A “Teoria da Pena: fundamentos políticos e aplicação judicial” a partir de Juarez Cirino dos Santos

14/05/2014 às 11:31
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Trata-se sobre a aplicação de uma política penal pautada na Teoria da Pena de forma a criticar o instrumento punitivo existente na sociedade brasileira

Ø  Política criminal e direito penal

Juarez Cirino principia este tópico diferenciando política criminal – programa oficial de controle social do crime e da criminalidade – de direito penal – sistema de normas que define crimes, comina penas e estabelece os princípios de sua aplicação. Aponta que, no Brasil e em países periféricos, ocorre a exclusão de uma série de políticas públicas – como escolarização, moradia e saúde – no que tange à política criminal no Estado. Assim, na ausência de programas oficiais que catalisem alterações nas condições sociais adversas de marginalizados, a política criminal reduz-se à mera política penal instituída pelo Código Penal e leis complementares.

Sabe-se que a política penal realizada pelo Direito Penal pauta-se na teoria da pena, de tal forma que funções são atribuídas à pena criminal como principal instrumento para o controle oficial do crime e da criminalidade. No entanto, as funções atribuídas pelo discurso oficial não exaurem as funções da pena, sendo meramente as chamadas funções declaradas ou manifestas da ideologia jurídica oficial. Por sua vez, há, ainda, as funções reais ou latentes que são objeto de estudo da teoria criminológica da pena. Assinala-se, pois, no estudo de Política Criminal e Direito Penal um antagonismo entre o discurso penal e a realidade da pena, ambos diametralmente opostos.

  • O discurso oficial da teoria jurídica da pena

 

A pena como retribuição da culpabilidade

 

Versa sobre uma espécie de característica do Direito Penal clássico de impor um mal justo contra o mal injusto do crime, a fim de realizar justiça ou restabelecer o Direito. Encara-se a pena como compensação de culpabilidade, atualizando o impulso de vingança do ser humano.

Nesse sentido, instaura-se a sobrevivência histórica da pena retributiva – a mais antiga e popular função atribuída à pena criminal. Para a tradição religiosa judaico-cristã ocidental apresentaria uma imagem retributivo-vingativa da justiça divina; a filosofia idealista ocidental, por sua vez, tem em Kant a justiça retributiva como lei inviolável, imperativo categórico e, em Hegel, o crime como negação do direito e a pena como negação da negação, isto é, reafirmação do direito. Por fim, o discurso retributivo se baseia no princípio da retribuição da lei penal, segundo o qual o legislador determina ao juiz aplicar a pena conforme necessária e suficiente para reprovação do crime (art. 59,CP).

Os adeptos da prevenção especial criticam o discurso retributivo da pena criminal apontando que retribuir enquanto forma de compensar um mal (o crime) com outro mal (a pena) constitui uma crença/um ato de fé, o que não é democrático nem científico. Já que num Estado Democrático de Direito o poder é exercido em nome de um povo, não de um Deus, além do que o Direito Penal não deve objetivar vinganças, mas sim a proteção de bens jurídicos. Por fim, não é científico já que a retribuição do crime pressupõe a liberdade de vontade do ser humano. Tem-se, pois, que a retribuição se fundamenta em algo indemonstrável: o mito da liberdade pressuposto na culpabilidade do autor.

  • A pena como prevenção especial

 

Predomina no Direito Penal dos séculos XIX e XX a função de prevenção especial da pena criminal enquanto atribuição legal dos sujeitos da aplicação e da execução penal. Isto é, a prevenção especial será, primeiramente, definida por um juiz quando da aplicação da pena por meio de uma sentença individualizada; sendo, a posteriori, realizada por técnicos da execução da pena criminal.

A prevenção especial negativa de segurança social trata-se da incapacitação do preso para praticar novos crimes contra a coletividade social durante a execução da pena e se dá via neutralização do criminoso. A prevenção especial positiva de correção, por outro lado, representa a ressocialização do criminoso durante a execução da pena.

Tendo em vista que a privação de liberdade do condenado produziria a própria segurança social, tende-se a criticar a prevenção especial positiva já que programas de ressocialização devem respeitar a autonomia do preso. Isto é, não cabe ao Estado a prerrogativa de melhorar pessoas segundo critérios morais próprios.

  • A pena como prevenção geral

Em sua dimensão negativa, a prevenção geral representa um desestímulo do Estado para que pessoas pratiquem crimes pela ameaça da pena. Partem críticas, porém, dos que afirmam que não seria a gravidade da pena, mas a certeza da punição que desestimularia o autor de praticar penas. Além disso, a falta de critério limitador da pena transforma a prevenção geral negativa em verdadeiro terrorismo estatal, violando por vezes a dignidade da pessoa humana, já que se trabalha com o aumento do sofrimento dos acusados reais para desestimular o comportamento criminoso em acusados potenciais.

Dirigida a todos os seres humanos, a função positiva de prevenção geral representaria confiança na norma, fidelidade jurídica pelo reconhecimento da pena como efeito da contradição da norma e a aceitação das conseqüências respectivas pela conexão do comportamento criminoso com o dever de suportar a pena.

  • As teorias unificadas: a pena como retribuição e prevenção

No intuito de superar deficiências individuais de cada teoria, opta-se pela fusão das funções declaradas ou manifestas de retribuição, de prevenção geral e de prevenção especial da pena criminal. As teorias unificadas atualmente predominam na legislação, na jurisprudência e na literatura penal ocidental. No Brasil, o Código Penal consagra as teorias unificadas ao determinar a aplicação da pena “conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime” (art. 59, CP). Isto é, a reprovação representa a retribuição da culpabilidade; a prevenção do crime, por sua vez, abrange a prevenção especial e a prevenção geral.

O discurso crítico da teoria criminológica da pena

Neste discurso, sobressaem-se dois diferentes métodos: teoria negativa/agnóstica da pena – dicotomia estado de direito/estado de polícia – teoria materialista/dialética da pena – distinção entre funções reais e funções ilusórias da ideologia penal em sociedades capitalistas.

A crítica negativa/agnóstica da pena criminal

Fundamenta-se na relação de exclusão recíproca entre os modelos reais de estado de polícia e de estado de direito. Marcado pelo exercício de poder vertical e autoritário e pela distribuição de justiça substancialista de grupos ou classes sociais, o modelo ideal de estado de polícia suprime conflitos humanos via funções manifestas positivas de retribuição e prevenção da pena criminal, conforme vontade hegemônica do grupo ou classe social no poder.

O poder horizontal/democrático e a distribuição de justiça procedimental da maioria, por outro lado, caracteriza o modelo ideal do estado de direito, no qual conflitos humanos resolvem-se mediante regras democráticas estabelecidas, reduzindo-se ou limitando o poder punitivo do estado de polícia.

A teoria negativa/agnóstica da pena busca ampliar a segurança jurídica de todos os habitantes reduzindo o poder punitivo do estado de polícia e ampliando o correspondente do estado de direito, reforçando o poder de decisão de agências jurídicas. Se a teoria negativa/agnóstica trabalha com a rejeição das funções declaradas ou manifestas atribuídas a pena pelo discurso oficial, estas são assumidas pela teoria materialista/dialética da pena, de tal forma que a teoria agnóstica renuncia a cognição das funções reais ou latentes do sistema penal, rompendo com a tradição histórica da Criminologia Crítica.

  • A crítica materialista/dialética da pena criminal

A pena como retribuição equivalente do crime

A teoria criminológica materialista/dialética lida com a emergência histórica da retribuição enquanto fenômeno sócio-estrutural específico das sociedades capitalistas: a função de retribuição equivalente da pena corresponderia, pois, aos fundamentos materiais e ideológicos de sociedades fundadas na relação capital/trabalho assalariado. A explicação materialista da retribuição equivalente da pena criminal fundamenta-se, por exemplo, na tese de que todo sistema de produção tende a descobrrir a punição que corresponde a suas relações produtivas, demonstrando a relação mercado de trabalho/sistema de púnica, de acordo com a seguinte lógica: havendo força de trabalho insuficiente, o sistema penal adota métodos punitivos que preservem a mão-de-obra; sendo excessiva, por outro lado, há a adoção de métodos punitivos de destruição da força de trabalho.

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De tal forma que a retribuição equivalente é instituída sob a forma de pena privativa de liberdade, enquanto valor de troca do crime medido pelo tempo de liberdade suprimida – nas sociedades capitalistas, o valor de troca do crime está ligada ao critério geral do valor de mercadoria. Há também a concepção da pena como retribuição equivalente da sociedade capitalista no que diz respeito a um valor de troca que realiza o princípio da igualdade do Direito, à medida que haveria a troca de força de trabalho por equivalente salarial no mercado, reduzindo riqueza social a trabalho abstrato medido pelo tempo.

Recorre-se à fórmula de Pasukanis, segundo a qual o valor de uso da pena criminal consistiria nas funções de prevenção especial e prevenção geral. A prevenção especial negativa de neutralização e a prevenção especial positiva de correção vinculam a retribuição equivalente às funções reais/latentes de disciplina na classe trabalhadora. A prevenção geral negativa de intimidação e a prevenção geral positiva de integração/prevenção da pena consistiriam na afirmação da validade da norma ou na afirmação de valores comunitários.

Por fim, cumpre apontar que a desigualdade social e a opressão de classe têm por garantia o discurso penal da correção/neutralização individual e da intimidação/reforço da fidelidade jurídica do povo.

A prevenção especial como garantia das relações sociais

Denominada capacitação seletiva de indivíduos considerados perigosos, a prevenção especial negativa de neutralização do condenado mediante privação de liberdade é princípio incontestável, tendo em vista impedir a prática de crimes fora dos limites da prisão. A moderna crítica criminológica, no entanto, elenca seus aspectos contraditórios. Primeiramente, a privação de liberdade produz maior reincidência, exerce influência negativa na vida real do condenado – desclassificação social objetiva; formação subjetiva de autoimagem do criminoso –; a execução da pena privativa de liberdade por si só representa máxima desintegração social do condenado; a subcultura da prisão produz deformações psíquicas e emocionais no condenado; desencadeiam-se estereótipos justificadores de criminalização para correção individual por penas privativas de liberdade; e, por fim, é notável que o grau de periculosidade criminal do condenado é proporcional à duração da pena privativa de liberdade.

Além disso, visualiza-se o fracasso do projeto técnico-corretivo de prevenção especial positiva quando do estudo dos momentos de aplicação e de execução da pena criminal. A crise na aplicação da pena remete à contradição entre o discurso do processo legal devido e a realidade seletiva do poder de punir. Tal crise é, ainda, apontada como irreversível, tendo em vista que a prisão introduz o condenado em duplo processo de transformação pessoal – desculturação da convivência social da qual este advém e de aculturação pelo aprendizado de valores e normas de sobrevivência na prisão. Baratta sintetiza o processo simultâneo de desculturação e aculturação da seguinte forma: adaptação pessoal à cultura da prisão via rotulação oficial do cidadão como criminoso, porque transforma a autoimagem e deforma a personalidade do condenado, orientada por valores e normas de sobrevivência na cadeia.

A prevenção geral como afirmação da ideologia dominante

Na área das situações sociais problemáticas o Direito Penal parece reduzido ao papel ideológico de criação de símbolos no imaginário popular, com o objetivo oculto de legitimar o poder político do Estado e o próprio Direito Penal como instrumento de política social. A legitimação do poder político do Estado ocorre mediante a criação de uma espécie de eficiência repressiva no enfrentamento do crime. Define-se o inimigo comum, o qual garante tanto a lealdade do eleitorado como serve à reprodução do próprio poder político.

Há, ainda, de se pontuar que a penalização de situações problemáticas não significa solução social, mas sim solução penal simples para satisfazer a opinião pública. Isto é, tem-se um efeito instrumental, legitimando o direito penal como programa desigual de controle social, o qual realiza repressão seletiva contra favelas e bairros pobres e especialmente contra a força marginalizada do mercado, inóspita à reprodução do capital, já que a nível simbólico o Direito Penal seria igual para todos.

  • As teorias unificadas como integração das funções manifestas ou declaradas da pena criminal

A crítica jurídica e criminológica sobre as teorias unificadas da pena criminal afirmam que a simples reunião de funções das teorias não faz desaparecer os defeitos destas isoladas. Além disso, a própria admissão de diferentes funções da pena criminal mediante cumulação de funções por vezes contraditórias corrobora com a possibilidade de escolha de qualquer punição da teoria supostamente mais adequada ao caso completo.

Distante da superação de debilidades de cada função, as teorias unificadas significam a soma dos defeitos das teorias particulares. Além disso, inexiste fundamento filosófico ou científico que una concepções penais fundadas em teorias contraditórias.

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Sobre o autor
Ingrid Gomes Martins

Graduanda em Direito pela Universidade de Brasília. Membro do Grupo de Ensino Tutorial PET Direito UnB. Membro da comissão de Extensão, Pesquisa e Academia do Centro Acadêmico de Direito da UnB.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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