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Os serviços de saneamento:

afronta ao Código do Consumidor e às leis ambientais

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A atuação das empresas saneadoras de nosso país, no mercado de consumo, é, no mínimo, curiosa.

No que tange ao seu sistema de preços, ao invés de cobrarem exclusivamente pela água consumida, como determina o Código do Consumidor e o Código Civil, preferem estipular um patamar mínimo de consumo, obrigando o pagamento de uma quantia certa, a despeito do consumo não realizado. Alegam que o montante dessa maneira arrecadado tem por fito subsidiar o sistema de fornecimento de água e esgoto, o que nos faz perguntar se esta partícula remuneratória já não deveria estar embutida na própria tarifa, como determina a lei.

Esse consumo imposto, que em Minas Gerais é denominado de "consumo mínimo por economia", é cobrado não só de quem efetivamente se utiliza da água fornecida, mas também de unidades consumidoras desativadas ou permanentemente desocupadas. Com relação a essa ilegalidade, o artifício invocado é de que o serviço permanece à disposição do consumidor. As concessionárias, nesse sentido, confundem preço público com taxa, e pretendem aplicar regime tributário a uma relação eminentemente contratual. Vale lembrar que, caso fossem essas empresas realmente submetidas às normas tributárias, os constantes aumentos de suas tarifas deveriam ser efetuados, inevitavelmente, por leis, e não por via de portarias e congêneres, como vem ocorrendo.

Cumpre esclarecer que as concessionárias, muitas vezes imbuídas pelo único intuito de mascarar este método de cobrança, preferem empregar ao "consumo mínimo" o nome de "tarifa mínima". A denominação, além de ludibriar o consumidor, consiste em evidente erro técnico. Primeiramente, porque a tarifa não se confunde com o consumo. Muito pelo contrário, tarifa e consumo são elementos distintos que se conjugam para a composição do preço final. Quer dizer, pela técnica legal, o valor da tarifa multiplicado pelo consumo (volume de água consumido) resulta no montante total a ser cobrado do consumidor. Daí falar-se em tarifa de R$ 1,00 para cada metro cúbico de água consumido. Em segundo lugar, porque a vontade da lei é de que na composição da tarifa sejam levados em conta todos os fatores que determinam o custo do serviço público, sendo vedada a imposição de qualquer outra partícula remuneratória que não esteja embutida na própria tarifa (princípio da tarifa conglobante). Nessa perspectiva, tarifa mínima seria aquela que, apesar do imperativo de agregar todos os componentes de custo para a prestação do serviço, teria seu valor reduzido para atender às populações carentes, em obediência ao princípio da isonomia. Vê-se, pois, que a tarifa mínima é uma tarifa especial, e não pode ser lida como um consumo mínimo imposto.

Ainda, contam estas empresas com a desinformação dos utentes, deixando de especificar na conta de água todos os elementos que indicam a composição do preço final, como o valor da tarifa vigente no mês de cobrança, o volume de água cobrado e assim por diante. Nesse sentido, calha mencionar o exemplo dos consumidores mineiros que, tentando desvendar os mistérios de suas contas de água, descobriram que todos os valores cobrados pelo fornecimento de água também incidem nos serviços de esgoto. Trocando em miúdos, em Minas Gerias paga-se duas vezes pelo consumo mínimo e, por conseguinte, a tarifa acaba incidindo em dobro. Fácil identificar estas irregularidades? Obviamente, não. Encontram-se todas escamoteadas na conta de água e palidamente delineadas em algumas das normas regentes das empresas concessionárias, como decretos, portarias etc.

Para confirmar essa assertiva, desafia-se o consumidor a apontar na conta de água os seguintes dados:

- O volume de água efetivamente consumido no mês : Geralmente, nas contas de água, não se destaca qual o volume de água efetivamente consumido. O que se constata é apenas a leitura inicial e final do hidrômetro. Então, o consumidor, para descobrir qual foi o volume de água que realmente consumiu, deve deduzir da leitura final o valor da leitura inicial (leitura final – leitura inicial);

- O volume de consumo imposto, determinado pelo "consumo mínimo" : O volume de água imposto para efeitos de cobrança também não fica ostensivamente determinado nas contas mensais. Para se chegar ao valor, deve-se multiplicar o número de "economias" (unidades consumidoras) pelo volume que cada empresa concessionária determina como patamar de consumo. Por exemplo, em Minas Gerais, num prédio de 90 apartamentos (90 economias), o volume imposto é de 900 m³ (90 x 10 m³);

- O valor da tarifa vigente no mês de cobrança para os serviços de fornecimento de água: O valor da tarifa que incide sobre o volume de água consumido, por incrível que pareça, não é informado;

- O valor da tarifa vigente no mês de cobrança para os serviços de esgoto: O serviço de esgoto prestado tem por base de cálculo a água fornecida ou consumida. A tarifa incide, novamente, sobre este volume. Algumas contas de água sequer esclarecem sobre a cobrança de tal serviço.

- A classe de cada consumidor: Cada unidade consumidora ou economia é enquadrada em determinada classe, como residencial, comercial e pública. Na conta mensal, não resta claro em qual classe a economia foi incluída. Quando muito, empregam-se abreviações desconhecidas pelo consumidor. A classe de cada economia é de grande importância, posto que indica o valor da tarifa a ser paga.

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Não bastasse, existem outras irregularidades na prestação dos serviços dessas empresas concessionárias. Constatou-se, recentemente, que o consumidor vem pagando pelo ar que entra na tubulação, prontamente contabilizado pelo hidrômetro como se água fosse. Dessa forma, omitem-se as concessionárias em sanar a irregularidade, assegurando um serviço adequado, exigência estipulada não só pelo Código do Consumidor, mas também pela própria Constituição Federal. A fim de contornar a situação, alguns consumidores vêm instalando os chamados "eliminadores de ar", mas não sem o protesto das empresas saneadoras.

Questão digna de nota diz respeito, também, ao impacto do relatado sistema de cobrança nas políticas de preservação do meio ambiente. Ora, percebe-se com nitidez que, ao onerar-se os utentes com um consumo mínimo fictício, está-se ao mesmo tempo desestimulando a economia dos recursos hídricos. O consumidor mais econômico, assim, encontra-se penalizado pelo consumo que nunca realizou. Tenha-se em conta os alertas dos estudiosos para o chamado "secão" (nome inspirado no conhecido "apagão"), efeito que consiste numa considerável redução mundial dos recursos hídricos, o que requer imediatas providências. Atento a estes prognósticos, países como os Estados Unidos já vêm desenvolvendo mecanismos residenciais para economia de água, ajustáveis a torneiras, descargas, chuveiros e caixas d’água. No Brasil, entretanto, a instalação desses produtos afigura-se como medida inócua, ante a cobrança do consumo mínimo.

Quem em sã consciência defenderia a imposição de um consumo mínimo de energia elétrica em épocas de escassez? Da mesma forma, dar carta branca à população para gastar certo volume de água, diante do atual contexto, não soa como insanidade?

A fim de contornar essa situação, ajuizou o Movimento das Donas de Casa e Consumidores de Minas Gerais uma Ação Civil Pública, requerendo do Poder Judiciário imediata reparação. A medida poderá ser requerida também em outros estados, uma vez que há grande semelhança na prestação dos serviços de água e esgoto oferecidos pela empresas saneadoras de todo o país.

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Sobre o autor
Marco Paulo Denucci Di Spirito

assessor jurídico do Conselho Regional de Economia da 10ª Região

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DI SPIRITO, Marco Paulo Denucci. Os serviços de saneamento:: afronta ao Código do Consumidor e às leis ambientais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 55, 1 mar. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2797. Acesso em: 25 abr. 2024.

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