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Bipartida ou tripartida? Breves considerações sobre a teoria adotada pelo Código Penal

11/06/2014 às 17:17
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O crime é composto tão-somente por fato típico e ilícito (ou antijurídico), sendo a culpabilidade tão somente um pressuposto para a aplicação da pena.

1. Introdução

Há um grande embate doutrinário no que diz respeito ao conceito analítico do crime. Muitas são as teorias existentes, porém, as duas correntes mais adotadas e defendidas são a Teoria Tripartida e a Teoria Bipartida, tendo, ambas, argumentos suficientemente fortes cunhados por renomados penalistas.

O objetivo do presente artigo é justamente o estudo da Teoria do Crime, considerada o alicerce do Direito Penal, vertente esta de onde fluem várias teorias, sobre as quais discorreremos no decorrer deste trabalho.


2. Correntes minoritárias

Antes de passarmos ao debate principal a que visamos neste artigo, abordaremos breve e superficialmente, apenas a título de conhecimento, duas teorias minoritárias que versam sobre o conceito analítico do crime, que são a Teoria Tetrapartida e a Teoria Pentapartida.

A primeira – defendida por Basileu Garcia, Claus Roxin, dentre outros – sustenta que o crime é todo fato típico, ilícito, culpável e punível.

A segunda – defendida principalmente por Franceso Carnelutti – adota uma forma diferente de ver o crime ao compará-lo ao negócio jurídico, dando-lhe características referentes a este, tais sejam: da capacidade, da legitimidade, da causa, da vontade e da forma.


3. Correntes Majoritárias

Agora, conhecendo as teorias minoritárias do crime, nunca adotadas pelo Código Penal brasileiro, podemos ir adiante para analisarmos as Teorias Bipartida e Tripartida do crime, que, como já dito anteriormente, são as majoritárias e as que mais causam polêmica e controvérsia referente ao assunto no âmbito penal.

3.1. Teoria Tripartida do Crime

Começaremos nossa exposição sobre a Teoria Tripartida com as palavras de Capez:

“A Teoria Naturalista ou Causal, mais conhecida como Teoria Clássica, concebida por Franz von Liszt, a qual teve em Ernest von Beling um de seus maiores defensores, dominou todo o século XIX, fortemente influenciada pelo positivismo jurídico. Para ela, o fato típico resultava de mera comparação entre a conduta objetivamente realizada e a descrição legal do crime, sem analisar qualquer aspecto de ordem interna, subjetiva. Sustentava que o dolo e a culpa sediavam-se na culpabilidade e não pertenciam ao tipo. Para os seus defensores, crime só pode ser fato típico, ilícito (antijurídico) e culpável, uma vez que, sendo o dolo e a culpa imprescindíveis para a sua existência e estando ambos na culpabilidade, por óbvio esta última se tornava necessária para integrar o conceito de infração penal. Todo penalista clássico, portanto, forçosamente precisa adotar a concepção tripartida, pois do contrário teria de admitir que o dolo e a culpa não pertenciam ao crime, o que seria juridicamente impossível de sustentar”.

Na época em que a Teoria Clássica, mencionada no trecho acima, vigorava, era imperioso defender a Teoria Tripartida do Crime, pois aquela era base desta. Contudo, com o finalismo de Hans Welsel, do qual trataremos mais adiante, o pensamento tripartido perdeu, inegavelmente, a sua força. Entretanto, continuou sendo defendido e, até os dias atuais, mantém-se como corrente majoritária.

Os principais adeptos da Teoria Tripartida são: Cezar Bitencourt, Edgard Magalhães Noronha, Francisco de Assis Toledo, Heleno Fragoso, Anibal Bruno, Frederico Marques, Nelson Hungria, Juarez Tavares, Guilherme Nucci, Paulo José da Costa Júnior, Luís Régis Prado, Rogério Greco, Fernando Galvão, Hans Wlezel, João Mestieri, David Teixeira de Azevedo, entre outros. Para ela, a constituição do crime se dá pelos seguintes elementos:

Fato Típico

Fato Ilícito (ou Antijurídico)

Fato Culpável

a) Conduta (Dolo ou Culpa)

b) Resultado

c) Nexo Causal

d) Tipicidade

Excludentes da ilicitude:

a) estado de necessidade;

b) legítima defesa;

c) estrito cumprimento de dever legal;

d) exercício regular de direito.

a) Imputabilidade

b) Potencial Consciência da Ilicitude

c) Exigibilidade de Condita Diversa

Como podemos visualizar, a Teoria Tripartida exige que, para que haja crime, o fato seja típico, ilícito e culpável, faltando um desses elementos o crime é afastado.

Para que não haja crime, o fato precisa ser: ou atípico; ou enquadrado em uma das hipóteses de exclusão da ilicitude (estado de necessidade; legítima defesa; estrito cumprimento de dever legal ou exercício regular de direito, CP, art. 23, incisos I, II e III); ou que seja cabível ao caso concreto alguma das excludentes de culpabilidade (inimputabilidade; potencial desconsciência da ilicitude; e inexigibilidade de conduta diversa).

3.2. Teoria Bipartida do Crime

Analisaremos agora a Teoria Bipartida. Seus principais adeptos são: Damásio de Jesus, Fernando Capez, Celso Delmanto, Renê Ariel Dotti, Julio Fabbrini Mirabete, Flavio Augusto Monteiro de Barros, José Frederico Marques, Renato Nalini Fabbrini, Maggiore, Cleber Masson, entre outros.

Esta teoria retira a culpabilidade do conceito de crime, pois se baseia na Teoria Finalista da Ação, formulada por Hans Welzel na Alemanha na década de 1930, que veio modificando a ideia de que o dolo e a culpa sediavam na culpabilidade, retirando-os deste contexto para integrá-los ao fato típico, mais precisamente na conduta. Logo, da seguinte forma se estrutura a Teoria Bipartida:

Fato Típico

Fato Ilícito (ou Antijurídico)

a) Conduta (Dolo ou Culpa)

b) Resultado

c) Nexo Causal

d) Tipicidade

Excludentes da ilicitude:

a) estado de necessidade;

b) legítima defesa;

c) estrito cumprimento de dever legal;

d) exercício regular de direito.

Por conta da importação do dolo e da culpa para o fato típico, a culpabilidade perdeu sua principal função, passando a exercer apenas um papel valorativo, servindo tão-somente como requisito para a aplicação da pena. Portanto, segundo o raciocínio bipartido, o crime só é afastado se o fato for atípico ou se sobre ele incidir alguma das excludentes de ilicitude.


4. Teoria Tripartida X Teoria Bipartida

Após vislumbrarmos as principais diferenças entre as Teorias Bipartida e Tripartida, vamos trabalhar analisando-as conjuntamente, baseados em exemplos concretos.

Seguindo o pensamento tripartido, mesmo que um inimputável pratique um fato típico e ilícito, ele não cometeu crime, pois se valerá de sua inimputabilidade para se escusar da culpabilidade, que é, segundo esta corrente, requisito necessário para a formação do crime. Porém, mesmo sem poder ser apenado, o inimputável poderá sofrer medida de segurança prevista no caput do art. 26 do Código Penal:

“Art. 26 - É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.”.

Destarte, socorre-nos Fernando Capez:

“Quando se fala na aplicação de medida de segurança, dois são os pressupostos: ausência de culpabilidade (o agente deve ser inimputável) + prática de crime (para internar alguém em um manicômio por determinação de um juiz criminal, é necessário antes provar que esse alguém cometeu um crime). Com isso, percebe-se que pode haver crime sem culpabilidade”.

Por esta ótica, mesmo não podendo o inimputável ser submetido a pena, por ser exonerado da culpabilidade, não deixa ele de ter cometido o crime, o que nos mostra que a teoria mais acertada é a bipartida, uma vez que afasta a culpabilidade dos requisitos indispensáveis à composição do crime.

Outrossim, analisando o Código Penal, podemos perceber nitidamente que ele adere à Teoria Bipartida, pois é bem claro ao especificar as ocasiões em que o crime é afastado. Senão vejamos:

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“Art. 1º Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal”.

No artigo supracitado, o Código Penal aduz que não existe crime quando o fato é formalmente atípico.

“Art. 23. Não há crime quando o agente pratica o fato:

I – em estado de necessidade;

II – em legítima defesa;

III – em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito”.

O artigo supramencionado faz referência às excludentes de ilicitude. Determina que nas hipóteses apontadas nos incisos I, II e III, a ilicitude é excluída, portanto, afastado o crime.

Diante disso, vemos que quando o nosso Código Penal quer afastar o crime ele expressamente o diz usando no início das frases o trecho “não há crime”.

Não podemos nos esquecer de ressaltar que essas duas hipóteses contidas nos artigos 1º e 23 são as únicas em que o referido diploma faz menção à exclusão do crime.

Caso diferente ocorre quando o Código Penal quer afastar a culpabilidade, pois utiliza a nomenclatura “é isento de pena”:

“Art. 26 - É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.”.

De forma semelhante também disciplina o art. 28, inciso II e parágrafo 1º do mesmo código dizendo que é isento de pena o agente que, por embriaguez completa, proveniente de caso fortuito ou força maior, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.

Observando os textos de lei acima transcritos, entendemos que o Código Penal não objetiva afastar o crime, composto por fato típico e ilícito, ditando, apenas, que certos casos têm que ser avaliados de forma distinta dos demais quanto à culpabilidade do agente e consequente punibilidade.

Vejamos o que diz o Código Penal brasileiro em seu art. 59 caput:

“Art. 59 - O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime:” (Grifo nosso).

A partir do texto de lei supracitado, notamos que o Código Penal coloca a culpabilidade como requisito de aplicação da pena e não como elemento formador do crime, fato que fica ainda mais nítido se observarmos a nomenclatura do capítulo em que se encontra o art. 59, qual seja, Capítulo III – DA APLICAÇÃO DA PENA.

Socorre-nos outra vez Capez, com um exemplo que facilita ainda mais nossa compreensão:

“Como lembra Damásio de Jesus, se a culpabilidade fosse elemento do crime, aquele que, dolosamente, adquirisse um produto de roubo cometido por um menor não cometeria receptação, pois se o menor não pratica crime, ante a ausência de culpabilidade, o receptador não teria adquirido um produto desse crime”.

Nesse diapasão, podemos destacar alguns pontos interessantes. Primeiramente cabe a nós pontuarmos que a culpabilidade não recai sobre o fato criminoso, mas sim sobre quem o praticou.

A fim de provarmos tal afirmação, usaremos o exemplo supracitado tecido por Capez.

Sendo menor o agente que praticou o roubo, e, por esta razão, considerado inimputável, não poderá ser culpado pelo fato delituoso que cometeu, contudo, sua ação de subtrair coisa alheia móvel, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa (CP, art. 157), não deixa de ser tipificada como crime, tendo em vista ser fato típico e antijurídico.

Até aqui, já se tem por certo que o menor, por se enquadrar em uma das excludentes de culpabilidade, não poderá sofrer pena. Porém, este exemplo ainda nos proporciona vislumbrar outros horizontes, outras situações.

Entrando um terceiro na história que, nessa ocasião, dolosamente adquire o produto do roubo efetuado pelo menor, comete ele o crime de receptação, previsto no art. 180 do Código Penal. É aqui onde poderemos consolidar ainda mais nossa ideia de que a culpabilidade incide no agente e não no fato criminoso.

Mesmo adquirindo produto de roubo praticado por menor, o agente não se exime do crime de receptação, pois sua conduta não está atrelada à inimputabilidade de quem praticou o roubo, e sim ao crime cometido por este. Se assim não fosse, o suposto receptador não seria enquadrado neste tipo penal, haja vista que o produto adquirido não teria advindo de um crime, qual seja, o roubo. Para que o terceiro que dolosamente adquiriu o produto do roubo cometa crime, é necessário que o menor também tenha cometido crime, pois não sendo verificada esta última afirmação, o objeto que o terceiro adquiriu, consequentemente, não seria produto de crime.

De acordo com a Teoria Tripartida, nesse exemplo, o menor não teria cometido crime, pois não pode ser culpado. Diante disso, como seria avaliada a conduta do terceiro que adquiriu o objeto subtraído? Seria ele absolvido? Beneficiado pela inimputabilidade do menor? Seria sua conduta considerada atípica? Seria isso justo? Cremos que não.

A resposta mais acertada para essas indagações é a ideia que queremos demonstrar com esse exemplo: a culpabilidade não recai sobre o fato criminoso, mas sim sobre quem o praticou, ou seja, a conduta do menor sim delituosa, porém, não será ele punido por se eximir da culpabilidade mediante excludente. Já o terceiro que dolosamente adquiriu o produto do roubo será sim culpado e, por conseguinte, punido, pois a não-culpabilidade do menor não influi em nada na configuração do crime de roubo e, por consequência, na do crime de receptação.

Destarte, pode-se depreender que a ausência de culpabilidade não desconfigura o crime, apenas afasta a punibilidade do agente.

Para elucidar, por fim, a diferença que há entre o afastamento do crime e a exclusão da culpabilidade (que, vale ressaltar, não afasta o crime), usaremos como exemplo o crime de homicídio, previsto no art. 121 do Código Penal, formulando três diferentes situações:

1) Para que seja configurado o crime de homicídio, basta que uma pessoa mate outra, sem, contudo, se encaixar nos casos previstos no art. 23 do CP que trata das excludentes de ilicitude. Até aqui, temos caracterizado um fato típico e antijurídico (ilícito), logo, um crime. 2) Entretanto, se uma pessoa matar outra por legítima defesa (CP, art. 23, inc. II), será o crime de homicídio afastado, pois a pessoa incorreu em uma das hipóteses de excludentes de ilicitude. 3) Se, no entanto, uma pessoa sem desenvolvimento mental completo matar outra, cometerá sim o crime de homicídio, pois praticou uma conduta típica e antijurídica (ilícita), porém não será punida por ser enquadrada em uma das excludentes de culpabilidade, qual seja, a inimputabilidade.


5. Conclusão

Diante de todo o exposto, ficou nítido que o crime é composto tão-somente por fato típico e ilícito (ou antijurídico), sendo a culpabilidade tão somente um pressuposto para a aplicação da pena. Portanto, somos aderentes ao pensamento bipartido.


6. Referências

CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal, volume 1, parte geral: (arts. 1º a 120) / Fernando Capez. — 15. ed. — São Paulo : Saraiva, 2011.

Código Penal Brasileiro. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm.

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Sobre a autora
Talyta de Lima Chaves

Acadêmica de Direito da Instituição União Educacional do Norte – UNINORTE.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CHAVES, Talyta Lima. Bipartida ou tripartida? Breves considerações sobre a teoria adotada pelo Código Penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3997, 11 jun. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/28195. Acesso em: 23 nov. 2024.

Mais informações

Colaboração de Leonardo Castro: professor de Direito Penal e de Direito Processual Penal da UNINORTE/AC. Autor de diversos artigos jurídicos. Coautor da obra “Comentários ao Projeto do Novo Código Penal – PLS 236/2012”, escrita em coautoria com Rogério Greco (Editora Impetus). Mantenedor do “Fórum Criminal”: www.forumcriminal.com.br.

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