Capa da publicação Contrato EPC em grandes obras de engenharia
Artigo Destaque dos editores

O contrato de EPC para construção de grandes obras de engenharia e o novo Código Civil

01/03/2002 às 00:00
Leia nesta página:

O regime de concessão de serviços públicos e a criação de regimes especiais de autorização deram lugar à negociação de contratos de construção de grandes obras, financiados por project finance, alterando a ótica de análise de risco dos financiadores.

1. O regime de concessão de serviços públicos instituído através da Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, assim como a criação de regimes especiais de autorização para exploração de instalações de geração de energia elétrica pelo setor privado, na modalidade de produção independente de energia elétrica, ou, ainda, de estabelecimento de infra-estrutura de transporte de petróleo, gás natural e seus derivados, por meio de instalações de grande porte, como oleodutos, gasodutos e polidutos, deram lugar à negociação de contratos de construção de grandes obras de engenharia, geralmente sob o regime da empreitada global.

2. Os EPCs (Engineering, Procurement and Construction Contracts), contratos de construção de obras de grande porte, de origem anglo-saxã, guardam, à luz do direito pátrio vigente, pontos em comum com os contratos de empreitada global, sendo de ressaltar que algumas das cláusulas-padrão dos EPCs encontram tratamento legal nas disposições dos contratos de empreitada contidas no Código Civil vigente.

3. A despeito da importância que assumem tais contratos e na medida em que se referem a obras de grande porte, no quadro atual essa importância é ainda maior. A razão dessa maior relevância está no fato dessas operações serem, em sua quase totalidade, financiadas por estruturas do denominado "project finance". De acordo com essas estruturas de financiamento, os financiadores olharão sobretudo para a estabilidade e consistência do fluxo de caixa da empresa financiada. Em outras palavras, não se estará fundamentado no valor dos ativos incorporados ao projeto em si, mas na capacidade atrelada a esses ativos de gerar receitas decorrentes da operação e manutenção do projeto. Essa modalidade de financiamento altera substancialmente a ótica de análise de risco dos financiadores. Assim sendo, quaisquer riscos inerentes ou relativos ao projeto, em geral de grande importância na avaliação dos financiadores, assumem uma importância maior, na medida em que a sua materialização fatalmente afetará a estabilidade e consistência do fluxo de caixa, o que vale dizer – a capacidade de repagamento das obrigações relativas ao empréstimo pelo tomador.

4. Em face de tudo isso, há que se levar em conta a consistência das obrigações e direitos emergentes dos instrumentos contratuais que dão suporte ao projeto – os Contratos do Projeto. Em regra, todos os direitos ou expectativas de direito de que seja o tomador do empréstimo titular são cedidos, imediata ou condicionalmente, aos financiadores, como integrantes desse conjunto de garantias de que se cerca o financiador. Por essa razão, é importante que aludidos contratos outorguem direitos aos financiadores de ingressar no projeto ou no controle operacional deste, exercendo os direitos e as obrigações assumidas originalmente pelo tomador, de forma a evitar ou sanear eventos que possam afetar a consistência e a estabilidade do fluxo de caixa e, no limite, de assegurar a suficiência de fundos para o cumprimento das obrigações decorrentes do financiamento.

5. Em qualquer dessas operações, o patrocinador do projeto costuma contratar um empreiteiro para construir as instalações do projeto. Esse empreiteiro, no jargão mais recente do setor, é chamado de Epcista, numa alusão à parte contratada num contrato dessa natureza e denominado, em inglês, pelo acrônimo de EPC. Considerando que as operações de "project finance" podem ser sintetizadas como tendo como elemento dominante o exercício de determinação, alocação e mitigação de riscos, não há como se ignorar a importância desempenhada em face do patrocinador do projeto e de terceiros pelo contrato de empreitada. A partir da expectativa de conclusão, em certa data, de determinadas instalações, desenvolve-se uma cadeia de direitos e obrigações de natureza variada e em que não necessariamente coincidem as partes. Ou seja: muito embora cada projeto dessa natureza deva ser analisado como um projeto integrado, na realidade e geralmente não o é. Os direitos e obrigações são desencadeados por falhas ou inadimplementos no curso da cadeia de contratantes, gerando, a partir desse evento, direitos e obrigações indenizatórios ou relativos a penalidades. A dificuldade com que se defrontam os que estejam envolvidos em operações dessa natureza é justamente harmonizar cláusulas, direitos e obrigações contidos em diversos instrumentos contratuais, inclusive dos que não sejam partes contratantes.

6. Nesse marco contratual, não há contratos mais importantes que outros. Todos os instrumentos contratuais exercem um papel relevante, mas o contrato de empreitada é o primeiro na lista de precedência, na medida em que sem ele a instalação não existe e, consequentemente, o projeto estará fatalmente comprometido. Um bom exemplo disso são as usinas térmicas movidas a gás natural, projetos esses que não podem prescindir do combustível gás natural. Para isso, necessário será que existam instalações de transporte desse combustível, assim como a usina térmica somente poderá gerar se estiver instalada. Projetos dessa natureza envolvem cadeias contratuais distintas, mas relacionadas. No exemplo formulado, estaremos diante de dois contratos de empreitada de construção; do meio físico de transporte (o gasoduto) e dos ativos de geração (a usina térmica).

7. Até então, a flexibilidade das normas do Código Civil de 1916 relativamente à empreitada têm permitido a celebração de contratos EPC, nos padrões adotados internacionalmente e aceitos pelos financiadores como contratos que asseguram a financiabilidade dos projetos. O tratamento dos riscos e dos direitos e obrigações das partes estão garantidos, quanto à sua legalidade e exequibilidade, pelas disposições legais vigentes no Brasil. Dada a similaridade existente entre os EPCs e o contrato de empreitada, entendeu-se que o EPC seria uma manifestação da empreitada e teria a mesma natureza jurídica desta. Mas isso é ou não uma verdade absoluta? É o que pretendemos analisar também neste Artigo.

8. Por oportuno, vale a pena lembrar que, na adoção de estruturas de "project finance", o risco determinado e que não venha a ser adequadamente alocado e mitigado gerará sempre um impacto no patrocinador do projeto, seja pelo aumento dos custos do empréstimo, seja pela necessidade de aporte de garantias do patrocinador ou de garantias bancárias ou securitárias adicionais, ou seja, acarretará sempre um aumento de custo do projeto.

9. O contrato de empreitada está regulado nos art. 610. a 626 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que institui o Código Civil, revogando integralmente o de 1916. Se bem que mantenha, em linhas gerais, a normatização da codificação anterior, o novo Código Civil traz inovações na matéria relativa à empreitada que, de um lado, podem tornar os EPCs mais onerosos, além de exigir alterações em seus textos que representarão uma mudança nos padrões adotados internacionalmente. Ao apontarmos essas alterações, não estaremos necessariamente as criticando, nem mesmo afirmando que elas são desarrazoadas. O que se pretende com este Artigo é examinar em detalhe o que muda na legislação brasileira e qual será o impacto, caso exista, sobre novos contratos e sobre contratos em vigor e em curso de execução.

10. Vale lembrar que alterações de lei são tratadas detalhadamente em contratos de longo prazo em operações dessa natureza, com consequências diferenciadas, variando da revisão dos preços a evento excusável no contexto da força maior. Cada situação acarretará consequências adicionais e obrigações variadas, além do risco sempre iminente de se defrontarem as partes com atrasos, sejam decorrentes de negociações extensas ou de arbitragens para determinação de obrigações. Ao fim e ao cabo, prejudicado estará o consumidor final de um bem ou de um serviço, para não se falar em prejuízos ao interesse público, na mais extensa acepção da expressão.

11. O foco deste Artigo será, portanto, a análise das disposições legais relativas à empreitada na ótica da determinação e alocação de riscos contratuais de forma a que se possa avaliar o impacto do marco legal sobre a construção de grandes obras de engenharia.

12. Questão sempre relevante é a contida no art. 612. e que repete a linguagem hoje contida no art. 1239. do Código de 1916, ou seja, os riscos associados com a denominada empreitada de lavor. A situação estaria solucionada, caso, em termos práticos, se pudesse determinar que existem somente as duas alternativas previstas na lei, ou seja, a empreitada global em que o empreiteiro fornece materiais e mão de obra ou a empreitada de lavor, caso em que a obrigação do empreiteiro se resumiria à disponibilização de mão de obra. Muito embora na prática se busque sempre um contrato de empreitada global, casos há (e não são poucos) em que a relação se completa de forma mista, valendo dizer que o dono da obra chama a si a responsabilidade pelo fornecimento de determinados materiais ou equipamentos, enquanto que o empreiteiro se encarrega do fornecimento de outros, além da prestação da mão de obra. Em casos como esse, o Código de 1916 já indicava a solução, o que se repete no novo Código. Tome-se, por exemplo, a construção de uma usina térmica em que o dono da obra se obriga a fornecer certos materiais ou equipamentos, como seria o caso de turbinas de geração, enquanto ao empreiteiro caberia o fornecimento dos demais materiais e equipamentos e da mão de obra. Quaisquer riscos relativos ou associados à entrega das turbinas estarão a cargo do contratante, enquanto ao empreiteiro caberia assumir os demais riscos relativos ao que se obrigou a fornecer. Essa questão se repete não apenas no Brasil, assim como em outros países. Essa questão se resume na determinação da extensão que o atraso sofrido pelo contratante na entrega das turbinas impediu que o empreiteiro desse continuidade a seu trabalho, numa ou em outras frentes. Além disso, qual a extensão desse atraso no atraso final experimentado pelo empreiteiro e, ainda, como tratar esse atraso se o empreiteiro já estava em mora ou a mora surgiu na intercorrência do atraso do contratante. A situação se torna mais complexa ainda se lembrarmos que, em operações dessa natureza, o empreiteiro é geralmente um consórcio de empresas e não raramente um consórcio internacional. Outro aspecto importante é o fato das dúvidas e questionamentos que possam surgir de parte do fabricante do equipamento, em especial do fato de na montagem o empreiteiro não haver observado adequadamente as instruções do fabricante, alegando-se derivar disso os problemas de funcionamento ou eficiência operacional. Questões como essa não se pode esperar sejam resolvidas por disposições legais expressas. A solução dessas questões passa pela análise de uma multiplicidade de fatos e circunstâncias e da aplicação de diversas disposições legais e princípios de direito. Esta é a razão pela qual, à falta de uma acordo entre as partes, a controvérsia escapa fatalmente para o âmbito de uma arbitragem. O procedimento, no caso, é bastante complexo, exigindo perícias e análises minuciosas das circunstâncias e disposições contratuais, já que o atraso do contratante poderá se caracterizar, no contrato de compra de turbinas, como evento de força maior, e esse mesmo evento estar ou não integrado na força maior sob o contrato de empreitada. Por esse motivo, os financiadores têm uma preferência clara por contratos de empreitada global, já que deixariam bem clara as responsabilidades das partes.

13. Em obras das do porte que se está mencionando e cuidando neste Artigo, a empreitada global se caracteriza por ser de preço certo, data determinada de conclusão e chave na mão, caso em que o contratante recebe a obra em condições de operar a instalação. O fato de ser a obra a preço certo, os aumentos de preço dependerão de ajuste entre o contratante e o empreiteiro. Esses ajustes se materializam nas denominadas ordens de mudança, sejam elas propostas pelo empreiteiro ou pelo contratante. O conceito está previsto no art. 619. do novo Código, repetindo em parte as disposições do art. 1246. do Código de 1916 e incorporando avanços significativos da doutrina e da jurisprudência. Uma questão bastante discutida sempre foi a existência de instruções escritas do contratante. No novo Código, embora se mantenha o princípio geral, é ele relativizado. Passar-se-á a admitir o que poderíamos denominar de concordância tácita, caso o contratante esteja sempre presente à obra e não conteste as modificações introduzidas pelo empreiteiro e que venham a torná-la mais onerosa. O que é importante, neste caso, é reter o conceito e a autorização legal como fundamentos de cláusulas contratuais expressas. Em contratos de empreitada global do tipo EPC, as partes costumam regular minuciosamente as ordens de mudança, não abrindo espaço para que surjam dúvidas ou dificuldades de aferição do consentimento. A metodologia para a proposta dessas ordens de mudança e de sua aprovação engloba inclusive o estabelecimento de prazos para processamento. Quanto a isso, os riscos de consentimento tácito estariam afastados. No entanto, a questão que persiste é a da aprovação tácita, já que obras dessa natureza são acompanhadas de perto por empresa de engenharia para fiscalizar a execução in locu e todos os eventos estão lançados no denominado diário da obra. Na prática, muito embora a determinação de situações que exijam ordens de mudança estarão previstas no próprio diário e nas comunicações entre a fiscalização, o empreiteiro e o contratante, dada a natureza cogente do par. único do art. 619, parece recomendável que as partes estabeleçam contratualmente a obrigação do empreiteiro de sempre se submeter à metodologia prevista e que implique em alterações do preço, sobretudo nos casos de extrema urgência relativos à saúde, segurança de coisas e pessoas e de preservação do meio ambiente. Além disso, muitos contratos dessa natureza estabelecem a obrigação imposta ao empreiteiro de dar seqüência à alteração mesmo em que haja discordância quanto ao preço, sempre em prol da continuidade e conclusão tempestiva da obra. Neste caso, estaria afastada a aplicação do par. único como consentimento tácito, já que as partes estabelecem que a fixação do preço seja submetida a arbitragem.

14. A grande novidade e de maior impacto em contratos dessa natureza está contida no art. 618. do Código Civil e que altera substancialmente o entendimento da doutrina e jurisprudências à luz da situação vigente na legislação codificada de 1916. Trata-se da garantia do empreiteiro. No regime do Código de 1916, estabelecia-se que a garantia seria de 5 (cinco) anos e que a doutrina e jurisprudência passaram a denominar de garantia qüinqüenal. Ao longo do tempo, foi-se solidificando, a despeito de opiniões contrárias, a posição de que esse prazo de garantia poderia vir a ser reduzido pelas partes por ajuste contratual, inclusive ao nível de decisões judiciais, como ocorre em outros países, como é o caso da França. Com a sanção do novo Código Civil, no entanto, a situação modificou-se substancialmente. A nova lei estabelece que o prazo da garantia qüinqüenal passa a ser irredutível, pondo fim a essa discussão doutrinária e jurisprudencial. A norma do art. 618. é de ordem pública e tem caráter cogente, cuja linguagem é peremptória, tornando o prazo insuscetível de ser alterado pelas partes. Portanto, a partir da entrada em vigor do Código Civil, em janeiro de 2003, os contratos de empreitada global deverão prever obrigatoriamente a garantia qüinqüenal, sendo que qualquer outro prazo menor que se venha a estabelecer não prevalecerá em face da legislação aplicável.

15. Desnecessário dizer que a adoção dessa nova disposição legal terá impacto direto e imediato sobre os contratos EPC. Na prática, o que se tem visto é que as garantias não têm excedido o prazo médio de 24 meses, o que elevaria em três anos a responsabilidade dos empreiteiros. É bastante importante que se tenha em mente o motivo dessa garantia. O empreiteiro foi escolhido dentre profissionais habilitados para construir obra de grande porte e se obrigou a entregá-la em perfeitas condições de operação e isenta de quaisquer vícios e defeitos. Assim sendo, caso existam vícios e defeitos aparentes ou ocultos, a legislação dá a eles tratamento diferenciado; em caso de vícios aparentes, poderá o contratante rejeitar o recebimento da obra, quanto aos ocultos, fixa prazo para que o empreiteiro os corrija. O impacto decorre sobretudo em relação a custos associados à duração dessa garantia. Muito embora o Código Civil não contenha qualquer disposição quanto à obrigatoriedade do empreiteiro de oferecer caução ou outra garantia para assegurar a satisfação da garantia qüinqüenal, a prática vigente é a do melhor administrador de negócios, que deve cercar-se de meios seguros que permitam exigir o cumprimento da obrigação. Caso o empreiteiro deixe de cumprir a obrigação, poderia o contratante buscar terceiro que o fizesse, lançando mão da garantia para cobrir o custo associado. Por outro lado, caso a situação econômica do empreiteiro viesse a se deteriorar chegando inclusive à insolvência, teria o contratante acesso a uma garantia para honrar os pagamentos. Essa prática é aplicável a quaisquer períodos de duração da garantia do empreiteiro. Por outro lado, os empreiteiros normalmente preferem receber os fundos a que fazem jus, liberando-se cauções ou retenções de valores, dando aos contratantes em substituição garantias bancárias ou coberturas securitárias. O impacto da extensão do prazo é financeiro já que este custo adicional estará, de uma forma ou de outra, refletido no custo fixo do EPC.

16. Não se entenda como leviandade propugnar por um prazo legal que admita redução. É importante lembrar que a garantia qüinqüenal não surgiu aleatoriamente quanto à sua duração. Muito embora não se possa determinar a motivação para a escolha pelo período de 5 anos, certo é que isso deva ter ocorrido em função do prazo médio verificado para que o contratante possa se dar conta da existência de vícios ocultos. No direito francês, o prazo de responsabilidade é decenal, sendo que, ao final da década de 70, a legislação passou a exigir que essa obrigação estivesse coberta por seguro. A questão que permanece é saber se, em face do desenvolvimento da engenharia e das técnicas e tecnologia da construção, pode o contratante detectar vícios ocultos em prazo inferior a 5 anos ou, ainda, se mesmo se mantendo o período de 5 anos seria ele suficiente para que os vícios fossem detectados. Quanto à questão do seguro, é importante lembrar que o mercado brasileiro sofre limitações nessa área, inclusive quanto a montantes de resseguro. O estágio atual do mercado securitário brasileiro e os custos associados com a contratação de apólices para cobertura desses riscos não representam efeito neutralizador desses custos adicionais.

17. Mas a questão da garantia não se resume na construção. A letra do art. 618. do Código Civil estabelece que a garantia qüinqüenal irredutível se aplica à solidez e segurança do trabalho, assim em razão dos materiais como do solo. Analisemos, em primeiro lugar, a questão relativa ao solo. Estamos diante de uma inovação da lei codificada. No regime do Código de 1916, a denúncia da má condição do solo parecia eximir o empreiteiro da responsabilidade. Insista-se na expressão "parecia". Esta era a linguagem da lei, mas a doutrina, em vários casos, a interpretou como um absurdo a referida disposição legal, dizendo que denunciar não seria suficiente, devendo o empreiteiro recusar-se a realizar a obra se as condições do solo eram adversas ou inadequadas à construção e delas ele tivesse conhecimento. Vale lembrar que a determinação das condições adversas ou inadequadas necessita conhecimento técnico e suporte tecnológico, o que somente ele poderia determinar. Na nova lei, no entanto, eliminou-se a ressalva, valendo dizer que a responsabilidade permanece para o empreiteiro, a despeito de a haver denunciado. Como preconizado pela doutrina, na vigência da lei anterior, o comportamento a ser adotado pelo empreiteiro deverá ser o de recusar a missão de construir se puder determinar as circunstâncias inadequadas ou adversas e, a despeito de seus esforços, o contratante se recusar a tomar as medidas corretivas necessárias. Do contrário, aceitando construir, a despeito de saber dessas condições, estará ele assumindo a responsabilidade pela garantia. A pergunta que fica é como poderá ele assegurar a solidez e segurança da construção se o solo sobre o qual se erigiu a obra não era adequado ou estava afetado por condições adversas.

18. Para informação do leitor, em muitos casos e, em especial, de projetos de construção de usinas térmicas de cogeração adjacentes a complexos industriais destinadas a assegurar o suprimento de energia e vapor àquela indústria específica ou a um conjunto de indústrias e/ou complexo comercial, a empresa promotora do investimento assegura uma parcela de terreno em área maior de sua propriedade para a construção da usina. Não necessariamente essa cessão de área se faz por meio de venda e compra, mas utilizando outras modalidades prevista em lei, como o usufruto ou comodato. Com a vigência do novo Código Civil, no entanto, abre-se a possibilidade de, em situações como esta, se servirem as partes do instituto do direito de superfície, caso em que a empresa titular da usina térmica seria o superficiário. Se, do ponto de vista imobiliário, esta novidade traz a solução de vários problemas com que nos defrontamos em aplicar o usufruto ou o comodato, certo é que a questão da solidez assume, neste caso, contornos mais complexos. Na forma do par. único do art. 1369. do novo Código, o direito do superficiário não se estende, em princípio, ao de realização de obras no subsolo, a não ser que isso seja inerente ao objeto da concessão. Evidentemente que, em se destinando à construção de uma usina térmica, não se poderá afirmar que, no limite necessário à construção das fundações dos prédios que irão receber as turbinas e demais equipamentos, a obra no subsolo não estaria autorizada, já que é da essência da construção civil. Entretanto e na medida em que se trate de um terreno com condições adversas ou inadequadas, como mencionado na hipótese examinada e visando a eliminar a responsabilidade do empreiteiro e fazer valer a declaração deste de solidez e segurança da construção, a obra no subsolo poderá ser mais ampla do que o necessário para fixação das fundações ou poderá, inclusive, exigir que se estenda a parcelas do subsolo não relativas à extensão do direito de superfície. Portanto, parece razoável que, no instrumento de concessão, se insira disposição segundo a qual o proprietário não se oporá a obras no subsolo de seu terreno, e não apenas no subsolo relativo à superfície concedida, se essas obras se destinarem a adequar o solo às condições necessárias à solidez e segurança da construção.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

19. Outro aspecto muito relevante é o relativo à garantia qüinqüenal do empreiteiro em razão dos materiais empregados nas obras de grande porte. A linguagem do dispositivo da lei codificada é idêntica, neste ponto, à do Código de 1916. Evidentemente que quando se previu a hipótese, o legislador tinha em mente a construção de edifícios, pontes e viadutos, caso em que a expressão "materiais" seria de fácil compreensão e determinação. No contexto das empreitadas globais chave na mão a que nos referimos e, em especial, destinadas à construção de usinas térmicas e gasodutos, oleodutos e polidutos, a determinação de materiais não é tão simples como pode parecer. No que tange a parcelas de construção civil, tais como o ferro, areia, concreto e tubos, não vemos maior complexidade em serem os mesmos determinados como materiais para efeitos da lei. Na realidade, a própria doutrina, ao comentar a empreitada global por preço fixo, alegava que alterações de preço de componentes da obra poderiam fazer com que materiais de qualidade inferior ao especificado viessem a ser utilizados para manter as margens originais do empreiteiro. Muito embora seja esta posição contrária à responsabilidade profissional e censurável, a verdade é que a lei sempre buscou assegurar que a responsabilidade por materiais mitigasse esse risco.

20. Se levarmos em conta que as obras de grande porte na área de infra-estrutura são geralmente contratadas na forma de empreitada global chave na mão, certo é que será responsabilidade do empreiteiro o fornecimento de máquinas e equipamentos, tais como turbinas, compressores, caldeiras e equipamentos auxiliares. Serão estes materiais para fins do art. 618. do Código?. Admitindo-se que venham a ser definidos como tal, forçoso será reconhecer que a garantia qüinqüenal do empreiteiro se estenderia aos mesmos. Ocorre, no entanto, que, nesse casos, a prática adotada é o repasse da garantia dos fabricantes ao contratante. Os prazos de garantia, por seu turno, são de duração menor que os cinco anos previstos em lei e são contados a partir da data de realização dos testes, o que não coincide necessariamente com o prazo a partir do qual se conta a garantia legal. Poder-se-ia argumentar que a garantia contratual é independente da garantia legal. No entanto, a questão com que nos defrontamos é saber se o empreiteiro assumiria uma obrigação quando não estará ele coberto por garantia do fabricante. Parece bastante oneroso e desarrazoado impor ao empreiteiro essa obrigação. Por que haveria ele de assumi-la se o fabricante não a estende por esse prazo?

21. Em nosso entendimento, a despeito da letra da lei, equipamentos e máquinas não se enquadram no conceito de materiais. Certamente o legislador não tinha em mente a nova realidade de mercado ao redigir a disposição. No entanto, a despeito de se aplicar a lei a esses contratos, caberá à doutrina e à jurisprudência interpretar a extensão do dispositivo. É importante lembrar que os fabricantes desses equipamentos estabeleceram as garantias de desempenho dos equipamentos à luz de testes e da experiência que tenham acumulado na comercialização de seus equipamentos. Em geral, essas garantias são aceitas internacionalmente e extensivas ao mercado brasileiro. Portanto, entendemos que, a despeito da linguagem obscura da lei, obscuridade essa decorrente do fato de não terem sido levadas em conta as novas modalidades operacionais pelo legislador, não se deva interpretar como materiais os equipamentos e máquinas incorporados pelo empreiteiro ao projeto, sendo que permaneceria, a nosso ver, vigente a garantia do fornecedor, prevalecendo sobre a garantia qüinqüenal.

22. Pode-se, no entanto, alegar que esse entendimento é contrário à ordem pública e à norma cogente contida na lei. Sem entrar na discussão se o contratante é um "consumidor" ou não para fins do disposto na Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, o Código de Defesa do Consumidor, a realidade é que aquela lei estabeleceu prazos bens menores para a garantia a ser assegurada pelos fabricantes de equipamentos, nacionais ou estrangeiros. Ora, independentemente da posição de consumidor ou não, à vista da lei, certo é que o mesmo produto não poderá exigir maior prazo de garantia por ser adquirido por alguém que não é tido como consumidor. O bem é o mesmo e suas qualidades e especificações não se alteram. Assim sendo, entendemos que a realidade fática nos faz concluir que, sendo ou não considerados materiais, o prazo de garantia não pode ser maior do que o que tiver sido acordado pelo fabricante, ou melhor, a responsabilidade do empreiteiro estaria limitada à obrigação de repassar integralmente ao contratante as garantias do fornecedor e pelo prazo por ele acordado.

23. Alteração substancial se produziu em relação ao prazo concedido ao contratante para reclamar de vícios que surjam no prazo de garantia. Na vigência do Código de 1916, entendeu a jurisprudência, inclusive com posição sumulada (Súmula nº 194 do Superior Tribunal de Justiça), que o contratante teria o prazo de 20 anos a contar da data em que apareça o vício para reclamar do empreiteiro. No novo Código, no entanto, o prazo deixou de ser prescricional e passou a ser decadencial, e reduzido a 180 (cento e oitenta) dias da data em que o vício for detectado. A adoção desse prazo exíguo requer que o contratante esteja alerta para assegurar seus direitos contratuais e decorrentes de lei. Vale lembrar, no entanto, que, em contratos da natureza do examinado neste Artigo, as controvérsias que venham a surgir na execução do contrato são dirimidas por arbitragem, excluindo-se a apreciação pelo Poder Judiciário, na forma permitida pela legislação em vigor. Dessa forma, a disposição constante do par. único do art. 618. deverá ser interpretada de forma a fazer com que a arbitragem seja requerida pelo contratante no prazo legal, caso as partes não tenham chegado a um acordo em razão da adoção dos mecanismos de solução de controvérsias previstos nos contratos.

24. A introdução do princípio previsto no art. 620. do novo Código passa a ser, sem dúvida, questão primordial na negociação de contratos dessa natureza. Novamente aqui, a exemplo de outras disposições legais, o Código parece querer proteger o contratante, considerando-o hipossuficiente em face do empreiteiro. Essa disposição demonstra claramente que o legislador, em nenhum momento, levou em consideração a nova realidade dos contratos de empreitada e, em especial, os de grandes obras. Todos os que estejam envolvidos em operações dessa natureza conhecem bastante bem as longas e intermináveis negociações entre contratantes e empreiteiros para a determinação do valor da empreitada global chave na mão. Ademais, em muitos desses contratos, a fixação do preço está fundada em procedimento denominado "open book". Por aplicação desse procedimento, o dono da obra tem acesso aos custos e margens incorridos pelo empreiteiro e levados em consideração para a fixação do valor global da obra. A aplicação da disposição contida no art. 620. gerará, sem dúvida, instabilidade nas relações contratuais. É verdade que se trata de uma faculdade outorgada ao dono da obra, mas a redação do dispositivo é bastante frágil. Ocorrendo a hipótese de redução em relação a alguns itens, em determinado momento, e requerendo o contratante a revisão, a dúvida que fica da leitura é se a diferença apurada torna-se obrigatoriamente ressarcível ao contratante. Temos que ter em mente, no entanto, que, em contratos dessa natureza, o empreiteiro já corre o risco do aumento dos componentes que entraram na formação do preço, sem direito a qualquer aumento, a não ser que esse aumento se enquadre na definição da teoria da imprevisão, agora elevada à categoria legal, na forma do art. 478. e seguintes, sob o título de onerosidade excessiva. Do ponto de vista das empreitadas globais, parece que o melhor procedimento será a exigência da renúncia por parte do contratante a essa faculdade legal, sob pena de criarmos uma instabilidade tal que dará ela lugar ao desaparecimento desse tipo de contrato ou o tornará oneroso, na medida em que o empreiteiro buscará proteger-se, desde o início, dessas eventuais reduções. Agregue-se a isso, como mencionado, que o empreiteiro, em operações dessa natureza, é, na mais das vezes, um consórcio de empresas de que participam empresas internacionais, fornecedoras de bens e serviços que têm seus valores estabelecidos em moeda estrangeira. Na medida em que a moeda brasileira flutua livremente em face de moedas estrangeiras, caberia, ainda, determinar se reduções, em reais, decorrentes de apreciação da moeda brasileira reduziriam ou não os preços. Não seria justo que o consórcio se visse obrigado a reduzir preços em reais quando a obrigação em moeda estrangeira permanece inalterada. Por último, vale lembrar que contratos dessa natureza para os projetos considerados são contratos de longa duração. Na sistemática legal atual, a indexação inflacionária somente poderá ocorrer anualmente. Em suma, não há a menor dúvida de que a inserção desse princípio visa a proteger a hipossuficiência, o que não é o caso nas grandes obras.

25. Outro aspecto importante decorrente da sistemática da nova lei codificada é a possibilidade conferida ao empreiteiro de suspender a execução da obra à ocorrência das hipóteses previstas em lei. O grande problema se encontra no art. 625. (II) ao estabelecer que o empreiteiro poderá exercer essa faculdade "quando, no decorrer dos serviços, se manifestarem dificuldades imprevisíveis de execução, resultantes de causas geológicas ou hídricas, ou outras semelhantes, de modo que torne a empreitada excessivamente onerosa, e o dono da obra se opuser ao reajuste do preço inerente ao projeto por ele elaborado, observados os preços."

26. No mundo real de que estamos falando neste Artigo, não é raro que as hipóteses mencionadas na lei venham a ocorrer. É evidente que se o evento é imprevisível, a situação merece uma solução. Causas geológicas ou hídricas são menos complexas (e nunca diríamos mais fáceis) de solucionar. Passa a ser extremamente relevante que se definam, em contrato, os parâmetros para fixação das hipóteses. Certamente, na construção de uma usina hidrelétrica, as dificuldades hídricas imprevisíveis são de mais difícil definição, até porque o projeto é, por essência, um projeto hídrico. Mas a extensão da expressão causas hídricas poderá englobar a pluviometria excessiva. O excesso de chuva, na área da obra, autorizaria a suspensão pelo empreiteiro? Podemos imaginar duas situações: a primeira seria o estabelecimento de uma média pluviométrica, com base em dados oficiais, para determinada região da obra. Assim, se a chuva excedesse essa média, a faculdade poderia ser exercida. No entanto, obras dessa natureza ou se estendem por trechos bem longos, como é o caso de dutos em geral, ou as tarefas exercidas não são afetadas pela pluviometria excessiva. Tomemos, por exemplo, um gasoduto. No que tange ao assentamento dos tubos ao solo, a chuva excessiva é fator relevante, mas certamente não o será no que diz respeito à construção civil. O que importa, no contexto do contrato, é o impacto dessa suspensão no cumprimento dos prazos contratuais. Há que se regular o modo pelo qual o empreiteiro afetado por essas causas poderá invocá-las como eventos escusáveis para o atraso verificado. Por outro lado, o dispositivo poderá colocar o contratante na situação difícil de estar diante de uma suspensão ou aceitar o aumento do preço. Portanto, parece importante que se continue a detalhar no texto contratual o tratamento a ser adotado nessa hipóteses. Ademais, o uso da expressão "ou outras semelhantes" é muito perigosa. Sabemos todos que, em obras dessa natureza, não se pode determinar antecipadamente e com absoluta precisão a existência de sítios arqueológicos ou paleontológicos. Por outro lado, as questões ambientais assumiram tamanha proporção, no mundo atual, que obras de grande porte podem ser suspensas por decisões judiciais por longos períodos de tempo. O procedimento correto a se adotar, no que tange às hipóteses elencadas pela legislação, será o de regular minuciosamente no contrato o tratamento aplicável, inclusive determinando o que constituirá ou não evento de força maior. Essa regulamentação deverá existir e estar mencionada como vinculada à referida disposição legal e como forma de implementá-la, afastando-se dessa forma uma aplicação do texto amplo e não discriminado da lei.

27. Muito embora o art. 626. se refira, apenas e tão somente, à morte das partes, entendemos que, em se tratando de pessoas jurídicas, as partes normalmente a tratam como extintiva da relação contratual, aplicando-se as disposições constantes da Lei de Falências. Em caso de falência do contratante, o empreiteiro terá seu crédito classificado como um crédito com privilégio especial, na forma do disposto no art. 963. (IV) do novo Código Civil e do art. 102, par. 2º (I) da Lei de Falências.

28. A entrada em vigor do novo Código Civil, em janeiro de 2003, encontrará uma série de contratos em vigor e em fase de implementação e que se fundaram nas disposições constantes do Código de 1916. Ocorre, no entanto, que o tratamento dos direitos e obrigações constituídos na vigência da lei anterior poderão ser afetados pela entrada em vigor do novo Código Civil, em razão da disposição contida no art. 2035. e seu par. único do novo Código Civil. Na realidade, muito embora a nova legislação determine que a validade daqueles contratos reger-se-á pela legislação vigente à época de celebração dos mesmos, estatui ainda que os efeitos produzidos após a vigência do novo Código Civil estarão subordinados às disposições da nova legislação codificada. Parece-nos que esse tratamento de direito intertemporal se ajustaria melhor a arranjos contratuais de traço sucessivo e não ao universo de contratos e obrigações abrangidos pela linguagem da nova lei. De forma a evitar essa conseqüência, que poderá ser adversa aos interesses das partes signatárias, a nova lei ressalva aqueles contratos em que haja sido prevista determinada forma de execução, ou seja, de cumprimento das obrigações contratuais. De qualquer forma, nenhum ajuste prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, ou seja, aqueles estabelecidos pela nova legislação codificada.

29. Em geral, a nova legislação optou por tratar os efeitos dos contratos firmados sob a regência do Código de 1916 de acordo com os preceitos da nova lei. Isso poderá trazer conseqüências indesejadas para as operações em curso, cujos contratos se encontram firmados e em curso de implementação. Como mencionamos anteriormente, sempre e quando aludidos contratos venham a estar expostos a disposições legais diversas das que regeram a sua celebração, a cláusula de mudança de lei com as conseqüências nela previstas tornar-se-á aplicável. Nesse sentido, é bastante importante que se revejam os contratos em vigor e se determinem os efeitos decorrentes da aplicação deste dispositivo. Tendo em vista os interesses a proteger, talvez seja mais adequado uma revisão das disposições afetadas e que se busque, de imediato, uma forma de solução, lembrando, no entanto, que deverão ser observadas estritamente as disposições de ordem pública, sob pena de qualquer texto em contrário não poder prevalecer. Desnecessário enfatizar que será sempre melhor que se busque ajustar o contrato à nova lei do que enfrentar questões dessa natureza após a entrada em vigor das aludidas disposições.

30. Pareceu-nos importante, desde logo, analisar os EPCs à luz das novas disposições da legislação codificada relativamente à empreitada. É inegável que se tivermos que aplicar essas disposições, o conjunto de regras muito pouco se adequará à situação real desse tipo de contratos. Impor-se-á a nós a complexa tarefa de buscar na prática e na legislação extravagante disposições que se adeqüem à regência desse tipo contratual, estando certos, no entanto, que o resultado final será um marco contratual frágil em face da legislação codificada e inadequado à realidade econômica das respectivas operações, como, aliás, tivemos a oportunidade de demonstrar nos parágrafos acima.

31. Mas, no entanto, entendemos que a análise dos EPCs comporta outra ótica, distinta da empreitada pura e simples. Antes mesmo de embarcarmos na análise sob a nova ótica proposta, é importante que se deixe claro que não estamos buscando uma forma de nos afastarmos da empreitada, nesse novo marco, somente porque as disposições legais futuras não são convenientes. Essa não é a razão. Se assim fosse, estaríamos partindo para uma análise infundada e inaceitável do contrato, já que viciada por uma premissa equivocada do intérprete. Além disso, seria uma análise defeituosa e inconsistente com a prática à luz do Código Civil de 1916. Não seria a mudança das normas legais, tornando-as menos favoráveis às partes e ao modelo do contrato, que justificaria que abandonássemos um contrato típico, regulado em lei, substituindo-o por outro. Se o EPC era regido, à luz do Código Civil de 1916, pelas regras da empreitada, como então deixaria de sê-lo no marco do novo Código se o instituto é o mesmo?

32. No entanto, é importante que se constate que, em nenhum momento, na vigência do Código de 1916, deu-se a devida importância à análise da natureza mesma dos EPCs. Como se assemelham aos contratos de empreitada, nunca nos dedicamos a determinar a natureza mesma desses contratos. Contribuiu muito para isso o fato das regras legais e a subsequente construção da doutrina e jurisprudência reconhecerem flexibilidade às regras legais, inclusive ao não assumir a natureza cogente de determinadas regras.

33. Ocorre que, na realidade, os EPCs contemplam diversas relações jurídicas entre o contratante e o epcista. O epcista é empreiteiro na medida em que se obriga a construir uma obra de grande porte, o epcista será montador sempre e quando deva proceder à montagem e comissionamento da obra em si, o epcista será tratado como fornecedor de equipamentos em razão de ter o contrato como objeto o desenho, projeto, construção, fornecimento e montagem de equipamentos, comissionamento da obra e teste de desempenho, sendo que o contratante a receberá na modalidade chave na mão, ou seja, pronta para operá-la. O enquadramento dessa série complexa de papéis desempenhados pelo epcista no marco da empreitada é amesquinhar o escopo da relação jurídica existente entre este e o contratante. Equivaleria enquadrar o contrato num tipo legal com base na atividade mais preponderante no complexo de todas as atividades, criando-se uma distinção internamente ao contrato que não corresponde ao que existe na prática. Dessa forma, estaríamos ignorando que as obrigações assumidas pelas partes no EPC somente serão consideradas cumpridas quando o epcista tenha desempenhado seus diversos papéis, o que irá além do cumprimento das obrigações previstas na empreitada pura e simples. O que dizer então do repasse pelo epcista ao contratante das garantias outorgadas pelos fornecedores de equipamentos e máquinas? Esse repasse, em nenhum momento, é da natureza da empreitada e diz respeito à garantia intrínseca a um contrato de venda e compra de equipamentos.

34. O que ocorreu, na prática, é que qualquer EPC é, por si só, um arranjo contratual que traz em seu bojo todo o conjunto de regras destinadas a regular as relações entre as partes. Cada situação anormal ou atípica é minuciosamente regulada, assim como qualquer evento que, de qualquer forma, possa alterar a natureza de contrato com preço fixo, data certa, chave na mão. Em muitas oportunidades pudemos ouvir afirmações peremptórias de que, devido à sua origem anglo-saxã, os EPCs eram contratos com linguagem complexa e repetitiva do que a legislação já previra. Nesse julgamento, se fazia referência expressa ao marco legal da empreitada mais do que qualquer outra coisa. No entanto, embora de introdução recente em nosso mercado, o modelo dito complexo e repetitivo foi-se aos poucos se cristalizando nas diversas operações concretizadas ou em curso, sob a alegação de que, se assim não fosse, os financiadores não aceitariam participar do aporte de recursos para o projeto específico.

35. Sob a perspectiva de análise que ora estamos propondo, é bem melhor que tenhamos agido dessa forma, o que assegurará a consistência desse tipo de contrato, quer no marco legal atual, quer no futuro. E que ótica é esta em que se funda nossa proposta? Sem dúvida a ótica que sempre permeou a negociação e elaboração dos EPCs e que é a única que convém a este tipo de contrato, pontuado pela complexidade de relações jurídicas entre as mesmas partes, pelos diversos papéis que estas desempenham ao longo da vida do contrato e pela intervenção de terceiros, ainda que pela via da cessão de garantias, exonerando-se o epcista, como é o caso das máquinas e equipamentos.

36. Quando da análise do EPC sob a ótica da empreitada, enfatizamos que aludido contrato continha elementos distintos daqueles que a lei considera como essenciais para que esteja tipificada a empreitada. Portanto, a questão que se impõe nesta análise é determinar se o EPC seria, na realidade, um contrato atípico, na medida em que as suas características fundamentais não se enquadram no tipo previsto na legislação codificada.

37. Admitindo-se para raciocinar que o EPC seria um contrato atípico, resta saber como seria ele tratado à luz do novo Código Civil. Com a promulgação deste, o art. 425. cuida especificamente de contratos atípicos, permitindo às partes que estipulem essa modalidade contratual, com base na liberdade de contratar consagrada no art. 421, desde que as partes submetam esses contratos aos princípios de probidade e boa fé, na linguagem do art. 422. Muito embora essa faculdade tenha sido elevada à categoria legal, vale lembrar que, mesmo na vigência do Código Civil de 1916, a doutrina e jurisprudência jamais negaram-na às partes contratantes. A título exemplificativo, sublinhamos que determinados contratos típicos no novo Código Civil eram tratados como atípicos na vigência do Código Civil de 1916.

38. A existência de contratos atípicos, em nosso direito, visa atender ao dinamismo das relações em sociedade, especialmente as de natureza econômica. Não pode a legislação tipificar todos os tipos de contratos, especialmente porque, ao longo da vigência da lei, surgem relações jurídicas novas. Por outro lado, há que se ter em mente que o mundo jurídico não poderá ignorar a existência da realidade dos fatos, nem mesmo dos instrumentos que o regem. Certo é que, em se tratando de contratos típicos, como é o caso da empreitada, a regulação das relações entre contratante e empreiteiro está delineada pelas normas legais aplicáveis, bastando às partes regular as omissões eventuais e aspectos específicos da contratação em si. Nos contratos atípicos, no entanto, as partes deverão fazer constar do instrumento contratual respectivo o conjunto de normas que regerá a relação contratual, lembrando-se que em favor delas não operará a legislação codificada, salvo no que se referir a princípios gerais aplicáveis aos contratos.

39. Contratos atípicos não é novidade no mundo jurídico. O Direito Romano já reconhecia a existência desse tipo de relação contratual e classificava os contratos atípicos em vários tipos. No Brasil, a melhor doutrina1 nos fornece uma classificação ampla dos contratos atípicos. Dentre estes, vale ressaltar os contratos atípicos mistos categoria em que se inserem, a nosso ver, os EPCs, já que englobam obrigações das partes que são encontradas em mais de um contrato típico. No entanto, a correlação entre essas obrigações e respectivas contraprestações faz com que se crie um arranjo contratual diverso dos dois ou mais de que essas obrigações se originam, representando uma verdadeira fusão das disposições de ambos num todo unitário.

40. A preocupação em se determinar a natureza jurídica dos EPCs somente será válida, para os propósitos deste Artigo, se pudermos estabelecer o que muda para as obras de engenharia de grande porte, na área de infraestrutura, com a entrada em vigor do novo Código Civil. Se não pudermos demonstrar essa importância para o dia a dia dos projetos prioritários, teremos possivelmente agregado, apenas e tão somente, mais uma opinião ao mundo acadêmico, correndo o risco de vir a ser de menor relevo já que expoentes reconhecidos certamente dedicarão à análise muito maior conteúdo e conhecimento da perspectiva histórica.

41. Àqueles que se defrontam com estas questões, no exercício da profissão, e que estão obrigados a prestar a seus clientes assessoria e aconselhamento na forma de negociar os EPCs e se lançam à tarefa de determinar, alocar e mitigar riscos, será vital que possamos dar uma diretriz de como proceder nesses casos.

42. Entendemos que os EPCs são verdadeiramente contratos atípicos, a despeito de conterem disposições de contratos típicos, como o de empreitada e de venda e compra de equipamentos. Na prática, as disposições legais aplicáveis a esses contratos típicos se tornam imprestáveis para regular as relações decorrentes dos EPCs. Assim sendo, necessário será que, como já o são, os EPCs continuem a regular detalhadamente as relações entre epcista e contratante, lembrando-se, no entanto, que as disposições desses contratos não poderão violar a ordem pública, os bons costumes e os princípios gerais de direito. E outro não é o entendimento doutrina jurídica2, valendo transcrever o trecho a seguir que bem justifica essa preocupação.

"Pelo fato, porém, de ser inominado, não deixa de ter individualidade própria e inconfundível, a reclamar um tratamento jurídico adequado ao seu caráter ou à sua natureza. Os contratos nominados não enquadram, com efeito, toda a variedade de modos ou combinações de modos em que é suscetível de configurar-se a troca ou permuta de utilidades". Poder-se-ia cogitar qual a razão pela qual uma legislação codificada tão recente não leva em conta uma regulamentação dos EPCs, tal qual adotados por nós no Brasil, são contratos de origem anglo-saxã e que se destinam a uma modalidade específica de obras de grande porte. Por outro lado, o novo Código Civil foi elaborado nos anos 70 e, apesar de revisão recente de seu texto pelas Casas do Congresso Nacional, mantém, em linhas gerais, os institutos previstos no anteprojeto daquela época. Quanto a isto, a lição da doutrina é bastante esclarecedora, ao dizer que3 "a tábua legal das figuras contratuais é uma função da época ou dos usos e costumes predominantes ao tempo da promulgação da lei... pode dizer-se que há entre os homens mais modalidades de comércio jurídico ou que este comércio jurídico pode revestir formas ou apresentar modalidades inteiramente diversas das que constituem objeto do elenco ou da catalogação legal. E se assim não fora, por entre as malhas da lei se escoaria, sem possibilidade de ser captada pela regulamentação jurídica, grande número de negócios, que as transformações sociais e econômicas geram continuamente, impondo aos juristas a necessidade de configurá-los ou mediante os modelos legais, se suficientemente plásticos para se adaptar às novas modalidades, ou mediante o trabalho de construção de novas figuras jurídicas adequadas à natureza econômica própria ou específica dos negócios de que o legislador, preso aos preconceitos, aos usos e costumes da sua época, não podia cogitar."

43. Serão mesmo as regras contidas nos instrumentos contratuais, decorrentes da vontade das partes e inspiradas nas práticas da indústria e nos costumes que informam a sua formação, as que hão de ser aplicáveis à interpretação dos contratos inominados, como é o caso do contrato atípico misto, categoria em que se insere o EPC? Lembre-se que o art. 425. do novo Código Civil reconhece a existência dos contratos atípicos, mas não nos fornece qualquer regulamentação específica a respeito dos mesmos. A resposta nos vem clara da doutrina estrangeira4 ao estabelecer que "para determinar as regras aplicáveis, o juiz se inspirará na economia do contrato, nos usos, nas necessidades, nos negócios, na intenção das partes, implícita ou explícita, algumas vezes, também, nas regras aplicadas aos contratos vizinhos e invocados por analogia, sem que, porém, a analogia possa ser levada até á destruição da especificidade do contrato que se tem em mente regular. E isto nos leva a observar quão perigoso é o querer reduzir, a viva força, todos os contratos inominados aos diferentes tipos de contratos nominados, sinteticamente e teoricamente classificados. Procedendo por esta forma, corre-se o risco de impor de maneira muito lata ou muito geral o argumento da analogia, e de aplicar, indiferentemente, a certos contratos inominados (os especificamente autônomos) regras tiradas aos contratos nominados e que só foram editadas para estes contratos, e não para os outros. Impõe-se flexibilidade e discernimento. A mania das classificações rígidas e estereotipadas se condena, por si mesma, quando tem como resultado – como é quase sempre o caso– impedir a aplicação normal do Direito e, sobretudo, paralisar a sua evolução."

44. Nesse mesmo sentido, vale mencionar o esboço do Anteprojeto de Lei elaborado por Álvaro Villaça Azevedo5 para a regulamentação geral dos contratos atípicos, do qual ressaltamos os seguintes artigos:

"Art. 6º - Não são aplicáveis, ainda que por analogia, as normas que regulam especificamente os contratos típicos, mesmo que figurem, parcialmente, nas contratações atípicas mistas.

Parágrafo Único – As normas reguladoras dos contratos típicos, em geral, poderão ser aplicadas aos contratos atípicos, desde que não se desnature a natureza e a unidade da contratação atípica.

Art. 7º - O contrato atípico forma um todo uno e complexo, indivisível com todas suas cláusulas e condições".

Concluindo este longo Artigo, reiteramos que os EPCs sempre foram e continuarão sendo contratos atípicos com traços similares aos do contrato de empreitada, mas dele se afastando por constituírem uma relação una e monolítica, não podendo qualquer das obrigações ser segregada do contexto em que tais contratos são firmados. Dessa forma, a questão da garantia do epcista, p. ex., que, no contrato de empreitada, passa a ser de 5 (cinco) anos irredutíveis, poderá continuar a ser praticada, nos EPCs, pelos prazos usuais de mercado, sem que se caracterize uma violação à norma legal cogente aplicável à empreitada. Da mesma forma, entendemos que a garantia por desempenho de equipamentos continuará a observar os prazos outorgados pelos respectivos fabricantes, assim como poderão as partes estabelecer um preço certo, seja ele ou não fixado com base na metodologia do "open book", de vez que as alterações de preço, para mais ou para menos, seguirão sempre, apenas e tão somente, à metodologia prevista no próprio contrato.

Desnecessário enfatizar que, como tem ocorrido até agora, a função dos advogados ao redigir os EPCs é de grande responsabilidade, especialmente quando se trate de simular situações teóricas que dêem origem a soluções contratualmente previstas.

No mais, ficará a cargo dos especialistas avaliar e, se assim for o caso, contestar a adequação da análise e solução preconizadas neste Artigo. Mais uma vez, o que se pretendeu com esse exercício foi orientar tecnicamente a continuidade das operações ora em curso e de outras que estão por iniciar, evitando que a determinação de haver ocorrido uma mudança de lei leve à instabilidade e à insegurança no mundo dos negócios e no complexo universo das relações contratuais existentes, com prejuízos incalculáveis e que poderão frustrar o interesse público existente nessas obras, seja por aumento de custos, seja por alterações de prazo. Se tivermos atingido esse objetivo, o esforço terá sido compensado.


Notas

1 Azevedo, Álvaro Villaça in "Teoria Geral dos Contratos Típicos e Atípicos", São Paulo, Editora Atlas, 2002

2 Campos, Francisco in "Direito Civil", Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1956

3 Campos, Francisco in "Direito Civil", Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1956

4 De Page in "Droit Civil Belge" apud Campos, Francisco in "Direito Civil", Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1956

5 Azevedo, Álvaro Villaça in "Teoria Geral dos Contratos Típicos e Atípicos", São Paulo, Editora Atlas, 2002

Assuntos relacionados
Sobre o autor
José Emilio Nunes Pinto

Advogado em São Paulo do José Emilio Nunes Pinto Advogados

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PINTO, José Emilio Nunes. O contrato de EPC para construção de grandes obras de engenharia e o novo Código Civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. -488, 1 mar. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2806. Acesso em: 22 nov. 2024.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos