Questão que avulta de suma importância é concernente à competência para o julgamento em caso de conexão ou continência envolvendo duas infrações penais ou dois ou mais agentes, sendo uma de menor potencial ofensivo [1] e outra que não o seja. Neste caso, Damásio de Jesus, por exemplo, entende que deve prevalecer o "Juízo Comum" [2], ao passo que outros, como nós, possuem entendimento diverso, como mostraremos a seguir.
Como se sabe, a competência dos Juizados Especiais Criminais é ditada pela natureza da infração penal, estabelecida em razão da matéria e, portanto, de caráter absoluto, ainda mais porque tem base constitucional (art. 98, I da Constituição Federal); neste sentido, Mirabete e Ada, respectivamente:
"A competência do Juizado Especial Criminal restringe-se às infrações penais de menor potencial ofensivo, conforme a Carta Constitucional e a lei. Como tal competência é conferida em razão da matéria, é ela absoluta, de modo que não é possível sejam julgadas no Juizado Especial Criminal outras infrações, sob pena de declaração de nulidade absoluta." [3]
"A competência do Juizado, restrita às infrações de menor potencial ofensivo, é de natureza material e, por isso, absoluta. Não é possível, portanto, que nele sejam processadas outras infrações e, se isso suceder, haverá nulidade absoluta." [4]
Igualmente pensa Cezar Roberto Bitencourt, para quem "a competência ratione materiae, objeto de julgamento pelos Juizados Especiais Criminais, apresenta-se da seguinte forma: crimes com pena máxima cominada não superior a um ano e contravenções penais." [5]
O Professor Sidney Eloy Dalabrida também já escreveu:
"A competência do Juizado Especial Criminal foi firmada a nível constitucional (art. 98, I, CF), restringindo-se à conciliação (composição e transação), processo, julgamento e execução de infrações penais de menor potencial ofensivo. É competência que delimita o poder de julgar em razão da natureza do delito (ratione materiae), e, sendo assim, absoluta. Logo, na ausência de disposição legal permissiva, é inadmissível a submissão a processo pelo Juizado Especial Criminal de outras infrações penais, sob pena de nulidade absoluta." ( grifo nosso). [6]
Observa-se que a competência da qual ora falamos tem índole constitucional, posto ter sido prevista no art. 98 da Carta Magna.
Sequer lei estadual que estabelecer o sistema dos Juizados Especiais Criminais poderá ampliar a competência estabelecida pela lei federal.
A esse respeito, o já citado Cezar Roberto Bitencourt, afirma que "as infrações que não se caracterizarem como de menor potencial ofensivo, ainda que estejam dentro do limite previsto no artigo 89, não poderão receber a suspensão do processo através do Juizado Especial, posto que a competência será da Justiça Comum." [7] (grifo nosso).
Como se disse, a competência da qual falamos é ditada ratione materiae e, como tal, tem caráter absoluto (mesmo porque delimitada pela Constituição, secundada pela lei federal), sendo nulos todos os atos porventura praticados, não somente os decisórios, como também os probatórios, "pois o processo é como se não existisse." [8]
Ora, se assim o é, ou seja, se a própria Constituição estabeleceu a competência dos Juizados Especiais Criminais para o julgamento das infrações penais de menor potencial ofensivo, é induvidoso, ainda que estejamos à frente de uma conexão ou continência, não ser possível o simultaneus processus com a aplicação da regra contida no art. 78 do Código de Processo Penal, norma, aliás, infraconstitucional e anterior à Constituição de 1988. Ademais, ressalva-se que o próprio CPP, no art. 80, permite a separação de processos mesmo sendo o caso de conexão ou continência, quando, por exemplo, "o juiz reputar conveniente a separação por motivo relevante." Assim, ainda que a separação não fosse ditada pelo art. 98, I da Constituição, deveria sê-lo por força do art. 80 do Código, por ser conveniente a separação, pois o rito nos Juizados Especiais Criminais, além de ser mais rápido e desburocratizado, permite a composição civil dos danos e a transação penal, institutos despenalizadores e de aplicação obrigatória, pois são de Direito Material e benéficos.
Eis a lição da doutrina:
"Havendo conexão ou continência, deve haver separação de processos para julgamento da infração de competência dos Juizados Especiais Criminais e da infração de outra natureza. Não prevalece a regra do art. 79, caput, que determina a unidade de processo e julgamento de infrações conexas, porque, no caso, a competência dos Juizados Especiais é fixada na Constituição Federal (art. 98, I), não podendo ser alterada por lei ordinária."
Sidney Eloy Dalabrida assim entende:
"Havendo conexão ou continência entre infrações de menor potencial ofensivo e outras de natureza diversa, via de regra, impõe-se a disjunção de processos, devendo o promotor de justiça, portanto, oferecer denúncias em separado perante os respectivos juízos competentes, face à inaplicabilidade do art. 78, II do CPP, por importar sua incidência em afronta à Constituição Federal." [9]
Observe que devemos interpretar as leis ordinárias em conformidade com a Carta Magna, e não o contrário! Como magistralmente escreveu Frederico Marques, a Constituição Federal "não só submete o legislador ordinário a um regime de estrita legalidade, como ainda subordina todo o sistema normativo a uma causalidade constitucional, que é condição de legitimidade de todo o imperativo jurídico. A conformidade da lei com a Constituição é o lastro causal que a torna válida perante todos." [10]
É bem verdade que a própria Lei n. 9.099/95 prevê duas hipóteses em que é afastada a sua incidência (arts. 66, parágrafo único e 77, § 2º.), mas este fato não representa obstáculo ao que dissemos, pois se encontra dentro da faixa de disciplina possível para a Lei n. 9.099/95, permitida pelo art. 98 da Constituição. Em outras palavras: ao delimitar a competência dos Juizados poderia a respectiva lei, autorizada pela Lei Maior, estabelecer, ela própria, exceções à regra, como o fez. O que não se pode é se utilizar o Código de 1941 para afastar a competência dos Juizados, constitucionalmente ditada.
Este entendimento prevalece mesmo em se tratando de delito de menor potencial ofensivo conexo com um crime contra a vida, hipótese em que ao Tribunal do Júri caberá exclusivamente o julgamento do delito contra a vida, posição que não fere em absoluto o art. 5º., XXXVIII, d da Carta Magna, pois ali não há exigência do Júri em julgar também os crimes conexos àqueles.
Notas
1..Sobre o conceito de infração penal de menor potencial ofensivo, atentar para a nova disposição contida na Lei n. 10.259/2001 (art. 2º., parágrafo único) que criou os Juizados Especiais Criminais Federais, modificadora, a nosso ver, do art. 61 da Lei n. 9.099/95. A respeito do assunto, conferir, entre outros, os artigos de Luiz Flávio Gomes, Damásio de Jesus e Cezar Roberto Bitencourt, todos publicados no site www.direitocriminal.com.br
2..Lei dos Juizados Especiais Criminais Anotada, São Paulo: Saraiva, 4ª. ed., 1997, p. 41.
3..Juizados Especiais Criminais, São Paulo: Atlas, 1997, p. 28.
4..Juizados Especiais Criminais, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2ª. ed., p. 69.
5..Juizados Especiais Criminais e Alternativas à Pena de Prisão, Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 3ª. ed., p. 59.
6..Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - IBCCrim, n.º 57, agosto/1997.
7..Ob. cit., p. 58.
8..Fernando da Costa Tourinho Filho, Processo Penal, São Paulo: Saraiva, Vol. II, 12ª. ed. p. 503.
9..Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - IBCCrim, n.º 57, agosto/1997.
10..Elementos de Direito Processual Penal, Vol. I, Campinas: Bookseller, 1998, p. 79.