitária.