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Ali-babá e o crime de lavagem de dinheiro

01/03/2002 às 00:00
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CARLOS HEITOR CONY contou-nos em sua coluna a história do irmão de Ali-Babá, chamado Cassim:

"Todo mundo conhece a história de Ali-Babá. Numa deformação bem própria de nossa cultura, nós o associamos aos 40 ladrões como se ele fosse um deles. Na realidade ele roubou mesmo, só que roubou de ladrões e mereceu os cem anos de perdão de praxe. Mas todos nos esquecemos do irmão dele, que era rico, enquanto Ali-Babá era pobre. Chamava-se Cassim, Casimiro ou nome equivalente a isso, não importa. Esse irmão começou a invejar a fortuna que Ali-Babá trazia para casa. Acompanhou-o até a caverna dos ladrões, aprendeu a senha famosa (‘abre-te, sésamo!’), mas, lá dentro, depois de encher sacos e sacos com ouro e jóias, esqueceu-se da senha para fechá-la. Dizia: ‘Fecha-te, sesgo; fecha-te isso e aquilo’ – e nada acontecia. Os ladrões voltaram, viram o estrago, mataram e esquartejaram o irmão de Ali-Babá. Desde criança tenho pena do irmão dele. Costumo esquecer senhas, caminhos, nomes de pessoas e, sobretudo, números de telefone. Compreendo o drama que o tal Cassim ou Casimiro viveu. Outro dia, deu um troço no meu computador, queria fechá-lo, no desespero, a solução final foi desligá-lo da tomada e chamar um técnico. Recursos que o irmão de Ali-Babá não teve. A moral da história é óbvia: roubar é coisa fácil. E cada vez mais fácil. O difícil, às vezes, é esconder o roubo. Mas nem sempre. Os casos mais notórios da nossa vida pública repetem monotonamente a aflição de Cassim ou Casimiro tentando fechar a caverna do tesouro, mas se esquecendo da senha mágica. Mas nem todos são distraídos como eu e como o irmão de Ali-Babá. Num caderninho ou na agenda eletrônica, levam o nome salvador. Muitos conseguem entrar e sair. Ganham nas instâncias finais. Depois de saquearem a maravilhosa caverna do erário, alegam que enriqueceram na iniciativa privada." [1]

Na verdade [2], Cassim, irmão mais velho de Ali-Babá, casou-se com uma moça rica, filha de abastado mercador. Morto este, o casal herdou toda a herança. Cassim-Babá ficou rico [3]. Ali, ao contrário, casou-se com uma jovem pobre. Viviam mal, longe da cidade. Ali era lenhador e só possuía três burrinhos, com os quais levava lenha para vender na cidade [4].

Um dia, quando Ali-Babá estava cortando lenha perto de uma montanha, aproximaram-se numa grande poeira nada menos do que 40 ladrões [5]. Um deles, Cogiá Hussein, o chefe [6], aproximou-se da parede da montanha e gritou:

– "Abre-te, sésamo!"

Abriu-se uma porta na rocha por onde entraram os 40 ladrões, cada um carregando uma grande sacola. Minutos depois, todos saíram, agora com as sacolas vazias. E Cogiá outra vez gritou:

– "Fecha-te, sésamo!"

E a porta se fechou.

Ali desceu de uma árvore, onde havia se escondido, e gritou na direção da parede:

– "Open yourself, sésamo!"

E a porta, atualizada pela globalização, abriu-se. Na caverna, Ali encontrou um grande tesouro: jóias preciosas, dólares, bônus do Governo, precatórios, recibos bancários de depósitos no exterior, holerites, confissões de dívida, carnês premiados do Baú da Felicidade, moedas e taças de ouro e prata, tapetes persas fabricados no Mercosul etc. Uma fortuna incalculável...

Ali encheu uma sacola de moedas de ouro, abriu a porta da caverna com a senha mágica e gritou:

– "Close yourself, sésamo!"

E a porta se fechou. Em casa, Ali e sua mulher inventaram de contar quantas moedas havia na sacola. Para isso, ela pediu uma vasilha emprestada à esposa de Cassim. Esta pensou:

"– Eles são tão pobres! O que teriam para ser contado?" Resolveu colocar um pouco de sebo no interior da vasilha. Assim, alguma coisa nela ficaria grudada e saberiam do que se tratava.

Não deu outra: uma moeda de ouro ficou pregada no fundo da vasilha.

No dia seguinte, Cassim, que, embora rico, era muito invejoso, "apertou" Ali-Babá, que acabou revelando o segredo dos ladrões e as palavras mágicas.

Cassim não perdeu tempo. Arriou 10 mulas e 20 cestos e rumou para a montanha.

– "Abre-te, sésamo!", disse.

A porta se abriu e Cassim carregou as mulas com uma grande fortuna. Mas aconteceu que, na hora de sair, esqueceu-se das palavras mágicas.

– "Abre-te, rabanete [7]!", gritava.

– "Abre-te, beterraba! Abre-te, mostarda!" E nada de a porta se abrir.

Foi assim que Cassim, surpreendido com a boca na botija pelos 44 ladrões [8], acabou executado.


Creio que aí está a origem do crime de lavagem de capitais. Cony tem razão. Pelo que acontece por aí, não é tão difícil ficar rico ilicitamente. Difícil é esconder o produto do crime. Onde guardar milhões? Onde esconder apartamentos, edifícios e fazendas? Eis por que a criminalidade inventou a maneira de "lavar o dinheiro", obrigando o legislador a editar normas que incriminam o fato.

O Brasil já possui a sua Lei de Lavagem de Capitais, punindo como crime as condutas de "ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de crime" (Lei n. 9.613, de 3.3.1998).

De ver-se que se trata de uma lei tão mal feita que, se já existisse ao tempo dos irmãos Babá, Cassim jamais seria surpreendido pelos ladrões. Entre nós, para se entrar na caverna da impunidade da lavagem de dinheiro, nem é preciso conhecer a senha mágica. A porta já está entreaberta.

Ao "lavador", para safar-se da persecução penal, basta caminhar pelas brechas da lei. Vamos percorrer alguns dispositivos da Lei n. 9.613/98, indicando falhas (notas em itálico):

"Dos Crimes de ‘Lavagem’ ou Ocultação de Bens, Direitos e Valores

Art. 1.º Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de crime:

Nota: a infração antecedente deve ser crime. Tratando-se de bens provenientes de contravenção, como o jogo do bicho, não há delito de lavagem de capitais.

I – de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins;

II – de terrorismo;

Nota: não possuímos lei ordinária definindo o delito de terrorismo. Assim, se for introduzido no Brasil bem proveniente de terrorismo cometido no estrangeiro, não incide a Lei n. 9.613/98.

III – de contrabando ou tráfico de armas, munições ou material destinado à sua produção;

IV – de extorsão mediante seqüestro;

Nota: suponha-se que o dinheiro lavado provenha de crime de extorsão indireta (CP, art. 160). A lavagem não configura delito, tendo em vista que o inciso menciona extorsão mediante seqüestro (CP, art. 159).

V – contra a Administração Pública, inclusive a exigência, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, de qualquer vantagem, como condição ou preço para a prática ou omissão de atos administrativos;

Nota: e se a lavagem de capitais for cometida contra a administração pública de país estrangeiro? Não haverá delito, uma vez que o tipo se refere à administração pública brasileira.

VI – contra o sistema financeiro nacional;

Nota: e se a lavagem de dinheiro for praticada contra o sistema financeiro de país estrangeiro? Não existirá crime da Lei n. 9.613/98, tendo em vista que a figura típica faz referência ao sistema financeiro "nacional".

VII – praticado por organização criminosa:

Nota: não temos definição de "organização criminosa". No Brasil, as duas leis que tratam do crime organizado (Lei n. 9.034/95 e Lei n. 10.217/01) não conceituam esse elemento normativo. E o Brasil ainda não ratificou a Convenção da ONU sobre a Delinqüência Organizada Transnacional. Além disso, a Convenção só cuida das organizações criminosas internacionais.

Questões:

1.ª) e se o fato antecedente não constituir crime no estrangeiro?

Resposta: não haverá crime de lavagem de dinheiro, uma vez que, não sendo delito no exterior, a obtenção do objeto material é lícita. Logo, se introduzidos bens no Brasil, inexiste delito.

2.ª) e os crimes de sonegação fiscal?

Resposta: não estão incluídos no rol, que é taxativo.

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Pena – reclusão de três a dez anos e multa.

§ 1.º Incorre na mesma pena quem, para ocultar ou dissimular a utilização de bens, direitos ou valores provenientes de qualquer dos crimes antecedentes referidos neste artigo:

I – os converte em ativos lícitos;

II – os adquire, recebe, troca, negocia, dá ou recebe em garantia, guarda, tem em depósito, movimenta ou transfere;

III – importa ou exporta bens com valores não correspondentes aos verdadeiros.

§ 2.º Incorre, ainda, na mesma pena quem:

I – utiliza, na atividade econômica ou financeira, bens, direitos ou valores que sabe serem provenientes de qualquer dos crimes antecedentes referidos neste artigo;

II – participa de grupo, associação ou escritório tendo conhecimento de que sua atividade principal ou secundária é dirigida à prática de crimes previstos nesta Lei.

§ 3.º A tentativa é punida nos termos do parágrafo único do art. 14 do Código Penal.

Nota: a disposição é prescindível (CP, art. 14, II, e parágrafo único).

§ 4.º A pena será aumentada de um a dois terços, nos casos previstos nos incisos I a VI do caput deste artigo, se o crime for cometido de forma habitual ou por intermédio de organização criminosa.

CAPÍTULO II

Disposições Processuais Especiais

Art. 2.º O processo e julgamento dos crimes previstos nesta Lei:

I – obedecem às disposições relativas ao procedimento comum dos crimes punidos com reclusão, da competência do juiz singular;

II – independem do processo e julgamento dos crimes antecedentes referidos no artigo anterior, ainda que praticados em outro país;

III – são da competência da Justiça Federal:

a) quando praticados contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira, ou em detrimento de bens, serviços ou interesses da União, ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas;

b) quando o crime antecedente for de competência da Justiça Federal.

§ 1.º A denúncia será instruída com indícios suficientes da existência do crime antecedente, sendo puníveis os fatos previstos nesta Lei, ainda que desconhecido ou isento de pena o autor daquele crime.

§ 2.º No processo por crime previsto nesta Lei, não se aplica o disposto no art. 366 do Código de Processo Penal.

Nota: enquanto o § 2.º supra proíbe a aplicação do art. 366 do CPP, que disciplina a suspensão do processo criminal, observe que o § 3.º do art. 4.º a permite.

Art. 4.º O juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público, ou representação da autoridade policial, ouvido o Ministério Público em vinte e quatro horas, havendo indícios suficientes, poderá decretar, no curso do inquérito ou da ação penal, a apreensão ou o seqüestro de bens, direitos ou valores do acusado, ou existentes em seu nome, objeto dos crimes previstos nesta Lei, procedendo-se na forma dos arts. 125 a 144 do Decreto-Lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941 – Código de Processo Penal.

§ 1.º As medidas assecuratórias previstas neste artigo serão levantadas se a ação penal não for iniciada no prazo de cento e vinte dias, contados da data em que ficar concluída a diligência.

§ 2.º O juiz determinará a liberação dos bens, direitos e valores apreendidos ou seqüestrados quando comprovada a licitude de sua origem.

§ 3.º Nenhum pedido de restituição será conhecido sem o comparecimento pessoal do acusado, podendo o juiz determinar a prática de atos necessários à conservação de bens, direitos ou valores, nos casos do art. 366 do Código de Processo Penal."


Notas

1..O irmão de Ali-Babá, Folha de São Paulo, Seção Opinião, A2, 22.10.2001.

2..Vide Ali-Babá e os quarenta ladrões, adaptação de ÉDSON ROCHA BRAGA, São Paulo: Scipione, 2000, de onde extraímos as informações sobre os irmãos Babá.

3..Cassim tinha até escrava, chamada Mogiana.

4..Já devastavam as florestas.

5..Naquele tempo eles eram felizes. Só havia 40 ladrões. Hoje, temos 40 ladrões por quilômetro quadrado. Além dos corruptos.

6..Ao contrário do que se pensa, Ali-Babá não era ladrão. Os 40 ladrões eram 40 mesmo: 39 e o chefe, Cogiá Hussein. O nome da história leva a imaginar erroneamente que os ladrões eram 40, mais um, Ali Babá, o chefe.

7..Sésamo deriva do lat. sésamon, gergelim, planta originária do Oriente, cujos grãos são usados na culinária.

8..A criminalidade já havia aumentado.

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Sobre o autor
Damásio E. de Jesus

advogado em São Paulo, autor de diversas obras, presidente do Complexo Jurídico Damásio de Jesus

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JESUS, Damásio .. Ali-babá e o crime de lavagem de dinheiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 55, 1 mar. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2818. Acesso em: 26 abr. 2024.

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