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Controle de constitucionalidade: jurídico-político ou político-jurídico?

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01/04/2002 às 00:00
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4.Impactos recentes no sistema de controle: Leis nºs 9.868/99 e 9.882/99

A Lei nº 9.868, de 10 de novembro de 1999 estabelece uma regulamentação das Ações diretas de Inconstitucionalidade e Constitucionalidade, previstas no art. 102 da Lei Maior, verbis:

"Art. 102 – Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:

I – processar e julgar originariamente:

a) a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal."

Antes da edição da lei supra apontada eram observadas disposições procedimentais constantes do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal no processamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade, coadjuvado pelas Leis nº 4.337/64 e 5.778/72. Todos estes diplomas legais foram revogados pela Lei nº 9.868/99, que "dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal."

Tal instrumento legal, ao tratar particularmente dos efeitos da decisão proferida em sede de Ação Direta de Inconstitucionalidade, trouxe ingredientes novos ao debate do controle de constitucionalidade no Brasil, em particular no que se refere à tensão controle jurídico-político (supralegalidade) e controle político-jurídico.

Neste sentido, assim dispõe o art. 27 da Lei nº 9.868/99:

"Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado."

Disposição similar consta do art. 11 da Lei nº 9.882/99, que disciplinou o processamento da argüição de descumprimento de preceito fundamental, prevista no § 1º do art. 102 da Constituição Federal.

Observe-se que até a edição da norma em apreço, embora não houvesse regulação explícita no ordenamento jurídico pátrio, a doutrina [21] e a jurisprudência entendiam, de forma quase unânime, que a lei inconstitucional seria ato nulo, decorrendo daí, o efeito retroativo da decisão proferida na ação direta de inconstitucionalidade, não se reconhecendo ao ato inconstitucional, nenhum efeito válido desde a sua edição. Noutros termos, a decisão declaratória proferida pelo STF apresentava inquestionável efeito ex tunc.

Na contramão deste entendimento, o preceito sob comento admite a declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia da nulidade, importando tal diretriz, no reconhecimento de que determinada norma, contrária à Constituição, produza, durante certo lapso de tempo, efeitos válidos. Neste caso, a atribuição de eficácia ex nunc ou a partir de um determinado momento à decisão declaratória de inconstitucionalidade, pressupõe duas condições básicas: primeiramente, uma de caráter formal, qual seja a existência de quorum de dois terços dos Ministros do Supremo Tribunal Federal; a segunda, de índole material, isto é, a configuração de "razões de segurança ou de excepcional interesse social."

Comentando a "inovação" ora considerada, Gustavo Binenbojm [22] bem observa que, o propósito do preceptivo é o de introduzir no direito brasileiro a chamada declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade, prevista no § 31 da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional Federal alemão. Em alguns casos, a jurisprudência alemã chega a admitir que a norma já declarada inconstitucional continue a viger até que o legislador produza nova regra em sua substituição.

Setores da doutrina constitucional brasileira favoráveis, ao que tudo indica, a uma "politização" da jurisdição constitucional, já vinham defendendo uma "flexibilização" das decisões declaratórias pronunciadas pelo STF. Ilustrativa é, sob este aspecto, a posição de Daniel Sarmento [23], que defende a aplicação do princípio da proporcionalidade pela Corte Suprema na definição da eficácia temporal da decisão de inconstitucionalidade, levando em conta os interesses em jogo.

Contrariamente a tal encaminhamento do controle de constitucionalidade no Brasil, Manoel Gonçalves Ferreira Filho [24] afirma que, o controle de constitucionalidade assumiu um caráter político e nele se pretende que o Supremo Tribunal Federal atue como órgão político. Para o ilustre constitucionalista, a apreciação da conveniência ou oportunidade de não atribuição de efeitos "ex tunc" à decisão declaratória é uma apreciação tipicamente política. De tudo isso decorre, arremata, a conclusão de que, o Supremo Tribunal Federal se torna uma terceira Câmara do Poder Legislativo.

De forma mais contundente, assim se manifesta o constitucionalista Ivo Dantas [25]: A nós pouco importa se outros modelos constitucionais consagram idêntica posição. A verdade é que estamos diante de uma situação na qual, mesmo dizendo que a norma é inconstitucional, poderá dizer-se que ela continue a produzindo efeitos, em razão de excepcional interesse social. (...) Pergunta-se: de que valerá a supralegalidade da Constituição? De que valerão os princípios nela insculpidos? De que valerá o Controle de Constitucionalidade?


CONCLUSÃO

De tudo que foi acima exposto e discutido, algumas ilações se impõe a título de conclusão da presente monografia.

Temos como ponto inarredável a premissa de que, o controle de constitucionalidade das leis e atos normativos impõe-se como uma conseqüência do fato de se considerar a Constituição como norma jurídica suprema do ordenamento jurídico. Para a defesa e promoção da Constituição é imperativo a instituição de uma autêntica jurisdição constitucional, vocacionada a afirmar a inequívoca e inquestionável supremacia do Texto Constitucional, e, por via de conseqüência, privar de efeitos as normas que lhe contrariam.

Importa, assim, que as normas constitucionais não configurem simples declarações de princípios, mas, pelo contrário, apresentem-se como Direito diretamente aplicável.

Por outro lado, deve-se admitir que a Justiça Constitucional é uma conseqüência imediata do princípio da supremacia da Constituição. Mais do isso, a jurisdição constitucional deve ser considerada uma típica manifestação do Estado de Direito, que supõe a consagração do princípio da legalidade constitucional (supralegalidade) e a tutela dos direitos e liberdades, dentro de uma visão moderna da separação dos poderes.

Assim, é mediante um adequado e bem estruturado controle de constitucionalidade das leis, com observância do devido processo legal, que se afere a necessária adequação das leis (ou atos com força de lei). Verificada a desconformidade do ato impugnado com a Lei Maior, impõe-se a imposição de ineficácia ao aludido ato, sem que tal implique, como pretendem alguns, em ofensa ou comprometimento ao princípio da separação dos poderes ou à soberania do Parlamento. Ou seja, o controle de constitucionalidade, principalmente o controle abstrato-concentrado, não transforma o órgão encarregado da jurisdição constitucional numa 3ª Câmara, com competência legislativa negativa.

A constitucionalidade a ser aferida diz respeito tanto à constitucionalidade formal, que se refere à competência e à falta de regularidade no processo legislativo, como também, à inconstitucionalidade material, que se refere à contradição da norma impugnada com o conteúdo constitucional. Em nosso sistema jurídico portanto, diz respeito, tanto à inconstitucionalidade por ação, como à inconstitucionalidade por omissão.

O nosso sistema de justiça constitucional permite, dentro do controle de constitucionalidade das leis, tanto a via direta como também, a incidental. Inicialmente, conforme exposto, filiamo-nos aos sistema americano (via incidental), e, posteriormente, ao sistema europeu.

Observando a experiência nacional, constata-se um manifesto aumento da complexidade do nosso sistema jurisdicional de controle de constitucionalidade, particularmente no que se refere ao controle concentrado (via direta). Tal se deveu à incorporação ao sistema inicialmente previsto na Constituição de 1988 de novos instrumentos veiculados via Emenda Constitucional (EC nº 03/93) e legislação ordinária (Leis nº 9.868 e 9.882, ambas de 1999), que, de alguma forma, "politizaram" de forma negativa nosso sistema de controle, "flexibilizando" os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, com manifesto comprometimento do princípio da supralegalidade constitucional.

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Uma posição realista e consentânea com o constitucionalismo contemporâneo deve admitir uma "politização positiva" da jurisdição constitucional. Tal posição implica, em nossa ótica, na defesa da Constituição com um todo, como um sistema de normas e de valores.

Em colaboração com os demais poderes políticos e com a própria sociedade como um todo, a jurisdição constitucional deve colaborar no desenvolvimento dos valores que servem de suporte ao próprio Texto Constitucional. Neste sentido, e somente neste, deve-se admitir que a justiça constitucional exerce uma função política, especialmente relevante em países como o nosso, marcado pela persistente marca do subdesenvolvimento.

No Brasil, contudo, o controle de constitucionalidade se politizou de uma forma negativa, em detrimento da eficácia do próprio sistema de controle de constitucionalidade.

Concordamos com a posição de Manoel Gonçalves Ferreira Filho [26], para quem

"as inovações quanto aos efeitos do ato reconhecido com inconstitucional não tornam mais vigorosa a defesa da Constituição. Ao contrário, elas provavelmente a enfraquecem. O ato inconstitucional não é mais nulo ex natura... Seus efeitos poderão persistir mesmo depois do reconhecimento da infração à Constituição... "

Ou seja, o ato inconstitucional ganha uma sobrevida que significa em termos crus que modifica, ou modificou a Constituição, pelo tempo em que foi tolerado

Vigorando e vingando as "inovações" propostas, impõe-se o vaticínio do mestre Ivo Dantas [27]: "Conclusão óbvia, a violação da Constituição pode der direito positivo, mesmo depois de reconhecida, no processo competente, pelo Supremo Tribunal Federal, guarda da Constituição."


Notas

1..DANTAS, Ivo. O Valor da Constituição, 2. Ed., Rio de Janeiro, Renovar, 2001,

2..CONDE, Enrique Álvarez. Curso de Derecho Constitucional, v. II, 2. Ed., Madrid, Tecnos, 1997, p. 285

3..Op. cit., p. 285

4..Ibidem, p. 5

5..Teoria Pura do Direito, trad. port., v. II, 2. Ed., Coimbra, Amado, 1962, p. 159

6..Op. cit., p. 286

7..Op. cit., p. 286

8..O Sistema Constitucional Brasileiro e as Recentes Inovações no Controle de Constitucionalidade, in Revista de Direito Administrativo, nº 220, Rio de Janeiro, Renovar, p. 3

9..Ibidem, p. 3

10..Op. cit., p. 287

11..Op. cit., p. 287

12..Op. cit., p. 288

13..BINENBOJM, Gustavo. Aspectos Processuais do Controle Abstrato. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, 218, outubro/dezembro-1999, p. 152

14..MENDES, Gilmar Ferreira. A Evolução do Direito Constitucional Brasileiro e o Controle de Constitucionalidade da Lei in Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade, 1988, p. 229/230.

15..MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional, S. Paulo, Editora Saraiva, 1999, p. 77

16..BARROSO, Luís Roberto. Dez Anos da Constituição de 1988 in Revista de Direito Administrativo, nº 214, 1998, p. 15

17..DANTAS, Ivo. O Valor da Constituição, p. 212

18..DANTAS, Ivo. O Valor da Constituição, 2. ed., Rio de Janeiro, Renovar, 2001, p. 146/147

19..In Ação Declaratória de Constitucionalidade (Org. Ives Gandra e Gilmar Ferreira), S. Paulo, Saraiva, 1994, pp. 1-13

20..BARROSO, Luís Roberto. Dez Anos da Constituição de 1988 in Revista de Direito Administrativo, nº 214, Rio de Janeiro, Renovar, 1998, p. 15

21..MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional, S. Paulo, Ed. Saraiva, 1996, p. 249

22..Aspectos Processuais do Controle Abstrato da Constitucionalidade no Brasil in Revista de Direito Administrativo, nº 218, out/dez/99, Rio de Janeiro, Renovar, p. 168

23..SARMENTO, Daniel. Eficácia Temporal do Controle de Constitucionalidade (O Princípio da Proporcionalidade e a Ponderação de Interesses) das Leis, in Revista de Direito Administrativo, nº 212, Rio de Janeiro, Renovar, p. 31

24..Ibidem, p. 12

25..Op. cit., p. 245

26..O Sistema Constitucional Brasileiro e as Recentes Inovações no Controle de Constitucionalidade, (...), p. 16

27..Op. Cit., p. 245


BIBLIOGRAFIA

BINENBOJM, Gustavo. Aspectos Processuais do Controle Abstrato in: Revista de Direito Administrativo. Nº 218. Rio de Janeiro: Renovar.

CONDE, Enrique Álvarez. Curso de Derecho Constitucional. v. II, 2. ed. Madrid: Tecnos, 1997.

DANTAS, Ivo. O Valor da Constituição. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. O Sistema Constitucional Brasileiro e as recentes Inovações no Controle de Constitucionalidade in: Revista de Direito Administrativo. Nº 220. Rio de Janeiro: Renovar.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1999.

SARMENTO, Daniel. Eficácia Temporal do Controle de Constitucionalidade das Leis (O Princípio da Proporcionalidade e a Poderação de Interesses) in: Revista de Direito Administrativo. Nº 212. Rio de Janeiro: Renovar.

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Sobre o autor
Robertônio Santos Pessoa

professor de Direito Administrativo da UFPI, membro da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB, mestre em Direito pela USP, doutorando em Direito Administrativo pela UFPE, especialista em Direito Comparado pela Faculté des Affaires Internacionales du Havre (França)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PESSOA, Robertônio Santos. Controle de constitucionalidade: jurídico-político ou político-jurídico?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 56, 1 abr. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2882. Acesso em: 24 abr. 2024.

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