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Como mover uma ação judicial contra a "Norma Técnica" do aborto expedida pelo Ministério da Saúde.

Um desafio jurídico

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01/04/2002 às 00:00
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7. A "fórmula" dos abortistas

Para resolver a questão da enfermeira, transformando o não punível em lícito, JOSÉ FREDERICO MARQUES parece ter "achado a fórmula". Diz ele, criticando MAGALHÃES NORONHA:

Parece-nos que não atentou bem o ilustre mestre para os precisos dizeres da lei. Se nela se dissesse que não se pune o médico que pratica o aborto necessário ou o aborto advindo de estupro, então sim, poderia falar-se em dirimente. O texto, no entanto, alude à não punição do fato típico: não se pune o aborto, é o que reza a norma legal. Ora, fato impunível é, por definição, fato que não constitui crime. [18]

DAMÁSIO EVANGELISTA DE JESUS repete, quase com as mesmas palavras, o argumento acima:

A disposição não contém causas de exclusão da culpabilidade, nem escusas absolutórias ou causas extintivas da punibilidade. Os dois incisos do artigo 128 contém causas de exclusão de antijuridicidade. Note-se que o CP diz que "não se pune o aborto". Fato impunível, em matéria penal, é fato lícito. Assim, na hipótese de incidência de um dos casos do artigo 128, não há crime por exclusão de ilicitude. Haveria causa pessoal de exclusão de pena somente se o CP dissesse "não se pune o médico". [19]

Eureka! Está encontrada a fórmula! O artigo 128 diz que não se pune o aborto praticado por médico, em vez de dizer que não se pune o médico que pratica o aborto. Logo, nada mais lógico (?) que concluir que em tais casos o aborto é "legal".

Mas afinal, que diferença semântica há entre punir o aborto praticado pelo médico e punir o médico que pratica o aborto? Nenhuma. Absolutamente nenhuma. Podemos imaginar um médico cumprindo pena na cadeia por ter cometido aborto. Mas ninguém consegue imaginar o aborto "atrás das grades", sofrendo punição. Punir o crime e punir o agente do crime são coisas exatamente iguais. A diferença é puramente verbal.


8. "Fato impunível, em matéria penal, é fato lícito"?

Enquanto JOSÉ FREDERICO MARQUES diz que "fato impunível é, por definição, fato que não constitui crime", DAMÁSIO EVANGELISTA DE JESUS vai além: "Fato impunível, em matéria penal, é fato lícito". Ambos os penalistas, porém, defendem a mesma tese: há no ordenamento jurídico brasileiro o direito subjetivo de abortar nas hipóteses do art. 128 CP.

Ocorre que nenhum dos doutrinadores apresenta a justificação de sua fórmula, como se ela fosse evidente por si mesma. Uma veemente crítica a isso é apresentada por WALTER MORAES:

Qual a base objetiva dessa linha de argumentação?

Que sustento técnico-penal ou que fundamento hermenêutico nos autorizaria reconhecer que a lei, quando dispõe que não se pune o agente está a reprimir a pena e quando dispõe que não se pune o fato está a excluir a ilicitude?

A verdade é que a imperfeita uniformidade e as imprecisões da nomenclatura legal são fatores desfavoráveis à interpretação. Pelo contrário, muitas vezes alimentam entendimentos contraditórios, perplexidades e discussões sem fim.

Considerando apenas os elementos punibilidade e pena, observe-se como o Código se exprime: "não se pune" a tentativa impossível (art.17); "ninguém pode ser punido" (agente) por crime culposo a não ser nos casos expressos (art. 18, parágrafo único); é "isento de pena" autor de crime putativo (art. 70, § 1º); "não é punível" quem age sob coação irresistível ou em obediência a ordem não manifestamente ilegal (art. 22), etc.

Não são, todas estas, hipóteses onde faltam componentes da ilicitude objetiva ou do elemento subjetivo do crime?

Franqueada ao intérprete essa versatilidade de soluções, os arrazoados penais perdem às vezes muito de sua seriedade, assemelhando-se mais a um engenhoso arranjo de palavras, tanto melhor sucedido quanto mais habilidade verbal tenha o escritor, do que a uma verdadeira argumentação jurídica [20].

O ilustre WALTER MORAES tem razão. Tal arrazoado não passa de um jogo de palavras, o que ficará ainda mais claro se observarmos outros dispositivos penais comentados por seus autores. Vejamos:

JOSÉ FREDERICO MARQUES diz, acertadamente, que o suicídio é um ato ilícito. Não obstante, diz que tal ato, que é ilícito, é impunível:

Quer parecer-nos, porém, que a ordem jurídica considera o suicídio como ato ilícito, embora não punível. A outra conclusão não leva o que dispõe o art. 146, §3º, nº II, do Código Penal, que considera lícita a coação exercida para impedir suicídio, justamente por ser ato destinado a evitar a prática de uma conduta ilícita.

(...)

Por considerar o suicídio como um ato ilícito, incrimina o legislador os atos de cooperação, ajuda e incitamento desse atentado contra a vida. Não tutela o Código Penal à vida humana, de maneira direta, no tocante aos atentados de seu respectivo titular, e dessa forma, considera o suicídio como ilícito não punível, mas se o tem por antijurídico, admissível é que procure reprimir, com sanções que lhe são peculiares, àquele que incita outrem a eliminar a própria existência, ou lhe fornece auxílio e colaboração para cometer tal violação à ordem jurídica. [21]

Ora, segundo a fórmula "fato impunível, em matéria penal, é fato lícito" o suicídio deveria ser lícito. No entanto, FREDERICO MARQUES considera-o um "ilícito não punível", sem vislumbrar qualquer contradição interna. Note-se que o penalista não teve sequer a preocupação de dizer que o suicida (o agente) fica isento de pena; disse que o suicídio (o fato) é impunível. Nem por isso, considera-o legítimo, como o faz com o aborto.

DAMÁSIO EVANGELISTA DE JESUS comenta o art. 142 CP, cujo inciso I assim se exprime:

"Não constituem injúria ou difamação punível:

I - a ofensa irrogada em juízo, na discussão da causa, pela parte ou por seu procurador"

No caso, o que não é punível é o fato (a ofensa). Logo, tal ofensa deveria ser lícita. E realmente é assim que o doutrinador a considera:

Não é ilícita (grifei) a injúria ou difamação praticada em juízo, na discussão da causa, pela parte ou por seu procurador. Pode ser oral (alegações em audiência, debates no julgamento do Júri etc.) ou escrita (petição, alegações, razões de recurso etc.) É necessário que a ofensa seja praticada em juízo, na discussão da causa contenciosa, voluntária ou administrativa. [22]

Ora, na expressão "não é ilícita" o advérbio negativo "não" cancela-se com o prefixo negativo "i". Ou seja, "não é ilícita" = "é lícita". DAMÁSIO defende então um tipo particular de ofensa à honra que seria lícita ou legal. Teria então o advogado o direito de, no exercício de sua profissão, ofender a honra alheia.

Mas para que uma conduta seja lícita, não basta que seja impunível. É preciso que não viole qualquer lei vigente. É verdade que o art. 142, que trata de injúria e difamação impuníveis, traz como rubrica "Exclusão do crime". Mas será que basta que algo não seja crime para que seja lícito? Vejamos o que diz WALTER MORAES:

No caso da injúria irrogada em juízo, a lei que proíbe às partes e advogados de "empregar expressões injuriosas" (Código de Processo Civil, art.15), não pode estar ao mesmo tempo autorizando lançá-las as mesmas partes e advogados. Desaparece a punibilidade (o crime), permanece o ilícito. [23]


9. E a constitucionalidade?

Embora haja a tendência e a necessidade de especialização crescente do Direito, convém sempre lembrar que qualquer ramo do Direito Positivo subordina-se ao Direito Constitucional, e este ao Direito Natural.

Um engenheiro não poderia especializar-se de tal modo em coberturas, que se esquecesse das vigas e dos pilares que lhes servem de apoio. Nem poderia projetar estes últimos sem levar em conta a fundação que os sustenta.

Assim, um especialista em Direito Penal deve sempre ter em mente que o Código Penal não pode contrariar a Carta Magna. No exemplo anterior, o art. 142 CP pode declarar que determinados tipos de injúria ou difamação sejam impuníveis. Pode mesmo declarar que não constituem crime. Mas não pode dar a um cidadão, como o advogado, o "direito" de cometê-las, sob pena de violar o direito constitucional à honra, expresso no art. 5º inciso X da Constituição Federal:

"São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação".

Também o inciso V do art. 5º refere-se à "indenização por dano material, moral ou a imagem". Em outras palavras, embora o advogado que ofenda em juízo a honra de uma das partes, não possa ser processado criminalmente, está todavia sujeito a uma ação indenizatória por danos morais. Não há — nem poderia haver — no direito positivo brasileiro, a faculdade de ofender a honra de outrem ou de causar danos morais a outrem.

O que vale para o direito constitucional à honra, vale com maior razão (a fortiori) para o direito constitucional à vida. Eis o que diz RICARDO DIP contra os defensores da tese de que há aborto "legal" no Brasil:

Nada obstante a patente autoridade desses referidos mestres do Direito penal pátrio, as hipóteses previstas em ambos os itens do art. 128, Código Penal, ou configuram isenções de pena - no limite, dirimentes (causas de exclusão da culpabilidade ou da punibilidade) -, ou se fulminam de manifesta inconstitucionalidade. [24]

Não custa recordar aqui os dispositivos constitucionais que seriam violados caso se quisesse ver no art. 128 CP a concessão de algum "direito" ao aborto:

Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade...

Art. 227 - É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida...

Há quem discorde da rigidez dos direitos e garantias individuais listados no Título II de nossa Constituição Federal. Segundo tais autores, a Carta Magna apenas ditaria o espírito da ordem jurídica, mas admitiria exceções abertas pela legislação infraconstitucional. Assim — argumentam — se o direito à liberdade fosse rígido, ninguém poderia ser preso; se o direito à propriedade fosse rígido, ninguém poderia sofrer pena de multa; se o direito à vida fosse rígido, ninguém poderia matar em legítima defesa...

Note-se, porém, que o Estado não tem o direito de privar alguém arbitrariamente de seu direito à liberdade de locomoção. Um criminoso pode ser preso com justiça, mas porque, no ato de seu crime, perdeu, ao menos de modo temporário, a amplitude do exercício de seu direito à liberdade.

Também não pode o Estado, a seu talante, extorquir os bens do cidadão. Um motorista pode, com justiça, ser obrigado a pagar um multa em decorrência de uma infração ao Código de Trânsito. Mas porque, no e pelo ato da infração, se submete a uma restrição efetiva ao direito de propriedade daquela quantia.

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Um cidadão pode matar um agressor injusto em legítima defesa. Mas isso porque o agressor, titular do direito à vida, tem limites ao exercício desse direito, limites que desbordou no ato de sua agressão. Mesmo assim, o valor da vida é tamanho que, ao defender-se, o agredido deve usar "moderadamente dos meios necessários"(art. 25 CP). Ou seja, deve, sempre que possível, poupar a vida do agressor.

Vale a pena aqui citar mais uma vez WALTER MORAES:

Mas — indagariam — o direito natural não reconhece nunca uma possibilidade de matar legitimamente?

Sim. Reconhece.

Para o direito natural, p. ex., não é ilícito uma pessoa matar em legítima defesa da própria vida; desde que a repulsa letal seja rigorosamente necessária, moderada e proporcional à agressão: moderamen inculpatae tutelae vitae.

Por fundamento algo assemelhado, o direito natural não reprova também, em princípio, a pena de morte, se bem que com muitos resguardos quanto às condições concretas de tal pena e quanto ao meio e momento social.

Mas o direito natural não reconhece, nunca, direito de matar.

A morte em defesa legítima (para ilustrar) é um princípio de direito à vida, e não à morte. Permitir defesa legítima com morte é confirmar o direito à vida do defensor.

Seria bom perceber a distinção.

Uma coisa que a lei natural jamais tolera — jamais — é matar o inocente; como é o caso do aborto: que tem a ver o filho com o fato de ter sido concebido através de estupro? [25]

Ao assegurar a inviolabilidade do direito à vida, a Constituição está dizendo que ninguém pode ser morto arbitrariamente. Para se dizer que tal garantia constitucional não se aplica ao nascituro concebido em um estupro seria preciso provar:

— ou que o nascituro não é titular de direitos, nem sequer do direito à vida;

— ou que ele, antes titular do direito à vida, perdeu esse direito em virtude de um ato culpável.

Nenhuma dessas hipóteses se verifica. O Código Civil diz explicitamente que "a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro"(art. 4º). Logo, o nascituro é titular de direitos (a começar pelo direito à vida, sem o qual nenhum dos demais teria consistência).

Além disso, o nascituro não é capaz de praticar atos culpáveis (por exemplo, uma agressão injusta) que lhe tire o direito à vida. Das três pessoas envolvidas no crime do estupro — o estuprador, a mulher estuprada, a criança concebida — certamente não se poderá negar a absoluta inocência da última. A provocação de sua morte é uma injustiça monstruosa, cuja arbitrariedade fere frontalmente os dispositivos constitucionais que protegem a vida.

Há ainda um outro dispositivo que é violado. Trata-se de um princípio consagrado em nossa Constituição de que "nenhuma pena passará da pessoa do condenado" (art. 5º - inciso XLV). O pai da criança não sofrerá mais do que dez anos de reclusão, que é a pena máxima para o estupro (art. 213 CP). Mas isso, só depois de um julgamento, e com amplo direito de defesa. Ao condenar sumariamente o bebê à morte, a pena não apenas passa do pai para o filho, mas é aumentada: de pena de reclusão para pena de morte!

Em suma, o Código Penal enquanto legislação infraconstitucional, pode, em determinadas circunstâncias, deixar de aplicar a pena a um delito contra a vida. Poderia até declarar que tal delito não constitui crime. Mas não está em seu poder dizer que é lícito o atentado direto contra a vida de um inocente. O dia em que uma lei ordinária puder fazer exceção aos direitos fundamentais assegurados na Constituição, terá chegado a hora de jogar esta última no cesto de lixo.

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Sobre o autor
Luiz Carlos Lodi da Cruz

Sacerdote. Presidente do Pró-Vida de Anápolis. Advogado. Estudante de Licenciatura em Bioética no Pontifício Ateneu Regina Apostolorum - Roma

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CRUZ, Luiz Carlos Lodi. Como mover uma ação judicial contra a "Norma Técnica" do aborto expedida pelo Ministério da Saúde.: Um desafio jurídico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 56, 1 abr. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2838. Acesso em: 20 abr. 2024.

Mais informações

Texto redigido antes da saída de José Serra do Ministério da Saúde.

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