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A propriedade intelectual nas comunidades tradicionais e indígenas

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01/03/2002 às 00:00
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A Propriedade Coletiva do Conhecimento

Da identificação dos direitos coletivos e a geração coletiva do conhecimento, retira-se os direitos da propriedade coletiva do conhecimento.

Este direito estabelecido na Constituição do Equador, determina que um dos amparos aos conhecimentos ancestrais coletivos é o direito de propriedade coletiva, ou seja, a capacidade de exercer direitos e contrair obrigações com relação à propriedade coletiva.

A propriedade coletiva, nos termos desta Constituição, "es un derecho inalienable, inembargable e indivisible", salvo a faculdade do Estado para declarar sua utilidade pública. Estas mesmas normas são as características que regem a propriedade intelectual nos seus fins, funções, efeitos e características distintas das da propriedade intelectual individual.

No Brasil, segundo o jurista Frederico Marés, em artigo intitulado "Propriedade Intelectual e Direitos Coletivos":

os direitos coletivos não são uma mera soma de direitos subjetivos individuais, mas somente aqueles pertencentes a um grupo de pessoas, cuja titularidade é difusa porque não pertence a ninguém em especial, mas cada um pode promover sua defesa que beneficia sempre a todos.

A propriedade intelectual coletiva está ligada à necessidade da reprodução social e cultural dos povos indígenas, a manterem sua cosmovisão e sua formas e meios de gerar os conhecimentos, e finalmente, a assegurar a base material de suas vidas como é o território e a biodiversidade, no qual vivem.


A Questão da Compensação na Apropriação dos Conhecimentos Tradicionais de Povos Indígenas e Outros.

Essa questão é a mais importante. A comunidades indígenas têm manifestado, por intermédio de suas lideranças, o interesse de que não seja reconhecida a biodiversidade como bem passível de apropriação nos moldes estatuídos na codificação da propriedade industrial, com já se pronunciou.

As comunidades indígenas entendem que a compensação financeira não atende aos interesses relacionados à integridade de seus territórios e da própria biodiversidade neles existente, segundo Fernando Nabais da Furriela.

Assim, vedando-se a possibilidade de apropriação, que implica no direito de exclusividade de disposição e uso da coisa, vedar-se-ia também, a possibilidade de, mediante simples compensação financeira, resolver-se o uso indevido, não autorizado da biodiversidade. Ou seja, o raciocínio das comunidades indígenas na formulação de sua restrição ao direito de propriedade, além de atender outros outros objetivos, impediria que qualquer um que se utilizasse de seu conhecimento e/ou da biodiversidade pudesse, por meio de reparação financeira/econômica, ser absolvido da falta cometida.

A exigência legal impõe a ampla, integral e justa reparação. Contudo, as comunidades indígenas entendem, que em se tratando de uso indevido /violação do conhecimento tradicional por elas detido, bem como de sua biodiversidade, não haverá meios de se promover a ampla, integral e justa reparação. Até pelo sentimento axiológico destinado a seu habitat, a sua cultura, que expressa de forma diferente que a nossa. Assiste, assim, uma razão ao entedimento da comunidade indígena, em face de seu entedimento sobre a questão, de não autorizar a apropriação.

Portanto, continua a opinião de Furriela, as comunidades indígenas entendem que vedando-se a possibilidade de apropriação, por quem quer que seja, estar-se-ia limitando o interesse sobre seu conhecimento e sua biodiversidade, na medida em que limitar-se-ia a possibilidade de um eventual titular explorar, em caráter de exclusividade, esse patrimônio.

O problema principal que se discute e é preciso entender, é que a forma de apropriação-compensação do conhecimento dessas comunidades está completamente fora de seu contexto cultural (entenda-se como processo produtivo), o significado que se impõe ao seus conhecimentos.

Um fato que deve ser observado com mais cautela e, por isso, levanta-se uma restrição ao pretendido, são os fins humanitários que esse conhecimento tradicional e/ou a biodiversidade possa atender.

Juliana Santilli discorre sobre a mesma questão, no artigo já mencionado. Sempre deve ser ressaltada a natureza coletiva de qualquer mecanismo de compensação por conhecimentos tradicionais indígenas, e ser expressamente proibida qualquer apropriação individual dos benefícios oriundos de sua ultilização para fins comerciais.

Em relação ao acesso a conhecimentos tradicionais associados aos recursos genéticos, deve ser feita uma distinção entre os conhecimentos de que são detentoras exclusivas certas comunidades indígenas, e aqueles que são divididos por várias comunidades indígenas. No primeiro caso, parece não haver maiores dificuldades para a concretização da compensação a ser estabelecida por meio de contrato de acesso. Mais complexo, entretanto, parecem ser os mecanismos de compensação no segundo caso. Uma solução seria o estabelecimento da co-titularidade de direitos e obrigações entre várias comunidades, que deveriam ser, então, todas, partes no contrato de acesso.

Nesse caso, continua Santilli, parece necessária a criação de um fundo específico, a que seriam destinados os recursos levantados com o pagamento de taxas de prospecção/royalties sobre recursos genéticos/conhecimentos tradicionais coletivos associados à biodiversidade.

Outros países elaboram propostas visando à criação de mecanismos de compensação. O Equador entre outras propostas, prevê que nenhuma inovação indígena poderá ser objeto de patentes, e que o consentimento informado prévio das comunidades para o acesso inclui a possibilidade de que não levantem objeção cultural, quando não desejem que sua inovação seja utilizada com propósitos comerciais.

Já a proposta colombiana estabelece dois regimes diferentes para a tramitação das solicitações de acesso a recursos genéticos: 1) regime especial de acesso, pelo qual tramitam as solicitações e se definem as condições de acesso a recursos associados ao conhecimento tradicional. Esse regime está associado ao sistema sui generis de propriedade intelectual, cuja característica é evitar a apropriação individual dos direitos sobre o conhecimento coletivo. 2) regime geral de acesso, pelo qual tramitam as solicitações de acesso a recursos que não envolvam conhecimento tradicional. Esse regime está associado a sistemas individuais de propriedade intelectual (patentes e direitos do obtentor vegetal). 3) prevê a regulamentação do regime especial de acesso no prazo de um ano, bem como, dentro do mesmo prazo, do sistema sui generis de direitos coletivos de propriedade intelectual, mediante um processo de consulta que deverá contar com a ampla participação das comunidades locais, devendo o governo nacional garantir os recursos financeiros e o apoio logístico requerido para esse propósito.

A lei da Malásia (Commuty Intellectual Rights Act) elaborada pela organização Third World Network, parte de alguns conceitos básicos, os quais transcrevemos alguns deles: 1) as comunidades locais e indígenas são os custodians legais e forma perpétua da inovação. 2) quaisquer direitos de monopólio exclusivo em relação à inovação serão nulos. 3) o intercâmbio entre as comunidades deve ser livre, desde que não tenha finalidade comercial. 4) qualquer pessoa, órgão, organização ou empresa que pretenda fazer uso comercial da inovação ou parte dela deve: obter o consentimento escrito da comunidade local e pagar à comunidade local, que é a custodian de tal inovação, uma quantia que represente uma percentagem mínima sobre as vendas brutas de qualquer produto ou processo que incorpore tal inovação. Qualquer comunidade indígena pode optar pelo pagamento de uma compensação não-monetária, de acordo com seus usos, costumes e tradições.

Finalmente, é importante reiterar a crítica geral ao projeto já formulada pelo Instituto Socioambiental. Refere-se ao fato de o mesmo atribuir apenas ao Poder Público a incumbência de "preservar a diversidade biológica" do país, e não a toda sociedade. Não prevê mecanismos concretos de participação da cidadania no controle do acesso aso recursos genéticos. Nesse ponto, bem fez o Grupo ad hoc de Biodiversidade da Colômbia, que entre seus princípios discorre:

1º Artigo: A Nação exerce direito soberanos e inalienáveis sobre a diversidade biológica e os recursos genéticos existentes no território nacional; em consonância com os princípios constitucionais, o exercício dessa soberania é compartilhado com a sociedade civil. Portanto, é dever e direito de todos os cidadãos e do Estado proteger conjuntamente a diversidade étnica e cultural, o patrimônio natural da nação e a integridade do ambiente.

Assim, embora os direitos intelectuais das comunidades indígenas sejam coletivos, e não possa ser reivindicada a sua titularidade em nível individual, todos os membros da comunidade, bem como suas organizações, devem tomar iniciativas visando a protegê-las. Afinal, essa e justamente a principal característica do direito coletivo: o fato de qualquer titular poder tomar iniciativa para defendê-lo, ainda que só beneficie o todo.


CONCLUSÃO

Como um dos pontos fundamentais deste trabalho foi demonstrar a antropologia jurídica como disciplina, e como essa interdisciplinariedade pode contribuir no papel científico das instituições de direito, onde se tratou especificamente sobre a propriedade intelectual de comunidades tradicionais, faz-se mister, para corroborar que aceitando as diferenças e acabando com o discurso da "igualdade", que mais parece uma noção para escamotear relações de força, apresento o que o teórico Frederik Barth, na década de 60, que entendeu sobre a organização social da diferença de cultura [e também sobre etnicidade], sendo deste nome sua obra, apresentada no livro Teorias da Etnicidade de Philippe Poutignat e Jocelyne Streiff-Fenart. (1995. São Paulo; Editora Unesp)

Barth substituiu uma concepção estática da identidade étnica por uma concepção dinâmica. Ele entendeu muito bem e faz entender que essa identidade, como qualquer outra identidade coletiva (e assim também a identidade pessoal de cada um), é construída e transformada na interação de grupos sociais através de processos exclusão e inclusão que estabelecem limites entre tais grupos, definindo os que os integram ou não. Então, o que importa é procurar saber em que consistem tais processos de organização social através dos quais mantêm-se de forma duradoura as distinções entre "nós" e "os outros", mesmo quando mudam as diferenças que, para "nós", assim como para "os outros", justificam e legitimam tais distinções. Pois escreve Barth, em tais processos "os traços que levamos em conta não são a soma das diferenças ‘objetivas’ mas unicamente aqueles que os próprios atores consideram como significativos". Desse modo, as mesma características podem suceder-se adquirindo a mesma significação.

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Encarada nessa perspectiva, a etnicidade não é o conjunto intemporal, imutável de "traços culturais" (crenças, valores, símbolos, ritos, regras de conduta, língua, código de polidez, práticas de vestuário ou culinárias etc.), transmitidos da mesma forma de geração para geração na história do grupo; ela provoca ações e reações entre os grupos e os outros em uma organização social que não cessa de evoluir.


NOTAS

1.Em março de 2000, realizou-se no Chile o XII Congresso Internacional de Direito Consuetudinário e Pluralismo Legal: Desafio no Terceiro Mundo, do qual se expõe neste trabalho as perspectivas do artigo de Gina Chávez, cujo título encabeça este capítulo.

2.Maria Helena Diniz, Curso de Direito Civil Brasileiro – Direito das Coisas, 1997, p. 104 e 105.

3.Vandana Shiva, "El conocimiento en el Convenio sobre a Diversidad Bilógica", Uruguai, dezembro de 1996.

4.Sobre o cartesianismo, será demonstrado, em particular, o posicionamento de Shiva e J. M. Broekman. Primeiramente, Shiva sustenta que uma concepção pluralista do conhecimento implicaria em respeitar os diferentes sistemas em sua lógica e fundamentos epistemológicos próprios. Isso significa que um só método (a unidade do ocidental) não serve de medida da exatidão científica para todos os sistemas e que a diversidade não pode de ser reduzida à linguagem e às lógicas dos sistemas ocidentais de conhecimento. A integridade de nosso patrimônio biológico e intelectual só pode se proteger dentro dessa perspectiva pluralista. A concepção hierárquica afirmará que o paradigma ocidental é cientificamente superior, no entanto, pese seus atuais fracassos no que concerne a sustentabilidade da atenção médica e à nutrição. Supor que existe uma hierarquia é o fundamento com o qual se dá qualidade de invenção à biopirataria.

Já Broekman ensina que temos que esclarecer que o pensamento jurídico em nosso cultura, tanto em seus aspectos dogmáticos e teóricos como na filosofia, está marcado, inclusive em nossa época, pelo cartesianismo. Mais surpreendente é que este influxo se mantém apesar dos combates a ele, também no terreno do direito e do Estado. Cita t’Hart aludindo sobre o pensamento de Giambattista Vico. Demonstra que para Vico as instituições humanas funcionam com uma consciência aberta, condicionada pela realidade humana histórica, refere-se, dessa forma, às relações entre a consciência do homem e seu mundo vital – o único que ele conhece. Assim, Broekman assevera que nossa consciência atual atormentasse com a questão de se podemos pensar, atuar e falar de outra forma distinta da cartesiana. À primeira vista, esta questão nos levará a muito longe. Em definitivo, o conjunto de problemas vinculados à troca de cultura dentro de, e, pela historicidade das formas de pensamento. Assim, manifesta-se entre o modelo da manufatura e do pensamento mecanicista.

Mais importante como ratificação dessas perspectivas críticas do cartesianismo, o filósofo Nietzsche, precisamente em sue livro a Gaia Ciência, conta-nos sob que alicerce a ciência ocidental se construiu, ou melhor, se constrói. Para Nietzsche, o homem será sempre moral. Porém, o homem da moral dogmática não faz ciência. O homem é moral porque estabelece valores. Aquele que não despreza os valores do fundamento daquilo que acredita, não tem consciência intelectual. Não existe meio-saber, não existe ciência que comporte limitações (dogmas). Ciência é um campo de pesquisa, de disputa. A existência extrapola em muito, os dogmas da ciência tradicional. Os valores morais estão ligados às restrições de como a história nos foi contada.

5.Revista CEJ, nº 3, p. 46 a 53. Set/dez. 1997.


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

Actas, XII Congreso Internacional, Derecho Consuetudinario y Pluralismo Legal: Desafíos en el Tercer Milenio. Tomo I. Arica-Chile, 2000.

BROEKMAN, Jan M. Derecho y Antropologia. Madrid: Civitas, 1993. (Trad. Pilar Burgos Checa)

DINIZ, Maria Helena. Direito Civil Brasileiro, 4º Volume, Direito das Coisas. São Paulo: Saraiva, 1997.

FREITAG, Barbara & ROUANET, Sérgio Paulo. HABERMAS – sociologiaColeção Grandes Cientistas Sociais. São Paulo: Ática, 1993.

FURRIELA, Fernando Nabais. Propriedade Intelecual e Biodiversidade: a proteção legal da biodiversidade. Disponível em: <http:/www.bdt.org.br, em 12/01/2001.

POUTIGNAT, Philippe & STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da Etinicidade, seguido de Grupos Étnicos e suas Fronteiras de Frederik Barth. São Paulo: Unesp, 1995

REVISTA CEJ/Conselho da Justiça Federal, Centro de Estudos Judiciários – Vol. 1, n. 1 (1997) – Brasília.

SHIRLEY, Robert Weaver. Antropologia Jurídica. São Paulo: Saraiva, 1987.

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Sobre a autora
Camila Pessoa Lopes

bacharel em Direito e acadêmica de Filosofia pela UFPA

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LOPES, Camila Pessoa. A propriedade intelectual nas comunidades tradicionais e indígenas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 55, 1 mar. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2798. Acesso em: 23 dez. 2024.

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