1 REFERÊNCIA DA OBRA EM ANÁLISE
JUSTIÇA. Direção e produção de Maria Augusta Ramos. Documentário. Brasil: produção independente, 2004. 1 DVD (100 min). Ntsc, son., color. Port.
2 APRESENTAÇÃO DA DIRETORA
Crítica da atual conjectura social brasileira, Maria Augusta Ramos (Brasília/DF, 1964) utilizou suas últimas obras para expor a realidade social de nosso país, utilizando, para isso, um viés jurídico.
Graduada em Música pela Universidade de Brasília (UNB), e especialista em Musicologia e Música eletroacústica pela Radio France (França) e City University (Londres), a diretora utiliza de modo acurado os aspectos audiofônicos para impor em suas obras o sentimento de realidade que pretende passar aos seus telespectadores.
No ano de 1990, casou-se com o Holandês Henkjan Honning, tendo se mudado para o país de origem do seu marido em seguida. O despertar de uma grande musicista para o mundo cinematográfico surge na Netherlands Film and Television Academy, onde iniciou seus estudos de direção e edição.
Desde ponto em diante, a cineasta produziu diversos curtas-metragens e documentários, de gêneros que abarcam desde o público infantil – Butterflies in your stomach, 1999 – até críticos ferrenhos, tal como a obra ora abordada.
Maria Augusta é vencedora de mais de dez prêmios cinematográficos nacionais e internacionais, tal como o prêmio do público no Festival de Cinema de Amsterdam do ano de 2000, pelo seu documentário Desi.
3 PERSPECTIVA TEÓRICA DA OBRA
O documentário Justiça, como o próprio nome introduz, busca demonstrar a realidade da sociedade brasileira, utilizando, para isso, as lentes dos Tribunais, local onde a justiça teoricamente se executa. Ao contrário do que costumeiramente se imagina sobre a obra, a autora não quis demonstrar a realidade dos Tribunais em nosso país, o que acabou ocorrendo de modo paralelo. Nas próprias palavras de Maria Augusta Ramos, “o filme não é sobre o Judiciário ou sobre o sistema penal em si. É um filme que retrata a realidade brasileira através do Judiciário” (2004). A cineasta se utiliza das lentes do sistema punitivo para realizar uma exploração da sociedade brasileira, uma vez que o sistema judiciário nada mais é do que um reflexo reduzido de nosso corpo social.
4 BREVE SÍNTESE DA OBRA
Gravado durante as audiências criminais realizadas no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, no decurso do segundo semestre do ano de 2003, a obra mostra a realidade do sistema penal brasileiro. A obra cinematográfica mostra desde as audiências de instrução e julgamento, em que cada um dos “atores” exerce o seu papel social – juiz, promotor, defensor e réu – até os momentos privados de cada um deles, aonde o papel social é deixado de lado frente às obrigações diárias comuns a todos, apesar de suas peculiaridades e dificuldades específicas.
O documentário conta com a participação de três réus, três juízes, uma defensora pública e duas promotoras de justiça. Durante as filmagens, a maioria deles tem exposta as suas vidas profissionais e pessoais, exceto alguns dos juízes e as promotoras de justiça, que apenas aparecem nas audiências de instrução e julgamento, permanecendo caladas durante toda a filmagem.
Para dar uma maior veracidade – característica inerente aos documentários, a cineasta utiliza as câmeras estáticas, assim como todos os diálogos presentes na obra são reais, sem nenhum roteiro. A ausência de narrador/comentarista torna a película um verdadeiro retrato da vida real, aparentando ao telespectador estar presente nas situações projetadas.
O documentário foi premiado com nove prêmios cinematográficos internacionais, e é uma das três obras que compõe a trilogia da autora sobre a justiça no Brasil.
5 PRINCIPAIS TESES DESENVOLVIDAS NA OBRA E REFLEXÕES CRÍTICAS
“Quem tá preso na verdade, só tem pé de chinelo, ladrão pé de galinha, o povo mais miserável [sic]”. Com essa frase, uma das defensoras pública resume o objetivo da obra, que é expor o retrato da impunidade, ineficácia e desigualdades da sociedade, através do sistema judicial penal brasileiro. A estrutura que abarca esse sistema punitivo, desde os tribunais até o sistema carcerário, exibe o tratamento desigual fornecido aos envolvidos nessa relação processual. A pompa, glamour e o discurso de “bastas à impunidade” exibidos na posse da juíza como desembargadora contrastam com as cenas dos presos amontoados como animais, presos em suas jaulas. As cenas externadas das prisões em nada diferem se comparadas à obra “Navio negreiro”, de Rugendas. Apesar da diferença de 173 anos entre a obra de arte e a gravação da película, podemos verificar que, na prática, pouco mudou. Santana (2008), em sua obra “Crime e castigo”, expõe essa realidade ao afirmar que as prisões se tornaram porões imundos, superlotados, sanguinários e cheios de desordem, formando um caos criador de bichos humanos.
A igualdade tripartite do processo, corolário do princípio da igualdade, em que todos são iguais perante a lei, é esquecida no momento em que o réu – previamente condenado socialmente, se senta perante o juiz, autoridade máxima, que possuí o poder de condenar e dar a liberdade. Essa abordagem do cenário jurídico penal como, nas próprias palavras de Maria Ramos (2004), “um microcosmos da sociedade”, traz a tona a figura do oprimido e do opressor, presente nos dois sistemas abordados.
Os tons de voz contrastantes, assim como a forma como se comportam – o juiz de cabeça erguida, olhar frio e tom de voz elevado, enquanto o réu de cabeça baixa, encolhido e de fala mansa – comprovam a inexistência desse tratamento igualitário entre os papéis exercidos pelas partes nesse teatro processual, em que as consequências produzem extensos efeitos na vida real. O temor do autoritarismo judiciário, através da figura do juiz, atinge inclusive as testemunhas, o que é exibido claramente no documentário no momento em que Maria Elma vai ser interrogada.
A composição dos personagens jurídicos fica evidenciada quando se encerram as audiências e retornam todos aos seus lares. Aí se verifica verdadeiramente a (des)igualdade. Apesar das grandes diferenças econômicas e sociais, as figuras sociais e atribuições familiares são as mesmas para todos.
Uma das cenas mais fortes do documentário é quando o réu Carlos Eduardo nega, perante a juíza, todas as acusações a ele imputadas, porém confessa a defensora pública que é culpado, sendo inclusive um dos chefes do tráfico de sua região. Essa cena demonstra dois pontos críticos do sistema punitivo: o direito de mentir do réu, chamado também de autodefesa negativa, que prejudica a busca por uma real justiça; assim como a conduta antiética da defensora, que mesmo sabendo da culpa do réu, busca a sua liberdade, utilizando, para justificativa perante à sociedade – representada no documentário pela família – a lotação dos presídios.
Diante disso, tendo em vista que o sistema punitivo é um retrato da sociedade, uma reforma no sistema judiciário nacional passa por uma complexa alteração social. De nada adianta exigir a aplicação de uma justiça restaurativa e um tratamento humanitário pelo Estado se continuarmos, como corpo social, sendo preconceituosos e tratando com indiferença os que já estão à margem da sociedade.
6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANAÍ, Arantes. Para diretora de documentário, Justiça é o retrato da sociedade brasileira. Carta Maior. São Paulo, 25 jun. 2004. Disponível em: <http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Midia/Para-diretora-do-documentario-i-Justica-i-e-retrato-da-sociedade-brasileira/12/6568>. Acesso em: 07 mar. 2014.
SANTANA, Edilson. Crime e castigo: como cortar as raízes da criminalidade e reduzir a violência. São Paulo: Golden books, 2008.